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30 agosto 2020

Chora, que Deus perdoa

O aparecimento de supostas lágrimas no rosto da imagem de Nossa Senhora da
Rosa Mística em Louveira mudou a vida do padre e da cidade no início da década de 90



- Perdeu mermão, perdeu.

Ao ouvir essa frase, que já me soava conhecida de filmes e séries de tevê, pensei de início que fosse alguém contando sobre um assalto.

Em fila de banco se fala de tudo.

Curiosamente, é comum que as pessoas relembrem nessas horas de demorada espera os assaltos ou situações difíceis pelas quais passaram em bancos.

Acho que é o lugar e a situação de vulnerabilidade a que nos expomos que inspiram e que destrancam a boca.

Tem gente que não para de falar. Parece que acha que tagarelar acalma. O nervosismo é tal que, se ninguém lhe dá atenção, essa pessoa fala até sozinha.

Tem gente que reza o terço enquanto aguarda com todos os seus mistérios.

Já vi quem passou mal de tanto medo.

Eu não sou de falar nesses momentos. Os relatos do tipo causam em mim mais ansiedade e terror. Prefiro ficar em silêncio observando cada movimento do lugar.

Apesar de que, em compensação, isto me leva a um torturante hábito que desenvolvi nos bancos de olhar pessoas e situações e imaginar histórias de medo e de terror que essas pessoas poderiam protagonizar em função da situação.

Tipo: um senhor baixinho, incomodado com a fila que não termina, saca um revólver, aterrorizando todo mundo, ou a velhinha, em depressão pela solidão, cuja bolsa traz secretamente uma bomba.

Quando estou em fila de banco não posso olhar para as pessoas, nem de relance, que já começo a viagem mental.

Mas o que mais me tortura nas filas de banco são os pensamentos recorrentes de uma perda irreparável e inapelável.

Esses pensamentos são uma continuidade daqueles de imaginar que alguém da fila tenha uma atitude inusitada, porque nesses pensamentos eu imagino o assalto mesmo. Imagino que um ladrão ou um grupo de ladrões possa invadir o banco exatamente naquele momento que estou vivendo e levar todo o dinheiro que eu estou indo depositar antes que eu consiga chegar ao caixa.

Nessas situações, sei que perderia tudo.

Por isso, a ansiedade da fila nesses momentos não é para que não aconteça um assalto, afinal isso se tornou muito comum com as sucessivas crises econômicas e com a sensação de impunidade gigante do Brasil, mas para que eu consiga ter depositado o dinheiro antes do assalto, pois assim o banco poderia me ressarcir todo o prejuízo.

Que loucura que a cabeça da gente fantasia: eu passo a admitir o assalto para não viver a perda que ele provocaria.

O ponto alto desse medo é entrar na fila.

Ser o último da fila me lembra filmes de Tarzan, que eu via quando era criança.

Lá, enormes filas se formavam quando exploradores iam à África e eles seguiam em marcha pela selva assustadora. De repente, o último da fila sumia e ninguém nem percebia. Ele era “sequestrado” por selvagens e normalmente morria.

Eu imaginava que seria pego pelos ladrões, que são os selvagens de hoje.

Os devaneios são muitos, intermináveis.

Para mim, o período na fila de um banco é um instante de profunda tortura.

A frase que ouvi de que alguém havia perdido tudo para o bandido embaralhou os meus pensamentos de repente ao me dar conta da minha realidade.

Eu estava em uma fila enorme em uma das agências do Bradesco no bairro Cambuí, em Campinas, e tinha acabado de deixar de ser último da fila.

Ainda faltava muito para chegar ao caixa.

Eu me dei conta então de que estava muito perto de quem havia dito a frase, que antes soava distante para mim.

Estava tão perto que poderia estar ao alcance de um tiro certeiro.

A frase se repetia na minha cabeça como se estivesse em um looping eterno.

Ela não parava de ecoar e aumentava de volume à medida que se repetia na minha cabeça e se repetia, se repetia, se repetia.

Comecei a suar frio, o coração disparou, os olhos escureciam e voltavam.

- Perdeu mermão, perdeu.

Minhas pernas tremiam, estava a ponto de um ataque cardíaco.

- Perdeu mermão, perdeu.

O medo detonou meu rosto como um para-brisa de carro atingido por pedra, que quebra, mas não se destrói totalmente.

- Perdeu mermão, perdeu.

Eu não queria olhar para trás, mas o instinto de fuga e de sobrevivência me fez olhar para ver como escapar dali.

Quase desmaiei quando vi, apenas dois clientes para trás de mim, um senhor frágil e branco como porcelana com o pescoço envolvido por um dos braços do ladrão. No outro braço, o marginal perigoso e desesperado segurava a arma.

Era um menino ainda pelas feições e pelo tamanho, talvez uns 14 anos.

Mas ele tinha cara de muito mau.

Os olhos esbugalhados, vermelhos onde deveriam ser brancos, e negros, para torná-los mais assustadores ainda.

Aquele braço envolvendo o homem parecia uma cobra venenosa expondo o seu guizo por meio de uma pulseira prateada e grossa, que chacoalhava enquanto ele o dominava perversamente.

Pensei em me abaixar para evitar continuar como alvo e correr para a porta.

Quando movi os olhos para medir a distância que teria de percorrer e a velocidade que teria de empreender, percebi a presença nefasta de outro ladrão, este mais alto e magro, mas também armado com um revólver.

A senhora na frente do último da fila, um cliente só atrás de mim, chorava e rezava ao mesmo tempo em balbucios.

O mais alto olhou para mim, talvez porque eu o olhava com medo, e chamou:

- Você.

Olhei para trás no resto da fila. Todos abaixavam a cabeça e evitavam encarar os bandidos. Eles pareciam gostar disso, mas percebi que o medo estampado na face também atuava como excitação para eles.

Eu não disse nada quando me chamou. Desviei o olhar e fiquei em silêncio.

- Está surdo?, ele insistiu, agora bem próximo, tanto que encostou o revólver no meu braço para que tivesse certeza.

- Quem, eu?

- É, você. Venha comigo.

Saí da fila e o acompanhei claudicante.

Em seguida, ele me jogou uma sacola de plástico vazia na mão.

- Recolha dinheiro, relógios, correntes, anéis, pulseiras e tudo que for de valor.

- Eu?

- É, você.

Terminou a frase apontando o revólver para o meio dos meus olhos.

Em seguida, passei a recolher na fila o que o ladrão mais alto me disse para fazer.

Ele também era um menino, talvez tivesse uns 16 ou 17 anos.

Outro cara de mau.

Cabelos encaracolados longos, anéis grossos nos dedos compridos e uma corrente também grossa no pescoço.

As pessoas da fila tremiam tanto quanto eu, mas entregavam tudo.

Enquanto eu recolhia o dinheiro e os pertences dos outros clientes, observado pelo bandido que segurava o último da fila, o que me deu a ordem fazia o mesmo nos caixas do banco e com os funcionários.

Os vigias ficaram sem ação por eles terem o refém da fila e não fizeram nada.

O assalto durou alguns minutos só.

Quando entreguei a sacola a ele, o ladrão disse que colocasse o meu dinheiro e o meu relógio junto com os demais.

Fiquei alguns segundos paralisado com a nova ordem e o outro disse:

- Vamos, já temos o bastante. Rápido, rápido. Deixe esse para lá.

Em seguida, os dois pivetes arrastaram o último da fila até a porta e depois dela alguns metros na calçada.

Só o deixaram quando se sentiram seguros para escapar sem serem pegos.

E fugiram.

A senhora que chorava e rezava passou mal assim que os dois saíram.

Ajudei a socorrê-la.

Quando se recuperou, ela me agradeceu e me deu um terço de Nossa Senhora da Rosa Mística em prata.

- Obrigado, meu filho. Guarde isto como um amuleto, pois Nossa Senhora nos protege e nos guia sempre.

Guardei o objeto e fiquei pensando que talvez tivesse alguma lógica, afinal eu tinha conseguido ficar com o dinheiro que iria depositar intacto, apesar do assalto.

Isto fora uma das coisas boas que vivi naquele episódio, além de ter saído vivo, é claro, e de ter conhecido aquela senhora.

Ela tinha um olhar de mãe.


Em dezembro de 1991 fui destacado pela Folha de São Paulo, onde trabalhava como repórter desde agosto de 1988, para levantar a história de um suposto milagre promovido pela imagem de Nossa Senhora da Rosa Mística, na cidade de Louveira.

Quase oito meses depois do assalto ao banco Bradesco, a santa voltava a cruzar o meu caminho e de uma forma curiosa.

Em tese, eu não devia fazer o trabalho de apuração do suposto milagre.

Desde que a Folha havia lançado o seu primeiro caderno regional, o SP – Sudeste ou Folha Sudeste, também conhecido como Folha Campinas, em 19 de novembro de 1990, eu havia me tornado responsável pela editoria de esportes.

A minha escolha para aquele trabalho se deveu a uma necessidade momentânea e a uma particularidade especial.

Francisco Celso Jordão, colega que ainda hoje trabalha na Folha, mas em Brasília, e que havia sido contratado quando o caderno fora criado, era quem acompanhava o assunto desde o início.

O problema é que ele tinha viajado para Casa Branca, outra cidade da região de Campinas, e existia um factual importante: a Unicamp instalaria uma redoma para a imagem a fim de garantir segurança nas investigações sobre o suposto milagre.

Na hora de escolher quem pudesse substituir o Fran, pesou o fato de eu ser morador de Salto, a mesma cidade de origem do religioso responsável pela paróquia, onde a santa estava, o monsenhor Antônio Benedito Spoladori, o padre Toninho, como era conhecido.

Havia ainda mais uma ligação que justificava a minha escolha: uma irmã do religioso morava na mesma rua que eu.

Fran me passou as coordenadas do que estava acontecendo e segui para a cidade.

Toda a história começara em 13 de fevereiro de 1990, quando uma imagem em gesso da santa, adquirida na cidade de Éssen, na Alemanha, chegou à Igreja de São Sebastião, em Louveira.

O templo religioso estava fechado havia três anos já para uma ampla reforma.

Um dos operários que trabalhavam nessa obra era o pintor Aparecido Manoel Rodrigues, especializado em obras religiosas, que atuava ali desde o início.

Durante o dia em que a imagem chegou, ele observou que vertia água no rosto dela.

Imediatamente e impressionado, ele tocou no líquido para ver o que era. Achou que fossem lágrimas. Então provou para ter certeza e sentiu um salgado.

O pintor chamou o padre Toninho para contar e o religioso, também impressionado, tocou o sino da igreja chamando os fiéis. A notícia se espalhou.

A partir dali a igreja nunca mais fechou. As reformas continuaram com multidões de fiéis que vinham de todos os lugares do Brasil em busca de graças e para agradecer o que já teriam alcançado.

Devotos colocavam bilhetes, cartas, fotografias e roupas em caixas de papelão nos pés da imagem. Pediam por graças principalmente na área da saúde. Pediam também por paz, emprego e até para ganharem uma casa e um marido.

O fenômeno se manifestava sempre nos primeiros dias do mês. De fevereiro a outubro de 1990, a santa chorou 17 vezes.

Como ninguém sabia quando aconteceria de novo, havia gente que passava o dia olhando para a imagem, impressionada, esperando que ela chorasse em algum momento.

O próprio padre Toninho chamou a Unicamp para investigar se o que escorria do rosto da imagem era lágrima ou não.

As investigações foram iniciadas pelo Departamento de Medicina Legal, que na época era comandado pelo conhecido Fortunato Badan Palhares.

O médico e professor fora o responsável pela identificação da ossada do oficial alemão da Schutzstaffel (SS) e médico no campo de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial, Josef Mengele, morto em 1979 no Brasil.

O alemão sofreu um ataque cardíaco enquanto nadava em Bertioga, no litoral de São Paulo. O corpo foi enterrado sob nome falso e seus restos mortais só foram identificados em 1985 por Badan Palhares.

O próprio padre Toninho forneceu amostra da suposta primeira lágrima para a Unicamp e depois especialistas vieram colher amostras quando a santa chorava.

Em 12 de outubro de 1990, dia da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, a imagem apresentou as lágrimas por três vezes seguidas.

A primeira ocorreu às 6h. Duas horas depois técnicos da Unicamp estavam lá para colher amostras. Foram dois dias de acompanhamento direto deles.

Mais de 30 mil pessoas haviam visto a santa chorar e o milagre estava cada vez mais famoso. Filas de ônibus levavam fiéis à cidade todos os dias. A igreja vivia cheia.

O padre passou a vender souvenirs no corredor lateral e o negócio já empregava quase 20 pessoas ligadas a ele.

No dia em que fui acompanhar o factual da instalação da redoma, não disse ao padre Toninho que era de Salto nem que morava na mesma rua da sua irmã.

Apenas perguntei se ele tinha contato com as pessoas de Salto, de onde ele viera.

Disse que sim e que estavam todos orgulhosos do fato de o milagre ter acontecido na sua paróquia.

Antes de voltar para a redação em Campinas, parei em frente à imagem da santa e a olhei fixamente. Depois aos fiéis que lotavam a igreja. Tentava entender o que acontecia ali, mas não consegui.

Em meio a todo o barulho que as pessoas faziam e aos cantos que eram entoados o tempo todo, ouvi uma voz:

- Não tente entender: Deus está nas pequenas coisas e nem sempre vemos.

Olhei para trás a fim de ver quem dissera e me deparei com a mesma mulher do dia do assalto ao banco Bradesco.

Não sou bom para guardar nomes, mas fisionomias sim. Era o mesmo rosto, só um pouco mais envelhecido e cansado.

- A senhora?

- Não se esqueça do que te falei.

Disse e saiu em direção à multidão.

Cheguei a segui-la por alguns passos, mas ela não queria falar mais nada.


Quando o Fran voltou da viagem, me agradeceu por ter ido em seu lugar e disse que gostara muito do que eu escrevera.

Na verdade, estava sendo gentil, pois o meu texto não trazia nada de espetacular.

Fiz uma reportagem mais em cima da mobilização que a fé das pessoas promovia e citei personagens curiosos e marcantes que encontrei, como a mulher do assalto.

Tudo, claro, depois de citar o factual.

Havia me impressionado muito a fé que as pessoas demonstravam por algo que elas apenas imaginavam ser, como as lágrimas da santa, que, para elas, eram a demonstração da tristeza pela situação do mundo, desgarrado da fé.

Não falei sobre o assalto ao Bradesco.

No texto, eu não sabia o nome da senhora e por isso não citei nenhum nome. Quando me referi a ela, falei de uma mulher misteriosa que surgiu, disse uma frase e desapareceu no meio da multidão como se não quisesse mais falar. Pontuei que aquela manifestação era curiosa.

Havia outros tipos estranhos com quem me defrontei naquela visita: um homem que esperava encontrar o filho desaparecido havia 15 anos. Ele me parou e disse que a santa lhe dera a certeza de que encontraria o filho. Perguntei detalhes do desaparecimento e ele não tinha praticamente nada. Era só a fé.

Encontrei ainda uma mulher que queria se casar e que esperava que a santa compreendesse suas lágrimas de desespero e a ajudasse a encontrar um marido e uma casa onde pudessem viver juntos, mas ela era doida de pedra.

Tinha nascido em uma família de oito irmãs. Todas como ela: de uma aparência nada atrativa e falando muito. Me disse que esperava um marido com cara de ator de novela, trabalhador e honesto.

O curioso é que ela havia colocado em uma caixa de papelão uma calcinha usada, embrulhada em papel alumínio, com o pedido e as recomendações à santa.

Deparei-me, por fim, com um homem misterioso, que também se aproximou, falou uma frase enigmática e sumiu.

- Eu sou encanador. Você ainda vai ouvir falar de mim por causa disso tudo aqui. Lembre-se disso, afirmou ele.

Fran não só gostou da reportagem como pediu à edição que a partir dali eu e ele fôssemos encarregados de fazer as reportagens da santa de Louveira juntos.

Disse a ele que via aquela situação da devoção à santa com algum desconforto e que precisávamos encontrar o fio da meada para tudo aquilo rapidamente.

De fato, na jornada de reportagens que fizemos juntos fomos em busca do que havia por trás daquela história toda.

Nós dois desconfiávamos do padre.

Padre Toninho ficou no comando da Igreja de São Sebastião de 1981 a 1996 e o surgimento da santa que chorava foi o fato mais extraordinário que ele viveu lá.

Mais que isto: o suposto milagre reabriu a igreja que estava fechada por mais de três anos em uma reforma interminável e deu condições a ele de garantir uma boa arrecadação de donativos dos fiéis para o término da obra e o início de outras.

A estrutura ao lado da igreja para a venda de souvenirs surgiu rápido demais para a nossa avaliação. Parecia algo já planejado. Está certo que o padre era empreendedor, mas nós achávamos que havia algo por trás daquela movimentação.

Uma coisa que chamou a nossa atenção foi que ele recebia ligações durante as entrevistas que fizemos e pedia para esperar, mas nunca falava na nossa frente.

Por vezes o vimos nervoso ao telefone, mesmo sem ouvir o que falava. Isto era sinal de que alguma coisa não ia bem. Mas não tínhamos como saber ainda.


As visitas que eu e o Fran fizemos a Louveira em várias oportunidades depois daquela em que fui sozinho foram positivas para a descoberta de muitas coisas a respeito do milagre.

Mas nem todas pudemos publicar.

A razão principal foi não conseguir provar, uma exigência da Folha. Aliás, muito correta por sinal, afinal falávamos de reputações, nomes, histórias.

Uma delas surgiu quando interrogamos uma mulher na estação ferroviária, que ficava a 500 metros da igreja.

Ela havia trabalhado na casa do padre e ouvira e vira tudo o que acontecia lá. Acabou dispensada quando começou a questionar a respeito de tudo.

Essa mulher nos disse muitas coisas contra o padre Toninho, que depois viriam à tona quando ele já não estava mais em Louveira e sim na cidade de Itu e que abordarei a seguir neste relato.

O mesmo homem que me procurou na igreja se dizendo encanador depois nos disse que ele havia ajudado a forjar o choro da santa, mas ele não conseguiu provar o que dizia, embora dissesse detalhes.

Enfim, a Unicamp acabou desfazendo as várias certezas que o padre havia criado.

Talvez ele não acreditasse que a universidade chegasse a uma conclusão negativa quando a chamou para a análise.

Só que a Unicamp levou o caso a sério. Os técnicos da Medicina Legal iniciaram o trabalho e depois se juntaram a eles os do Cepagri (Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura). No total, 30 pesquisadores se envolveram nas análises. E eles acompanharam o processo por um ano.

No princípio encontraram três possibilidades para o fenômeno: a condensação, na qual a umidade do ar se concentraria na imagem, sobretudo em dias mais chuvosos; a transpiração, na qual a imagem absorveria a umidade do ar, e a capilaridade, na qual a imagem absorveria o líquido da base onde estava.

A avaliação inicial era de que o gesso de que era feita a imagem e o local onde ela estava levava ao fenômeno. Por isso se juntaram aos técnicos da Medicina Legal os do Cepagri. Estes foram lá medir pressão, temperatura e umidade.

Apesar de eu e o Fran e outros jornalistas também termos questionado os cientistas sobre a possibilidade de o padre ou alguém ligado a ele estar promovendo o milagre, eles não avaliavam essa hipótese.

Até porque fora o próprio padre Toninho quem chamara a Unicamp para investigar e ele mesmo colaborava com tudo.

Só que a investigação dava credibilidade para o milagre. O padre aparecia como alguém interessado na verdade. E, enquanto a universidade investigava, nada impedia que a notícia se espalhasse.

Encontramos em Louveira gente de todo o Brasil. Vimos pessoas que não aceitavam duvidar. A fé é cega, surda e muda. Ela só precisa de um milagre. Essas pessoas não hesitavam em investir no milagre. Compravam souvenirs, davam donativos, ajudavam na reforma da igreja.

O que fosse pedido ou necessário seria conseguido para curar doenças, realizar desejos e estabelecer algum tipo de paz.

O que intrigava os cientistas não era a desconfiança de nada forjado, mas havia situações estranhas para eles. O fato de ocorrer sempre em determinados dias do início do mês era um deles.

Achou-se no início que a temperatura da cidade, a umidade em torno da igreja ou até mesmo que o volume de pessoas gerava alguma coisa para chegar ao milagre das lágrimas na imagem.

Outra coisa que tirava o sono dos pesquisadores era o fato de o fenômeno já ter se manifestado em 17 países e mesmo no Brasil ter ocorrido em quatro cidades: além de Louveira, Jambeiro (SP), Santo Antônio e Juiz de Fora (MG).

Tinha horas que eles passavam uma sensação de descontrole da situação. Afinal, cem imagens iguais tinham vindo da Alemanha junto com a aquela. Nem todas choravam e a de Louveira era a que mais chorava. As pessoas já se posicionavam duvidando da Unicamp antes mesmo do laudo final, o que assustava a todos.

O clima de comoção e de fé era tão grande que arriscávamos sofrer um linchamento ao demonstrar dúvidas. Só que elas não paravam de surgir nem as pessoas que tinham a mesma opinião e eram de lá, do mesmo ambiente.

Em janeiro de 1991, foram presos os dois assaltantes do banco Bradesco.


Um dia estava na redação em Campinas, que ficava em uma mansão no bairro Campuí, e recebi uma ligação logo depois de ter saído reportagem falando sobre as dúvidas que pairavam sobre o milagre:

- O que você considera mais valioso na sua vida hoje, me diga?

- Quem está falando?

- Responda à pergunta.

- Sei lá. Talvez seja minha própria vida. Ou a vida da minha filha (minha filha tinha três anos). Por que a pergunta?

- Valorize o que você tem. Nunca tente destruir a vida de ninguém. Este mundo só nos dá uma oportunidade. Uma só.

- Quem está falando?

- Reze o terço que lhe dei. Pense que milagres não acontecem por acaso. Tudo tem um sentido, uma razão.

A voz desligou sem se identificar.

Eu achava que era a mulher do assalto. Ela tinha me dado um terço.

Só não entendia qual a razão daquelas palavras, que eram na boa uma ameaça.

Resolvi não dizer nada ao Fran.

Eu já não tinha contado sobre o assalto.

Era muita coisa para digerir.

A Unicamp estava apreensiva com o curso da investigação. Estava cada vez mais nítido que o padre usava a investigação para dar credibilidade ao milagre. As coisas fugiam ao controle.

Depois da redoma de vidro para proteger a santa e fechar a possiblidade de fraudes, Badan Palhares tentou levar a imagem para a universidade a fim de dissecar o material de que era feita, mas nem o padre nem os fiéis permitiram.

Houve até uma vigília de orações com pessoas de várias partes do Brasil para que a santa não saísse da igreja.

A Unicamp havia pedido informações à fabricante na Alemanha, mas não se convencera com os resultados.

Por 13 dias, a imagem da santa foi fotografada e filmada o tempo todo.

Nelson Massini, professor de medicina legal, outro grande nome que integrava a equipe de Badan Palhares, revelou que sua mãe havia ligado e pedido que tomasse cuidado com aquela investigação.

A universidade usou cinco equipamentos para avaliar se o líquido era lágrima mesmo ou não, a primeira etapa de tudo.

Nessa época aprendi que a lágrima humana é composta por 13 elementos químicos, entre eles água, sais minerais, proteínas e gordura. De acordo com os pesquisadores, 98% da lágrima é constituída de água e só 2% de material sólido, como o cloreto de sódio e enzimas. Entre as enzimas estão: a lisozima, lipídios e complexos imunológicos.

O líquido oferecido pelo padre na primeira vez em que a santa teria chorado e os demais colhidos pelos técnicos e o material de que a imagem foi feita, tudo passou por exames de raio-x, de ultrassonografia e de tomografia computadorizada na Unicamp.

Depois que a santa foi colocada na redoma de vidro, ela só chorou uma vez. Aconteceu no dia 13 de março daquele ano. Mas a Unicamp comprovou que a redoma teria sido violada nesse dia.

A partir disso, um fato deu fim à investigação: o padre decidiu tirar a redoma e a universidade desistiu da apuração sem essa segurança.

Em uma entrevista coletiva, Badan Palhares declarou os resultados do que havia conseguido em um ano de apurações: a santa não chorava. O líquido só tinha semelhança com a lágrima na primeira amostra fornecida pelo padre.

Nas demais, ele se assemelhava à água do poço nos fundos da igreja e à água benta oferecida aos fiéis nas missas.

O fim das investigações da Unicamp e a conclusão apresentada encerraram o caso para a Folha e não fomos mais a Louveira.


Em meados de dezembro de 1996, o então bispo da Diocese de Jundiaí, à qual Louveira está ligada, D Amaury Castanho, colocou um fim na história da santa que fazia milagres com um ato oficial.

Depois de 78 manifestações de suposto choro, mesmo após o veredicto da Unicamp, a santa foi recolhida e nunca mais foi vista pelos fiéis.

Cerca de 200 pessoas se deram as mãos em frente à igreja para protestar.

Os sinos tocaram às 14h, como da primeira vez do suposto milagre.

O padre Toninho foi transferido para Itu.

A mulher do assalto me ligou mais uma vez depois da decisão:

- Está contente agora?

Desligou antes que eu tivesse tempo de falar qualquer coisa. Para ela, as reportagens que fizemos levaram a isso. Mas não foram só elas. O padre agiu para que isto ocorresse muito mais que nós.


Quatro anos depois, em 28 de fevereiro de 2000, o padre Toninho foi denunciado pelo pai de um menor de 17 anos de ter mantido relações sexuais com esse menor e outro da mesma idade em sua casa de praia, em Itanhaém, no litoral paulista.

O que parecia apenas um escândalo em razão da projeção que o padre alcançara com a história da santa de Louveira era mais grave do que se podia imaginar.

O motorista que trabalhava com o padre, um rapaz de 20 anos, responsável por apanhar os menores para levá-los à casa, gravou em vídeo as relações. Depois ele e os menores passaram a ameaçar o padre.

Queriam R$ 150 mil para não entregar a fita para a TV Record. O padre não tinha todo esse dinheiro, mas chegou a pagar R$ 3 mil e um cheque de R$ 1.565,00, que foi sustado. No final, o teor da gravação foi mostrado no programa “Cidade Alerta”.

O pai do menor registrou boletim de ocorrência e também o padre, mas as investigações não evoluíram.

Em março de 2000, a Diocese de Jundiaí afastou o religioso das suas funções como pároco da matriz de Nossa Senhora da Candelária em Itu e de mais nove paróquias que respondiam à matriz.

A mulher que eu e Fran entrevistamos na estação ferroviária e que tinha trabalhado na casa já havia acusado o padre desse tipo de atitudes com menores, mas nada havia sido provado e nem foi nessa investigação. O padre alegou que foi levado a tomar uma bebida desconhecida e que perdeu o controle do que fazia a partir disso.

Afastado das atividades paroquianas e longe dos holofotes da mídia que o projetou para o Brasil inteiro na época da santa que chorava em Louveira, o padre Antônio Benedito Spoladori foi encontrado morto em sua casa de praia em 29 de julho de 2003 aos 51 anos de idade.

Morreu por asfixia. A polícia encontrou o corpo em um dos banheiros da casa, onde ele vivia havia dois anos e meio. Estava despido e imobilizado com tiras de pano enroladas no pescoço e na boca.

Seu rosto mostrava que havia chorado muito antes de morrer.



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".

23 agosto 2020

O diabo está nos detalhes

  
Policiais e funcionários do departamento de fiscalização da Prefeitura de Sorocaba
durante a realização de blitz em estabelecimentos da região central 




- Vão lá em cima e prendam todos. 

O homem baixinho, gordo e falastrão dizia cada palavra com convicção quando apontava para o alto do prédio. 

O velho hotelzinho com três andares no centro de Sorocaba era suspeito por si só. 

A movimentação ali vivia intensa. 

Aliás, era assim na maioria dos hoteizinhos, pousadas e casas de massagem da região central. 

Por estarem próximos da rodoviária recebiam muita gente de fora, sem compromisso com ninguém nem nada. Em geral gente sozinha, homens, alguns com envolvimento em crimes em outros lugares, que só se descobria quando eram presos. Não faltava também gente com mandado de prisão decretada, que só se cumpria durante blitzes. 

Havia, é claro, gente que estava ali só para trabalhar e que frequentava o lugar apenas por ser mais barato e não exigir praticamente nada do interessado, além do pagamento da diária do quarto. 

Mas a eles se juntavam prostitutas, que viam nesse público seu ganha pão, sobretudo naqueles que não estavam ali a trabalho. Como o valor dos programas era baixo, elas precisavam realizar muitos em um intervalo menor de tempo. 

Isto fazia a movimentação se manter intensa tanto de dia quanto de noite. 

Prostituição nunca está dissociada de outras infrações penais. O agenciador tinha de ser discreto, mas operava a venda de drogas, bebidas lícitas e ilícitas e patrocinava até crimes, se fosse enganado ou furtado de alguma maneira. 

A polícia estava atônita. 

Era uma operação complicada. Muita gente inocente no meio de potenciais culpados. Não bastasse isso, havia diversos funcionários da prefeitura de outros setores envolvidos: saúde, vigilância sanitária, assistência social e fiscalização, além da Guarda Municipal. 

E a imprensa acompanhava tudo. 

O foco era a exploração da prostituição, mas todos os outros crimes não podiam passar em branco na operação. 

Só que, se a polícia fosse pegar todo tipo de crime, a operação iria ficar gigantesca. 

Por isto, de início a informação do homem baixinho, gordo e falastrão não interessou muito aos policiais. 

Ele dizia que havia drogas lá em cima. 

Falava que uma mulher grande e morena, uma paraguaia, era quem vendia e que ela estava lá em cima. 

O homem era um dos muitos aposentados que frequentavam a praça central Coronel Fernando Prestes. 

Eles eram outra fonte de renda para as prostitutas, embora não a preferida pelos parcos recursos de que dispunham. 

Quando havia blitzes como aquela, tentavam atrapalhar para dar fuga a quem não podia ser preso. Não que quisessem acobertar criminosos. Alguns aposentados recebiam programas gratuitos em retribuição ao acobertamento. 

O problema é que o homem falava o tempo todo e com muita convicção e quando se mente isto não acontece. 

Até quanto pôde, o policial que comandava a operação relutou, mas acabou cedendo e mandou investigar. 

- Como o senhor sabe que a droga está lá em cima? O senhor já foi lá? 

- Imagina doutor. Eu não sou desse tipo. Sou um cara que tem mais de quarenta anos de casado. Não preciso disso não. 

- Se o senhor não foi até lá, como sabe? 

- Eu sei: escreva o que eu te digo. 

- Desculpe, mas não dá para acreditar e nós já checamos esse hotelzinho. 

- Procuraram no cano que fica na cabeceira da cama? Aqueles dois canos que dão sustentação à cabeceira são ocos. Se procurarem embaixo de uma tampinha de plástico que recobre a superfície de cima encontrarão um buraco de chave. 

- O quê? 

- Vão lá e prendam eles. A chave fica atrás do cano de esgoto da pia. A piazinha que fica perto da janela do quarto. 

A polícia foi e achou a droga e a mulher. 

O homem baixinho, gordo e falastrão foi preso como cúmplice. Ele não soube explicar como tinha tantos detalhes sem nunca ter subido ao hotelzinho. Quase enfartou, mas enfrentou firme. 

Depois se soube que não tinha participação na venda das drogas. 

Só denunciou porque fora abusado por um homem naquele quarto a mando da mesma mulher quando revelou que não tinha dinheiro para pagar o programa. 

Mas ele aprendeu uma máxima da investigação policial: toda mentira contada com riqueza de detalhes se torna verdade. 



Não me lembro exatamente a data destes fatos, mas ocorreram em um dos cinco períodos em que trabalhei como repórter da Secretaria de Comunicação da Prefeitura de Sorocaba. 

Creio que foi em 2005. 

Nesse período havia uma médica da Secretaria de Saúde que usava bastante o recurso das blitzes para resgatar pessoas pressionadas à prostituição e idosos maltratados em clínicas ilegais. 

Havia também um cerco da fiscalização do governo para deter estabelecimentos sem documentação e sonegadores de impostos cujos casos eram frequentes. 

Depois de participar da primeira edição escolhido ao acaso na secretaria, a médica gostou do meu trabalho, sobretudo da minha discrição e organização, que eram essenciais para aquele acompanhamento, e pediu ao secretário da pasta que só me mandasse para as operações. 

A função do repórter da Secretaria de Comunicação era fazer a filtragem sobre o que deveria ser publicado e o que não deveria pelas mais diversas razões, entre elas as técnicas, as econômicas, as policiais e principalmente as políticas. 

Tinha também de ser alguém que escrevesse rapidamente, já que as operações aconteciam no final da tarde, quando as redações começavam os encerramentos das edições e qualquer atraso poderia deixar os resultados do trabalho de fora, caso eles não fossem escandalosamente chamativos do ponto de vista jornalístico ou de jornalistas. 

Além disso, o profissional tinha de ter um bom trânsito nas redações por ser encarregado ainda de chamar a imprensa nos momentos-chave das operações e garantir que ela viesse, sempre com a missão de dar visibilidade, sem escândalos que colocassem luz no que não se queria iluminado, mas que chamasse a atenção. 

Um exemplo fora a prisão da paraguaia com drogas e do aposentado que sabia de tudo, sem estar envolvido diretamente. 

As operações eram montadas com muita estratégia e segredo. Havia vários informantes dentro da Prefeitura que ajudavam os prováveis investigados. Eu era dos poucos que não integravam a cúpula, mas participava de reuniões preparatórias. 

A deflagração delas também tinha toda uma preparação. As equipes se dividiam amparadas pela Polícia Militar e pela Guarda Municipal. Isto porque as fiscalizações tinham de acontecer ao mesmo tempo nos vários pontos investigados. Do contrário, um avisaria o outro e não se pegaria ninguém. 

Não se sabia nada das operações fora desse círculo. A imprensa só tinha acesso aos resultados que nós divulgávamos. Os demais setores da Prefeitura viam o que a imprensa dava e alguns comentários de bastidores de quem participava. 



Em uma das operações que fizemos, em que eu acompanhei a entrada dos policiais em uma casa de massagem do centro, aconteceu um fato bastante curioso. 

Invadimos o portão. Alguns policiais foram por fora e outros entraram na recepção e na primeira sala depois dela. Fui com estes, mas atrás deles. 

Encontramos uma mulher loira, alta, bastante jovem, que teclava no computador com um provável cliente. 

Ela foi afastada do computador e ficou de pé ao lado esperando o que seria determinado que fizesse. 

Um policial ficou vigiando os movimentos dela enquanto os outros viam o que havia nas outras salas. 

Eu fiquei com esse policial e a loira. 

Nessa casa em especial não se flagrou nada demais, de irregular, nesse dia. 

Entusiasmado pelo clima da operação, fiz algumas perguntas para a loira enquanto aguardávamos os policiais vasculharem os ambientes, como se fosse da polícia. 

Ela estava muito nervosa. Nunca tinha passado por algo parecido antes. Chegara a Sorocaba havia poucos meses. Era massoterapeuta e vinha de Minas. 

Perguntei com quem ela conversava. Disse que era com a mãe, que ficara em Leopoldina, na zona da mata de Minas. Mas não demonstrou muita convicção. 

A convicção era essencial para saber se estavam falando a verdade. Aprendi com os policiais nas várias operações. 

Resolvi investigar. 

Ela tinha mudado a tela e minimizado o msn, que utilizava, assim que entramos. 

Abri o comunicador e, para minha surpresa, ela falava com um homem da Prefeitura. Marcavam uma visita dele à casa para mais tarde. Mas a conversa era longa. Estavam se falando o dia todo. 

A loira ficou mais desesperada quando a pessoa com quem falava fora descoberta. 

É que o homem fazia o contato durante o dia e no seu horário de trabalho. 

Aquilo era material suficiente para a abertura de um processo interno de investigação, com resultados bastante danosos para o acusado. 

Resolvi levar o caso ao comando da operação para verificar como se procederia naquela situação. 

Ao saber disso, a loira implorou para que não fizesse. Ela sabia que prejudicaria muito o homem com quem falava. 

Eu disse que não poderia evitar. 

Não era eu quem decidia. 

Então ela começou a chorar. 

Tentei fazer com que parasse. Disse que não deveria se preocupar. Afinal, o homem sabia dos riscos que corria. 

- Pode ser que nem dê em nada. 

- Mesmo assim, ele não pode enfrentar isto. Se acontecer alguma coisa com ele, como eu vou ficar? Como? 

- Como assim? Qual é a sua ligação com ele? O que te afeta se ele for punido? 

Ela pediu para que conversássemos longe do policial que guardava posição ali. 

Fomos para a outra sala. 

Com muita dificuldade, a loira me contou que se chamava Juliana e que tinha conhecido o tal homem em uma viagem que ele fez a Minas de férias. 

Ele tinha parentes lá. 

Tiveram um envolvimento e ela ficou grávida. O pai dela a colocou para fora de casa. Ela não tinha o que fazer. Era muito jovem, apenas 18 anos na época. Não tinha profissão e não estudara o suficiente. 

O homem então a trouxe para Sorocaba depois que tivera o bebê. Só que não podia ficar com ela, porque era casado. Alugou um quartinho onde ela vivia com a criança. Sem conseguir emprego por não ter formação em nada, ela dependia dele. 

Ele a colocou em um curso rápido de massoterapia em Itu e arranjou aquela casa de massagens para ela trabalhar. 

- Agora entendi o que acontece. 

- Por favor, não denuncie. 

- Vou falar com quem comanda a operação e pedir por você. Não sou eu quem decide, como te disse. 

Para sorte dela, o caso ficou na casa. 



O número de histórias que presenciei nessas operações da Prefeitura daria um livro ou mais de um, pelo curioso, pelo peculiar e pelas histórias pessoais de cada personagem que conheci ou me defrontei, mas vou me concentrar em apenas mais um: além de Juliana, outro episódio que me chamou atenção foi o de Mayara. 

Eu a conheci em outra blitz no centro. 

Era uma mulher mais velha. Não aparentava, mas tinha 44 anos. Era ruiva, baixinha, com corpo muito bem definido e em forma para a idade. Falava com voz rouca. Ela sabia ser charmosa e demonstrou isto aos policiais. 

Pena que não adiantou muito. 

Entramos na clínica de massagem da mesma forma que fizemos nas anteriores, como se fôssemos agentes da Swat ou do FBI. Era uma sensação diferente que os policiais militares faziam a gente sentir pela forma de abordagem. 

Sempre fui fã de filmes policiais e de investigações que usam a inteligência como arma em vez da força. 

O objetivo era flagrar todos ao mesmo tempo e impedir qualquer fuga ou escamotear de provas ou informações. 

Os policiais iam na frente, eu e outros funcionários da Prefeitura íamos atrás. 

Eles simplesmente abriam os quartos com chaves fornecidas e entravam. O que se via lá dentro em muitas vezes não era publicável e foi o caso de Mayara. 

Quando entramos no quarto, ela estava nua fazendo sexo com um homem. 

A sua reação foi imediatamente se cobrir para que ninguém visse o seu corpo. 

Esse detalhe me chamou a atenção. 

Já tinha presenciado aquela cena de interromper um ato sexual por diversas vezes nessas operações, mas as mulheres não se preocupavam em cobrir nada. Agiam como se estivessem vestidas. 

Esse comportamento é muito comum entre os homens flagrados nessa situação. 

Todos eles agiam normalmente. 

Era comum que os policiais ordenassem que o casal se vestisse. Do contrário, aguardariam as investigações terminarem. 

Isto acontecia porque eram prostitutas na maioria das vezes. Ficar nua para uma mulher que atua dessa forma é normal. Os homens flagrados se acham mais másculos quando vistos em ação. 

Coisa que talvez a psicologia explique ou nem ela, porque a cabeça do ser humano é um mistério, um grande mistério. 

Mayara dava a entender que não era do meio, mas, se não era, por que estava ali? 

Os policiais faziam a investigação padrão. Queriam saber se havia agenciamento para a prostituição, consumo de drogas, se os envolvidos tinham fichas criminais, se tinham alguma coisa ilegal com eles. Eu queria ir além. Saber das pessoas. O que as levava a estarem ali, suas histórias. 

Mayara disse aos policiais que estava ali porque precisava pagar as prestações do carro que o marido havia comprado. 

- O carnê está aqui, ela sacudia o carnê que tirara da bolsa para que todos os policiais vissem e ninguém se detinha nela. 

Falou várias vezes que o marido tinha comprado o carro e que perdera o emprego e não tinha como pagar. 

Só estava fazendo aquilo para arrecadar o dinheiro que seria necessário para o pagamento. Não era prostituta nem gostava daquela situação. Era a necessidade que a havia colocado naquilo. 

Os policiais riam e não davam importância nem sequer se detiveram para ver se o carnê que ela sacudia era real. 

Eu não. Pedi para olhar. Era verdadeiro. Um Uno Mille com parcelas de R$ 594,52 a levara àquela situação constrangedora. 

- Não havia outro meio?, perguntei. 

- Se tivesse, eu teria escolhido, pode ter certeza. Nunca fiz isso. Estou sofrendo por dentro o que você nem imagina. 

- E você acha que terá de fazer quantos programas para pagar o carro? 

- Ah meu filho... 

Ela começou a chorar. 

Os programas das prostitutas e, por consequência, dela também não valiam nada. Se dependesse só deles, ela teria de trabalhar mais umas 18 vezes ainda só para pagar uma prestação do carro. Fiz a conta para ela quando me disse que ganhava em torno de R$ 30,00 por vez. 

- De onde você é? 

- Umuarama, Paraná. 

- Você acha que vale a pena fazer isto por causa de um carro? 

- Não acho. 

- Mas então... 

- Ele me obrigou. 

- Ele quem? 

- O meu marido. 

- Você quer dizer que o seu marido está te obrigando a se prostituir para pagar o carro que ele comprou financiado? 

- Só o carro não. Tudo. Todas as despesas da casa estão nas minhas costas. Ele não faz nada, a não ser.... Deixa pra lá. 

- Não, fale. A não ser o quê? 

- Não se envolva nisso. É melhor para você. Não vale a pena. 

- Diga o que é e eu decido se vale a pena. 

- Não, esqueça. 

- Eu insisto. Prostituição não é crime. Mas agenciar para isto é. 

- Ele não tem medo de ser preso não. 

- E por que aceita isto? 

- Por quê? Eu não tenho escolha. É isso ou isso. Não posso fazer nada. 

- Escute, sempre há o que fazer. Me fale o que está acontecendo. Se eu puder ajudar, vou te ajudar. 

- Eu não quero que minha filha sofra. 

- O que tem sua filha? Ela está com ele? Ele a ameaça e a usa para isto? 

Ela deixou escorrer lágrimas pelos cantos dos olhos e rapidamente as enxugou. 

Avisei a polícia sobre o que acontecia. De início não fui acreditado. Achavam que era golpe de Mayara. Mas depois foram. 

Eu estava na Prefeitura quando recebi uma ligação de Mayara. 

- Ela está comigo. Ela está comigo. Graças a Deus. Graças a você. Obrigado. 

- O que vai fazer agora? 

- Vou embora para o Paraná. Ele não sabe de onde eu vim. Me conheceu no Rio. Pensa que sou de lá. Até tenho parentes lá. Falei com meu pai. Estou voltando. 

- Fico feliz que tenha saído disso. 

- Por que você quis me ajudar? Por que não achou que era uma vagabunda como todo mundo? Ainda mais por ter me encontrado naquela situação? 

- Por um detalhe. 

- Que detalhe? 

- Você quis se vestir rapidamente quando entramos. Nenhuma mulher que flagramos na mesma situação se preocupou com isto. 

- Obrigada. Você foi um anjo. Um anjo de cabelos enrolados. 

Ela disse em uma referência aos meus cabelos encaracolados na época. 

Depois completou: 

- Um anjo sem asas. 

Eu poderia divulgar a história de Mayara para a imprensa, mas, se fizesse, a colocaria em risco novamente. 

Preferi guardar até hoje. 




O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".

16 agosto 2020

A noite da liberdade perdida

Em 1986, eu dirigia o jornal "O Trabalhador", em Salto, e o país vivia a implantação do
Plano Cruzado, o que me fez experimentar uma situação inusitada, que jamais esqueci ao longo da carreira




- Peguem, peguem esse homem. 

Não tive tempo nem de pensar, o que se dirá de ver quem era que deveria ser pego com toda aquela fúria. 

O homem perseguido me atropelou literalmente. 

Eu entrava em um supermercado em Salto e fui derrubado sentado no chão, sem conseguir me segurar. 

Quando comecei a me levantar assustado, atrás dele vieram várias pessoas e elas pareciam dispostas a tudo. 

Berravam palavras de ordem e faziam gestos. 

Mas, sem querer, eu o ajudei a escapar. 

Como estava na frente das pessoas, elas se atrasaram e não tiveram tempo de alcançá-lo. 

Ele dobrou a esquina rapidamente e desapareceu. 

- Por que você o ajudou?, me indagou a mulher que esgoelava antes para pegarem o tal homem. 

- Eu? Não ajudei ninguém. Ele e vocês me atropelaram. 

- É verdade Ana. Ele não teve culpa, disse outra mulher. 

- Teve sim, ela insistiu, se colocando bem na minha frente como se fosse me agredir a socos e pontapés. 

- Escute, eu não fiz nada e nem sei por que vocês perseguiam aquele homem, bradei, inchando o peito. 

O gesto de enfrentamento mais enérgico acabou acalmando os ânimos da mulher. 

Em seguida, ela mascou: 

- Vamos ver se achamos o safado. 

Disse e seguiu em marcha. Os outros foram atrás. Eram várias mulheres. Havia dois ou três homens. Umas cinco crianças acompanhavam meio sem saber o porquê. 

Finalmente consegui me reequilibrar. 

Bati as mãos nas roupas para tirar o pó do chão e arrumei a camisa, que ficou toda torcida e amassada. 

O rapaz do caixa olhou intrigado para mim. 

- O que foi aquilo?, perguntei. 

- Você nem imagina. 

- Como assim? 

- Aquele que fugiu é o dono do supermercado. 

- Não entendi. 

- Essas loucas são as fiscais do Sarney. 

- Ah, começo a entender. 

- Elas tentaram linchar o seu Manoel, porque ele aumentou o preço das bolachas. 

- Nossa, mas as coisas estão saindo do controle. 

- Estão sim. A gente nem sabe o que fazer agora. 

Fiquei pensando em tudo aquilo. De repente percebi que o supermercado estava praticamente fechado já. 

- Ei, espere. 

- O senhor desculpe, mas vamos ter de fechar. É capaz de elas voltarem e quebrarem tudo aqui. Desculpe mesmo. 

O supermercado foi fechado na minha cara. 



Era o ano de 1986, precisamente o mês de junho. 

Eu dirigia o jornal “O Trabalhador”, que assumi assim que me formei na faculdade, um ano antes. 

O jornal era o mais antigo de Salto. Havia sido fundado em 1949. Minha missão vinha sendo transformá-lo. Nascido no Salão Paroquial da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Monte Serrat, ele precisava se tornar um órgão de comunicação da cidade toda para poder crescer. 

Quando assumi, tirávamos apenas 697 exemplares. 

Já tinha inserido várias mudanças, que foram decorrentes do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). 

Eu e meu grupo da faculdade havíamos planejado uma série de alterações e eu vinha fazendo. Todas elas foram pensadas a partir de pesquisas de campo que fizemos. 

O desafio era ganhar leitores novos para ampliar o número de assinantes, sem perder os antigos. 

Assim, tudo que acontecia em qualquer lugar de Salto me interessava. Era sempre uma oportunidade de integrar o jornal à comunidade local como seu representante fiel. 

O que acontecera comigo no supermercado era um exemplo. Eu já tinha preparado uma reportagem com todas as informações. Consegui inclusive entrevista com o dono do supermercado espantado pela turba de fiscais malucas. 

Toda aquela mobilização das pessoas em torno dos preços era fruto da crise econômica que vivíamos. 

O monstro daquela época não era o coronavírus. Era a inflação. Um dragão que beirava os 240% ao ano. 

A inflação roubava tudo o que produzíamos. 

Os produtos perdiam valor no mesmo dia. 

Por isso, em uma sexta-feira de fevereiro, o então presidente José Sarney (PMDB) decretou feriado bancário e anunciou a implantação do Plano Cruzado. 

A proposta era corrigir os salários automaticamente toda vez que a inflação passasse de 20%. 

Quem trabalhava registrado achou maravilhoso. 

Ainda mais porque o governo deu aumento de 15% para o salário mínimo e de 8% para o funcionalismo. 

Os empresários chiaram bastante. 

Achavam que não ia dar certo e criticavam muito. 

Mas o governo não queria saber. 

As medidas visavam deixar a população tranquila. Se a correção dos salários, fazia algo nesse sentido, o que mais ajudou foi o congelamento dos preços de alimentos, combustíveis, produtos de higiene, limpeza e serviços. 

Para regular isso, foi criada a "tabela da Sunab", que era publicada nos jornais e afixada nos supermercados, mostrando quanto cada coisa deveria custar. 

As mudanças conquistaram a população. 

Houve mobilização como se fosse uma Copa do Mundo. As donas de casa iam aos supermercados com a tabelinha de preços nas mãos, checavam e denunciavam aumentos. 

O presidente foi para a tevê, convocou a população a fiscalizar e a ajudar a fechar os estabelecimentos que não respeitassem a tabela da Sunab e a prender seus donos. 

Surgia, assim, a figura dos "fiscais do Sarney". 

Era o que representavam aquelas mulheres que me atropelaram na entrada do supermercado. 

O problema era a insanidade das pessoas. 

Sem um líder sensato, o povo é um monstro sem cabeça. 



O ano de 1986 foi extremamente conturbado por conta das mudanças na economia do país. 

O Plano Cruzado, que criou a moeda cruzado representada pelo símbolo Cz$ resistiu por meses apenas. 

Já de cara o dinheiro perdeu três zeros para passar de cruzeiro (Cr$) a cruzado, uma desvalorização enorme. 

Os aumentos de salário, o gatilho para a inflação e o congelamento de preços deram resultado no começo. 

Mas com o poder de compra e as condições de vida garantidos pelas medidas, os brasileiros começaram a querer comprar cada vez mais e mais. 

Só que os empresários não queriam produzir com o congelamento de preços e os produtos começaram a faltar. 

Resultado: prateleiras vazias. 

Houve filas e até racionamento. 

Nem a carne vinha para os supermercados. 

O governo chegou a apelar para a "desapropriação" de bois no pasto para tentar atender a demanda. 

A grita foi geral. 

Surgiu então o mercado paralelo com preços altíssimos. 

A inflação começou a voltar. 

Quem tinha algum negócio ou quem não dependia do salário pago com registro em carteira enfrentava uma crise particular dentro daquela enorme crise nacional. 

Muita gente quebrou. 

O faturamento do jornal teve uma das maiores baixas de todo o meu período como diretor. 

Tivemos de criar alternativas com novos produtos. 

Mesmo assim, não perdemos o cuidado com a apuração dos fatos que levavam ao noticiário daquele período. 

Isto foi o que aconteceu quando os vereadores de Salto resolveram dar a si mesmos um aumento. 

Demos uma manchete, que é o título principal da primeira página do jornal, para o assunto: “Vereadores rompem congelamento e aumentam o próprio salário”. 

A notícia teve grande repercussão. 

Os vereadores responsáveis pelo aumento ficaram muito irritados com a nossa divulgação. 

A população se posicionou contra a Câmara toda, afinal o congelamento impedia o aumento. 

Eu cumpria com isto o papel de jornalista como havia aprendido na faculdade, aquele que denuncia as irregularidades e que se coloca ao lado da comunidade. 


O governo congelou os preços e criou uma tabela com os valores que poderiam
ser cobrados: quem não obedece tinha o estabelecimento fechado e era preso



Apesar de ter noticiado o aumento dos vereadores e de manter o acompanhamento de todas as ocorrências da cidade mesmo com a crise econômica se agravando, o jornal passou a correr o risco de não sair. 

Anunciantes rompiam contratos e novas divulgações começaram a ficar cada vez mais raras. 

Quando cheguei à redação em uma segunda-feira do final de julho, fui informado que deveria comparecer ao banco para ver como resolver o impasse da conta negativada. 

Nunca a conta do jornal havia ficado sem saldo. 

Estive no banco Itaú e conversei com os gerentes da conta explicando tudo o que acontecera e as providências que havia tomado, mas eles não tinham o que fazer. 

Pedi prazo e voltei para o jornal a fim de estudar alternativas para vencer as dificuldades. 

A secretária me disse que mais dois anunciantes haviam cancelado os contratos e que não teríamos dinheiro para pagar o papel de impressão que teríamos de usar. 

Liguei para o banco na tentativa de fazer um empréstimo. Eles negaram. Disseram que não teria como honrar. 

Sem papel, não poderíamos ter edição. 

Liguei para a Tribuna, de Porto Feliz, que era um jornal parceiro sempre que precisava de ajuda quando quebrava a máquina ou precisava de papel. 

Consegui o empréstimo de algumas resmas. 

A edição seguinte e a da outra semana estavam garantidas, mas depois disso não sabia como fazer. 

De qualquer forma, esse seria um problema para se pensar depois quando chegasse a hora. 

Tinha decidido que não me preocuparia com o que não tivesse ainda acontecido. Se agisse dessa forma, ficaria louco. Os problemas para tocar um jornal não param. 

Ao chegar para trabalhar em uma quinta-feira do começo de agosto, fui surpreendido com todos os funcionários, com exceção da secretária, de braços cruzados. 

Era greve por falta de pagamento. 

Conversei com os três, o linotipista, o montador de páginas e o menino que ajudava aos dois. Pedi que reconsiderassem, pois eu não teria como pagá-los se o jornal não circulasse e que a paralisação prejudicaria ainda mais o faturamento. Outros anunciantes desistiriam. 

De nada adiantou. 

Inflamados pelo linotipista, que era o mais experiente dos três, eles resolveram ir embora para casa. 

A secretária me perguntou o que faria. 

Eu disse: 

- Farei o jornal. 

Tinha aprendido a operar a linotipo e sabia montar as páginas também*. O que precisava agora era de um sangue extra para aguentar todo o esforço. 

Não sei onde o encontrei, mas consegui. 

Terminei o dia no início da noite já. 

E uma certeza surgiu: nenhuma greve pararia o jornal. 



Ao final daquele dia, estava exausto e me sentei no meio da redação para descansar um pouco. 

Foi quando tive uma ideia. 

Poderia adiantar os pagamentos colocando as cobranças em títulos resgatáveis no banco. Perderia um pouco de dinheiro, porque havia uma taxa a ser paga, mas teria recursos para resolver aquele momento. 

Além disso, corrigiria alguns preços. 

Atualizei a tabela de anúncios e a de assinaturas. 

Entre os preços estava também o cobrado por exemplar. 

A edição custava Cz$ 1,80 e passou para Cz$ 2,10. 

Saí da redação com os planos fechados e fui atrás dos três funcionários. Disse a eles o que pretendia e que poderia ter o dinheiro das duplicatas já na sexta-feira. 

Eles confiaram em mim e voltaram ao trabalho. 

Na sexta-feira, fizemos o encerramento da edição e eu consegui receber do banco o adiantamento. 

Com o dinheiro na mão, paguei todos os salários atrasados e comprei papel de impressão. 

Depois que o novo papel chegasse, devolveria o empréstimo feito junto à Tribuna, de Porto Feliz. 

O encerramento da edição daquela semana foi como seu tivesse tirado uma cruz das costas. 

Nunca foi tão difícil. 

Todos já tinham ido embora. 

Fiquei um pouco mais para fazer as contas. 

Lá pelas nove da noite a secretária me ligou. 

- Estava vendo televisão agora há pouco e saiu uma notícia que me chamou a atenção. 

- O que foi? 

- Você corrigiu os preços do jornal, mas eles disseram aqui que o congelamento permanece. Se alguém aumentar preços, poderá ser preso. Você entendeu? 

- Ah meu Deus, tinha esquecido disso. 

- Sim, eu ouvi agora. O que vai fazer? 

- Vou recuar. 

- Mas e o preço impresso no jornal? As tabelas dos anúncios têm como recuar. O preço impresso não. 

Fiquei alguns minutos com aquela informação martelando a minha cabeça depois de desligar. 

Puxa vida, eu tinha de fazer alguma coisa. 

Não poderia deixar daquela forma. 

A única saída era remarcar à mão mesmo. 

A nossa edição era pequena: estava um pouco acima dos mil exemplares àquela época. 

Não havia mais ninguém na redação, então eu mesmo peguei uma caneta preta e passei a fazer a alteração do preço à mão, um a um dos exemplares. 

O número de jornais não era grande, mas, para uma pessoa só fazer tudo, aquilo demorou muito. Fui madrugada à fora rabiscando cada jornal. 

Quando já eram três e meia da manhã, eu estava abrindo a boca de sono e cansaço e ainda faltavam mais de cem exemplares. Acabei pegando no sono. 

Acordei assustado. Já eram quase seis horas. 

Retomei rapidamente a correção. 

Terminei por volta de sete e meia. 

Logo em seguida chegaram os entregadores e levaram todo o jornal alterado e eu fiquei em paz. 

Passei uma noite inteira preso a um erro e pagando por ele para poder ter a tão importante liberdade garantida. 

Aprendi naquele dia uma lição que nunca mais esqueci: jornalistas são pessoas tão comuns e vulneráveis como qualquer cidadão deste país, os vereadores que o digam. 



As letras dos títulos eram compostas uma a uma com
 moldes como esses e depois eram colocadas na
 página montada em uma moldura de ferro. Os
 textos eram feitos de chumbo em máquinas como
 esta ao lado, as linotipos, e as fotos eram impressas
 em placas de aço presas a pedaços de madeira 







O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".



* Inventada por Ottmar Mergenthaler em 1884, na Alemanha, a linotipo é uma máquina que funde em bloco cada linha de caracteres tipográficos. O processo utiliza um teclado como o da máquina de escrever, matrizes que formam cada linha a partir do teclado e uma caldeira. Ligada, a caldeira derrete o chumbo, que assim penetra nas matrizes. Uma parte do equipamento retira as sobras e as linhas são encaminhadas para outro espaço, onde descansam até secar e endurecer. Depois de formadas as linhas de todo um texto, elas são encaminhadas para a montagem da página. Trata-se de um quadro de ferro, onde as linhas de chumbo compõem o texto e os títulos são montados letra por letra. As fotos são feitas em chapas de metal impressas em uma máquina própria e presas em pedaços de madeira para o encaixe na montagem. O conjunto todo é preso por calços, parafusos e porcas. É essa página montada que vai para a impressão em uma impressora plana, ou seja, onde a página passa em linha reta embaixo do rolo de tinta e volta para transmitir a tinta que apanhou na passagem no rolo para o papel. É esse o processo de produção de um jornal a quente. Ele foi substituído nas grandes cidades pela impressão em offset, o jornal a frio feito em impressoras rotativas. Neste processo, a tinta toca uma peça intermediária e esta a página a ser impressa. Apesar do novo processo, as linotipos ainda persistem em jornais pequenos do interior.