30 abril 2020

A barata e o copo

O que parece asqueroso faz parte da vida cotidiana e é capaz de
mostrar um lado que nunca foi imaginado


Uma barata grande,
desajeitada,
percorre toda a boca do copo,
melado de açúcar,
como se estivesse apaixonada
pelo doce.


Como se ele fosse
o seu amor.


O copo imóvel,
molhado pela calda,
parece que se esquece
da vida que ali se esbalda.


As lambidas secam a boca
e o açúcar desaparece.
Então aquela relação
perde a emoção.


Um tirou do outro
o que o outro tinha.
O primeiro seca, definha.
A sina do segundo
não é menos trágica.
A lâmpada mágica
se desliga.


O escuro cobre o palco.


Não há mais ardor:
amor precisa de liga...

25 abril 2020

A novela do auxílio emergencial



Agências da Caixa continuam lotadas de trabalhadores em busca de informações sobre
o auxílio emergencial. Foto do motoboy Xororó em Várzea Paulista


O governo federal expõe milhares de pessoas em Salto e em todo o Brasil à contaminação pelo coronavírus, de uma forma irresponsável e lamentável sob todos os aspectos, por causa das dificuldades que criou para o recebimento do auxílio emergencial de R$ 600,00 e algo precisa ser feito pelas autoridades que representam os cidadãos. 

Não se pode aceitar que seja criada uma expectativa como essa na população, exatamente em um momento de fragilidade econômica, de saúde pública e, principalmente, emocional por conta da pandemia, que se alastra de forma vertiginosa, e se brinque com a esperança das pessoas como se o governo mexesse com peças de um jogo de lego. 

Os deputados e os prefeitos e o governador precisam cobrar do governo que mobilize a sua máquina e resolva as dificuldades para fazer o pagamento do auxílio a quem precisa e se enquadra nas condições. O Judiciário também pode cobrar, como tem agido na questão da pandemia, controlando o Poder Executivo que age atabalhoadamente. 

Há que se reconhecer, é claro, que problemas iriam surgir diante da demanda tão grande que há, mas essa procura não é novidade para o governo e muito menos para os técnicos que projetaram esse app e toda a estrutura para atender as solicitações, sobretudo não é para quem trabalha com números sempre elevados por atender uma nação. 

A falta de informação, a precariedade do app e a lentidão para a resolução causa espécie quando se observam filas enormes em todas as agências da Caixa Federal pelo Brasil afora e que ficam expostos à contaminação pelo coronavírus, como Taperá flagrou mais uma vez esta semana na porta de entrada das duas agências do banco em Salto. 

É inaceitável que milhares de pessoas não tenham tido até agora o seu pedido analisado, ainda mais porque o próprio governo prometeu avaliar as solicitações em cinco dias úteis. Já se falou que o app teria sido atualizado e que se tentasse novamente, mas essa atualização, ao que parece, não aconteceu e não se consegue fazer novo pedido. 

Como o presidente da República defende a volta ao trabalho antecipada, o atraso na liberação do pagamento do auxílio emergencial faz parecer que esta é uma pressão para que aconteça o que ele quer. Independentemente de ser verdade isso ou não, é preciso que o pagamento do auxílio seja feito o mais rapidamente possível. 

Isto é o mínimo. 


Artigo publicado na seção de opinião do Jornal Taperá de 25-04-2020

08 abril 2020

O velho ator

O ator Umberto Magnani, que saiu de cena em 2016 quando 
interpretava o padre Romão, na novela "Velho Chico", da Globo, vítima de um AVC 


Hoje faz exatamente um ano que eu fui tirado de cena como um velho ator. Guardiões do templo me cercaram e decretaram a minha sentença: não poderá mais ser o bom homem, o homem honesto, o pai de família. Nem o empreendedor, o homem capaz, o trabalhador. Não será, tampouco, o homem em quem se confia, aposta de futuro, bom exemplo.

O ator que fica velho só representa um papel: o de vilão. O Dr. Smith, de “Perdidos no Espaço”. É isto que a experiência dá: a esperteza de saber tudo, a capacidade de viver o perverso sem dor nem compaixão. Não pega bem ao velho ator protagonizar um romance tórrido, uma aventura de conquista como a de desbravador, a jornada do herói.

O velho ator tem de ser retirado de cena. A plateia deve sorrir, quem assiste precisa sonhar, os ingressos têm de valer a pena. Nada de bom se espera de um velho ator: restam só lapsos de memória, incertezas, o texto errado na cena errada. Como nos distanciamos dele, só o vemos como vilão, porque ninguém quer estar ao alcance de vilões.



É melhor que o velho ator se aposente. Se nada há para fazer a quem passou a vida em diferentes papéis pelo bom espetáculo, que o velho ator se retire para um asilo, que fique em quarentena após o seu último papel, que o desgastou tanto. Que fique confinado como homem do século passado ou nem isto, já que vilões nem homens de verdade são.

Esquecido em seu isolamento social, o velho ator não atua mais. Só é lembrado como vilão, a cena na qual foi envolvido e se tornou odiado, desrespeitado, nojento. O velho ator delira. Se é vilão, quer ser o maior. Então se torna “Jack, o Estripador”. Incapaz de ter sentimentos humanos, esquarteja na própria mente a vítima, a pessoa mais próxima. 

As pessoas são pedaços. Os pedaços ganham vida. E se perdem embaralhados. Os vilões não são dotados de cuidados com ninguém. Não têm carinho para dar. Não percebem o amor. Não valorizam os esforços de quem trabalha pelo sustento. Desconfiam de todos. São machistas, hipócritas, perversos. Os vilões impõem medo, nojo, pena.

Todos esses rótulos confundem a cabeça do velho ator. Ele não compõe mais nada. Não consegue representar nem a si mesmo. O mundo gira. Ele quer descer do gira-gira da infância. Não consegue. Uma ânsia sobe à garganta como labaredas. Um incêndio corrói o velho ator por dentro. Destrói tudo. É o Museu da Língua Portuguesa se acabando.



- O senhor está louco, dizem as pessoas ao meu lado. – O senhor está louco, repetem. Eu não sei o que está acontecendo. Tudo ainda está girando em torno de mim. De repente, o velho ator sai do meu corpo como se fosse um encosto maligno. “Carrie, a Estranha” se manifesta nele. Uma baba branca se espalha. As pessoas se afastam. 

No meio da multidão está um homem todo torto, poucos cabelos, andar troncho. Parece um sobrevivente de guerra por trás de um par de óculos com lentes que refletem a luz. Ele tenta escapar sorrateiramente entre as pessoas. Fora ele quem colocara o velho ator naquela cena final. Carrega o roteiro da prova debaixo do braço. Maldito.

As chamas que consomem o velho ator já estão altas. As pessoas olham aquilo como minha mãe olhava as baratas mortas a chineladas que ela incendiava no quintal. Ninguém salva quem não tem chance de uma nova vida. - Primeiro, as crianças, mulheres e idosos. Isto não existe mais. O “Titanic” afunda vigorosamente. A orquestra ainda toca. Ninguém dança. 



- Parou, parou! É assim que Ronaldinho Gaúcho acorda na prisão no Paraguai. O guarda o desperta de um pesadelo desesperador. João da Silva Santos, o João Bobo, ganhara o apelido de Ronaldinho Gaúcho em Bangu 1 por jogar bem o futebol desde quando chegara havia um ano. Fora condenado pela morte de uma família inteira incendiada.

No caminho para o café, João comenta com um dos companheiros de cela que está com queimação na garganta. – Esquenta tudo, parece fogo. – Você está pagando os seus pecados, diz o outro. – Vá para o inferno, diz ele. Os presos caminham como um rebanho. Ninguém se move fora das linhas definidas para o refeitório onde o café será servido.

A vida é uma espécie de engenhoca complicada demais, que nunca vamos conseguir entender como funciona e muito menos como consertar quando engripa do nada. É daquelas coisas que a gente olha, olha, olha e não sai disso. E não há a quem recorrer diante de tudo o que acontece. O negócio é viver, viver até morrer. Ou morrer de tanto viver.

02 abril 2020

Treinar para quê?

Praticar exercícios físicos é uma das atividades que a pandemia
 transformou em rotina para a maioria das pessoas: tem até professora online


Desde o início da quarentena ou do isolamento social por causa do coronavírus, vivo uma pressão enorme de gente querendo definir como devo aproveitar o meu tempo livre.

Acho isso um absurdo, afinal não estou com tempo livre. Quarentena ou isolamento social, não importa qual prefiram, significa estar preso, recolhido, sem liberdade.

Isto se parece com aqueles momentos em que aparece um especialista na tevê para explicar como você deve gastar o seu décimo-terceiro salário. O dinheiro nem saiu e o cara está lá: faça isso, faça aquilo. Ora, ora. Ajudar a ganhar ninguém vem, né? Eu gasto como quiser e quando quiser e não me venham com chorumelas.

Um desses dias de quarentena, não sei exatamente qual (já perdi a noção do tempo com esse isolamento), fiz um protesto. Desliguei a tevê com as instruções para exercícios excelentes sobre como manter a forma, deitei no chão esparramado e dormi sem culpa ou medo.

Pode parecer que isso não seja protesto, mas eu não durmo como todo mundo não. Durmo pouquíssimas horas durante a noite. Pegar no sono sem mais e me entregar aos sonhos, como fiz, só quando era adolescente, um tempo em que mais comia, bebia e dormia que qualquer outra coisa. Era quase uma quarentena ou isolamento social, mas que acontecia, felizmente, só depois de curtir a balada até as 6 da manhã.

Acordei renovado e com muita disposição física e mental, muito melhor do que depois de fazer exercícios para me manter em forma. Pra que manter a forma? 
Nem sei se vai ter jogo.