14 agosto 2020

Atualização necessária contra violência


Transexuais passam a ter atendimento permitido em delegacias da mulher em todo
 o Estado de São Paulo a partir desta sexta-fera (14), mas direitos ainda engatinham


O governo de São Paulo deu um passo importante nesta sexta-feira (14) no combate às desigualdades, ao determinar que as Delegacias de Defesa da Mulher de todo o Estado passem a focar o seu atendimento na identidade de gênero e não mais apenas no sexo biológico. 

A medida permitirá que as 133 unidades existentes (9 na capital paulista, 16 na Grande São Paulo e 108 no interior) passem a atender também transexuais, que são homens conforme o sexo biológico, mas que se enxergam como mulheres e vivem desta forma em uniões até estáveis. 

Esse reconhecimento cumpre uma atualização necessária da estrutura policial frente a nova realidade da sociedade atual, a de que há homens conforme o sexo biológico que vivem como mulheres em relacionamentos com outros homens e que sofrem violência da mesma forma. 

A coordenadora das Delegacias da Mulher do Estado, Jamila Ferrari, afirma que a mudança visa dar mais segurança e garantias a esse público, que já vinha buscando o serviço policial com as mesmas queixas de mulheres que vivem relacionamentos conflituosos com homens. 

Apesar de necessária e importante, a medida chega com atraso a São Paulo, que foi o primeiro Estado a constituir uma delegacia específica para a defesa da mulher, isto em 1985, já que outros Estados vêm atendendo transexuais há mais tempo: o Rio começou em 2017, por exemplo. 

Existem registros de atendimento a transexuais também em Alagoas, Pará, Acre e Distrito Federal, seja por determinação judicial ou por iniciativa própria como no Rio, o que mostra um interesse pela modernização do conceito de proteção contra a violência doméstica e familiar. 

O Estado de São Paulo precisa ir além de ampliar o atendimento especializado às mulheres e agora aos transexuais, levando este serviço a todas as cidades paulistas e não a apenas a 125 dos 647 municípios, como é atualmente, pois a violência é epidêmica. 

Mesmo nas unidades de defesa da mulher existentes faltam funcionários e equipamentos para a prestação de um serviço adequado à eficiência esperada. Há unidades especializadas que funcionam sem sequer ter estrutura física para tal e só sete das 133 delegacias abrem 24h. 

O governador João Dória (PSDB) prometeu em campanha que faria todas as delegacias da mulher funcionarem 24h, inclusive nos finais de semana e feriados, mas vetou o projeto da deputada Beth Sahão (PL), aprovado neste sentido em 2018 pela Assembleia Legislativa. 

Ainda assim, ao menos uma mudança no sentido de melhorar o atendimento foi tomada junto com a ampliação para alcançar os transexuais: agora delegacias da mulher só verão infrações penais de violência doméstica/familiar e contra a dignidade sexual e não mais brigas de vizinhas. 

O combate à violência contra a mulher e a todas as pessoas com identidade de gênero voltada para o feminino ainda é extremamente insuficiente no Brasil. Levantamento do IBGE revela que 91,7% dos municípios brasileiros não têm delegacias especializadas atualmente. 

Além disso, em 90,3% das cidades de todo o país não há nenhum tipo de serviço especializado no atendimento a vítimas de violência sexual, conforme os dados que aparecem na Pesquisa de Informações Básicas Municipais e Estaduais, o perfil dos municípios e Estados do IBGE. 

No Pará, o primeiro caso de um transexual atendido em uma delegacia da mulher sob queixa de violência doméstica ocorreu só em 20 de fevereiro de 2016. A transexual Guilhermina Pereira Rodrigues, de 40 anos, denunciou um morador de rua identificado apenas como Ricardo. 

A transexual acolheu o morador de rua em sua casa em 2015 e passou a viver um relacionamento com ele. Alguns meses depois a união acabou, mas o morador de rua não concordou e passou a ameaçá-la. A denúncia levou a polícia a prendê-lo em flagrante na casa da vítima. 

Espera-se que a mudança no foco de atendimento evite ainda situações constrangedoras como a que passou a cabeleireira Amanda Borges de Almeida, 29 anos, em uma delegacia do Distrito Federal, quando foi tratada como Washington, seu nome de acordo com o sexo biológico. 

Com um corpo de mulher marcado por delicadas tatuagens de flores e estrelas, longos cabelos ondulados, voz doce e roupas sensuais, imagem feminina que levou 10 anos para construir, a cabeleireira recebeu um: “Você é homem e assim vai ser tratado” ao reclamar do tratamento. 

A sociedade atual já avançou em vários aspectos no combate à discriminação sexual, como a garantia do uso do nome social, o reconhecimento de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito federal e a criminalização da discriminação contra LGBT, mas ainda engatinha. 

Em relação aos direitos de pessoas que têm outras opções sexuais divergentes da relação tradicional da sociedade patriarcal ainda falta literalmente o entendimento e o reconhecimento, que deve partir antes de tudo dos governos e das autoridades.