06 julho 2020

Vai nos ocorrer



Apesar de a morte ser a única certeza desta vida, como diz o ditado
popular: é preciso encará-la diferente, sobretudo nesta época de pandemia



Assisti a um filme antigo neste final de semana que termina exatamente com a frase que dá título a este texto. Em “Encontro Marcado”, de 1998, com Brad Pitt e Anthony Hopkins, a morte deixa de cumprir o seu papel de pronto. 

Em uma alegoria do final de cada um neste mundo, o candidato a morrer, um magnata da mídia, consegue mais alguns dias, porque o encarregado de levá-lo quer descobrir a beleza da vida que ele descreve à filha. 

A morte se encanta com o empresário ao testemunhar seu conselho à filha, uma médica residente de Nova York infeliz no amor: ele diz que ela deve viver sempre como se fosse o último dia e que tudo tinha de valer a pena. 

Como não é um filme novo, certamente o que descrevo acima também não o é, mas o que me tocou nele e que me faz recomendá-lo neste momento de pandemia é o repensar que se faz da vida diante do momento crucial. 

Pode parecer um tanto quanto mórbido ou melancólico falar de morte dessa forma agora em que milhares já perderam a vida por conta dessa doença, que é perigosa e só não assusta o presidente e seus seguidores, mas não é. 

Olho de outra maneira: como o faz Hopkins no filme. Temos de viver intensamente como se fosse o último dia e tudo tem de valer a pena. Não podemos perder o gosto e muito menos nos apegarmos a coisas pequenas. 

É claro que ninguém está preparado para morrer e nem quer estar. Afinal, o nosso desejo mais recôndito é viver eternamente. Não fosse isto não se gastariam fortunas em plásticas, silicones e tantos tratamentos para rejuvenescer. 

Mas a morte é inexorável para todos. Como diz um antigo ditado popular: “A morte é a única certeza que se tem nesta vida”. Portanto, estar preparado para ela no sentido de vivermos o que tivermos de viver é fundamental. 

A médica Ana Cláudia Arantes, geriatra da USP, explora esse aspecto em um excelente livro que li recentemente: “A Morte é um Dia Que Vale a Pena Viver”, no qual retrata a preparação de pacientes terminais para morrer. 

Ela fala com maestria da importância de se entender a morte como uma ocorrência do ciclo da vida e prega que os seus pacientes tenham mortes lindas, como ela diz, que são aquelas que ocorrem quando o paciente já fez o necessário. 

Trabalhei há muitos anos com uma figura muito importante da política e do esporte de Sorocaba, que me ensinou muito isso: o saudoso amigo João de Andrade, que foi vereador e diretor da Federação Paulista de Futebol. 

Fizemos parte da assessoria do então deputado federal Renato Amary. Eu fazia a comunicação e o marketing político e ele aconselhava o político. Era uma pessoa em paz com a vida e com as pessoas. Exalava bondade. 

Um dia, seu João chegou ao escritório e veio à minha sala como sempre fazia para bater papo. A primeira frase era a mesma: “Como está o doutor?”. Ele se preocupava muito com o mandato de Renato Amary, em quem confiava. 

Mas naquele dia me assustou: disse que tinha ido ao médico e constatara que tinha um câncer em estágio avançado. Eu o consolei, dizendo que poderia tratar, já que a medicina havia avançado muito nos últimos tempos. 

Ele estava triste, porque essa uma notícia que abate a qualquer um. Só que estava em paz. Disse que não faria tratamento algum. Trataria sim de resolver tudo o que ainda precisava de um ajuste e esperaria a morte. 

Tentei convencê-lo de que aquele comportamento era fruto do impacto da notícia, mas que ele deveria fazer o tratamento sim e ele disse que não, não era impacto não. Ele tinha a certeza de que vivera como deveria. 

Fiquei impressionado e perguntei o que é isso? e ele disse que era simplesmente tratar bem as pessoas, não guardar mágoa. Ser feliz com o que tinha, comemorar até pequenas vitórias. E ajudar os outros como pudesse. 

Algumas semanas depois, ele veio até mim para dar um caloroso abraço e dizer: “É por esses dias, mas eu não queria ir sem me despedir de você, que sempre foi amigo como poucos e que me ensinou muito”. Quanta humildade. 

Aqueles exemplos do amigo João de Andrade ficaram para sempre. Hoje me sinto melhor diante da morte do que me sentia antes. Não vivo mais nada provisoriamente. Tem de valer a pena, tem de ser como se fosse o último dia. 

A frase final de “Encontro Marcado” é profunda. A filha do magnata pergunta ao homem por quem se apaixonara, que até então era a morte e agora era um simples mortal no mesmo corpo, o que fariam. E ele diz: vai nos ocorrer. 

Como se estivesse dizendo: vamos viver, o resto a gente vê depois. É isso. É dessa forma que devemos viver mesmo nessa pandemia. O magnata faz um discurso final antes de morrer que dá a receita completa: “Vivam como eu vivi”.