26 julho 2020

O monstro da cela 2

Depois de fazer as fotos mesmo com toda aquela gritaria e ameaças, o monstro
esbravejou que eu podia me considerar um jornalista morto a partir dali.



- Eu vou quebrar as suas pernas a marteladas, para você ficar sem andar por um ano. Vou espremer a sua garganta até você ficar preto por falta de ar. E, quando você estiver chorando de dor, eu vou furar os seus olhos com o meu fura-bolo, um por um, até seu sangue lavar as minhas mãos. 

Enquanto vociferava cada palavra, deixando cair saliva pelos cantos da boca, ele metia os braços musculosos entre as grades na tentativa de me alcançar de alguma maneira, o que deixava a sua pele, mais do que a raiva, ainda mais vermelha, e ele chutava as barras de ferro debaixo com a lateral interna do pé direito, enfiado em um botinão de fazenda, com tanta força, que parecia que as soldas iriam se desprender a qualquer momento, tudo sem deixar de acompanhar meus passos com olhos grandes e vermelhos. 

Dois policiais me levaram até a jaula do monstro, a Cela 2, uma cela provisória, já que a Cadeia Pública de Indaiatuba era feminina e só abrigava homens até o interrogatório e elaboração de boletim. Esses policiais olhavam atentos como se fossem turistas em um circo vendo a jaula do orangotango. A única diferença é que seguravam os revólveres em vez de câmeras fotográficas. E o carcereiro, tão forte quanto o preso (ele tinha sido lutador no passado), fazia postura de quem estava pronto para uma briga de rua: com os braços cruzados no peito, um pé mais à frente e o queixo inclinado para cima, encarando o preso com extrema dedicação. 

Os três estavam mais à frente para me proteger. 

Mas eu tinha certeza de que, se o monstro escapasse, não sobrava nenhum de nós para contar história. 

Nem imaginava quantos homens foram necessários para prendê-lo e colocá-lo naquela cela pequenininha. 

Confesso que fiquei com mais medo pela forma como ele bramia as palavras do que por se tratar de um homem de quase dois metros, forte como um touro e com mãos gigantes, sem falar no ódio que demonstrava por mim, embora nunca tivéssemos nos encontrado antes. 

A imagem dele, fazendo todas aquelas ameaças, não me permitiu dormir naquela noite e por outras seguidas. Quando conseguia pegar no sono, acordava sobressaltado. 

Foi um grande teste psicológico para mim na profissão de jornalista que eu abraçara não havia dois anos ainda. 

Era o ano de 1987. 

Enfrentei o risco para provar que não tinha medo. 

Havia acabado de ser contratado para fazer reportagens ao jornal Periscópio, de Itu, e para a Rádio Convenção, também daquela cidade, como correspondente em Indaiatuba, e não queria decepcionar o Airton Barbi. 

Radialista conhecido na região e funcionário dos dois veículos, ele me indicou depois de saber das mudanças arrojadas que eu havia feito na minha passagem pelo jornal “O Trabalhador”, de Salto, onde fui diretor geral. 

Barbi acreditava muito no meu trabalho. 

Vários jornalistas que estavam começando passaram por suas mãos, mas ele era seletivo demais para reter. 

Uma vez me disse uma frase que me ficou: 

- A glória do jornalismo é a sua transitoriedade. 

Para ele, tínhamos de fazer o melhor naquele momento, porque depois os momentos seriam outros. 

Ou seja, a dedicação a cada trabalho fosse como fosse. 



O receio de fotografar o preso só me veio quando os policiais me advertiram para não fazer fotos dele. 

Disseram que eu correria risco eternamente. 

Afinal, o preso sairia algum dia e não me esqueceria. 

- Normalmente, eles se vingam das pessoas. Tem policial aqui que nem olha para a cara dele nem se deixa ver. É puro medo. A gente tem família também, né? 

- Meu trabalho é fazer as fotos e eu vou fazer, a menos que vocês não me deixem fazer. Mas, se não me deixarem fazer, vou colocar no jornal e na rádio que não deixaram. 

- Não, você pode fazer e vamos te dar proteção para isso. Eu só fiz um alerta. Era minha obrigação. Você sabe o que faz ou, se não sabe, porque é jovem ainda, vai aprender. 

Depois dessa conversa, fiquei assustado. 

Eu estava lá para enfrentar o que tivesse de ser enfrentado. Jornalismo é isso. Você tem uma missão e ela precisa ser cumprida. Se vai ser fácil ou não, não importa. E, cá para nós, nunca é fácil. Nunca foi fácil para mim. 

Pensava comigo que aquele era o momento de testar a minha coragem. Afinal, era jovem e não tinha feito nada ainda que pudesse dizer que fazia parte do meu currículo. 

Admiro muito os jornalistas que enfrentam dificuldades para exercer a sua profissão, mas não se resignam. 

Eu tinha lido o livro “A Sangue Frio”, de Truman Capote, no qual ele faz um romance-reportagem sobre a morte de toda a família Clutter, em Holcomb, Kansas, e traça, com maestria, o perfil psicológico dos dois assassinos. 

O livro é a principal obra desse jornalista escritor que fazia textos de qualidade em vários gêneros e que se tornou uma lenda para os jornalistas em todos os tempos, além de render alguns milhões de dólares ao autor. 

“A Sangue Frio” se tornou rapidamente um sucesso de vendas e de crítica porque Capote estabeleceu uma relação muito próxima com as suas fontes, os responsáveis por lhe dar as informações necessárias para escrever. 

Ele passou mais de um ano na região de Holcomb investigando o crime e essa investigação o levou a entrevistar os criminosos. Depois de ganhar a confiança deles e dos moradores próximos da família, Truman Capote conseguiu fazer um perfil bastante humano dos dois. 

Eu havia ficado impactado com o texto. Capote tem um estilo que ressalta a emoção a partir da apuração precisa dos fatos e conduz o leitor pela curiosidade para chegar ao desenlace. Eu estava com o jornalismo nas veias. 

Disse ao policial: 

- Vou entrar e fazer as fotos, seja ele quem for. 

- Está bem: vamos à jaula do monstro. 

Em seguida, caminhamos até a Cela 2, onde ficavam os presos mais perigosos. Aquela era uma prisão temporária. Esse tipo de detento não ficava ali por muito tempo. 

Hoje presos como o monstro vão para os Centros de Detenção Provisória (CDPs), onde existe mais segurança e a concentração em um local só permite um controle maior. 

Os CDPs surgiram no ano de 2000, quase 13 anos depois, ainda no governo Mario Covas (morto em 2001). 

Eles foram construídos com o objetivo de receber a população das carceragens de delegacias e cadeias públicas como a de Indaiatuba, além de presos provisórios, ou seja, que ainda aguardavam uma sentença judicial. 

Era um preso perigoso por ser forte e não gostar de policiais. Já havia tentado matar dois.
Chegou a feri-los com gravidade, mas eles sobreviveram


Os policiais chamavam o preso da Cela 2 de monstro porque ele fora preso acusado de estuprar e matar seis mulheres em Indaiatuba e cidades da região. 

Era um preso perigoso por ser forte e não gostar de policiais. Já havia tentado matar dois. Chegou a feri-los com gravidade, mas eles sobreviveram. 

Quando fora preso, fiquei sabendo depois, ele movimentou cerca de 20 policiais da cidade com reforços de outras cidades, tal a dificuldade para detê-lo. 

A investigação para chegar ao esconderijo dele durou pelo menos um mês e envolveu policiais da região toda. 

Aos 45 anos, o monstro tinha uma aparência de homem mau, que assusta só de olhar para ele. 

Por isso usava uma moto para atacar as vítimas. O capacete escondia o rosto. Ele anunciava o assalto às mulheres e as obrigava a subirem na moto. Depois levava-as para algum matagal, onde as violentava e matava. 

Uma das suas marcas era se vingar de quem o prejudicava. Ele atacou os dois policiais que quase morreram com esse objetivo. Os dois foram os responsáveis por sua única prisão em flagrante. 

Ele fugiu da cadeia e atacou e feriu os policiais. 

Na sua ficha, havia ainda outros crimes, como de falsificação de documentos, furto e roubo. Também chegou a integrar a organização criminosa Comando Vermelho, que era muito violenta e sanguinária. Matou uma ex-mulher. Ainda assassinou um porteiro de prédio. 

Enfim, não era uma ficha pequena. 

As fotos que eu tirei tinham uma importância grande. Ele poderia ser identificado mais facilmente com elas. As anteriores estavam desatualizadas. O arquivo da polícia na época não era dos melhores. Hoje mudou muito. 

Lembro que fiquei tremendo quando bati as fotos e várias delas se perderam por ficarem embaçadas ou tremidas. 

Quando sai da frente da Cela 2 parecia que eu carregava o monstro comigo. As palavras dele não saiam da minha cabeça e nem os seus gestos: a boca espumando, o pé direito chutando a grade da cela e aqueles braços enormes saindo do meio dos ferros como se ele fosse um polvo. Ao baixar a câmera fotográfica que pendurara no pescoço, depois de fazer as fotos mesmo com toda aquela gritaria e ameaças, o monstro esbravejou que eu podia me considerar um jornalista morto a partir dali. 

Os policiais ficaram impressionados comigo: 

- Você não teve medo? 

- Não, eu disse, mas por dentro não havia nada em mim que não tivesse medo, pavor mesmo. 



O episódio das fotos do Monstro da Cela 2 já estava superado para mim alguns meses depois daquela cena. 

Mas, como os policiais disseram, ele se vingava de todos aqueles que se interpunham no seu caminho e que o prejudicavam de alguma forma, como eu havia feito. 

Pois bem: o meu dia chegou. 

Estava em um supermercado de Campinas fazendo compras quando eu o vi entrar, mas ele não me viu. 

Ele usava um boné que cobria boa parte dos seus cabelos e a aba da frente não deixava ver o rosto todo. 

Também estava com uma roupa esportiva de um padrão que eu supunha não ser o dele pelo que havia levantado a respeito na sua ficha criminal e dos detalhes da sua prisão. 

Mas aquele homem grande e forte era inconfundível. 

Tinha de sair dali o mais rapidamente possível e precisava de chamar a polícia. Naquela época, eu não tinha celular. Os aparelhos começaram a ser fabricados em 1984 e não tinham se popularizado ainda, além de custarem caro. 

Dependia então de orelhões operados com fichas. 

Eu não tinha fichas comigo. 

O problema maior é que eu não tinha como sair dali às pressas. Tinha um carrinho de compras para passar pelo caixa e gente atrás de mim. Naquela época só havia caixas registradoras para calcular a compra. Era demorado. 

Ficava com um olho no Monstro da Cela 2 e outro na caixa para passar as compras. Eu temia que ele disparasse contra mim ali no meio do supermercado. Não haveria escapatória. Ele também certamente não se importaria com aquele monte de gente em volta. 

Foram momentos de extrema agonia. 

Eu transpirava em bicas, o coração estava acelerado e a fala quase não saía para pedir ajuda. 

Mas o pior aconteceu quando ele veio na minha direção. 

Vinha sem ter me visto, eu tinha certeza, mas me veria ao chegar mais perto e aí eu não teria o que fazer. 

Resolvi abaixar atrás do carrinho. 

Ninguém entendeu nada do que estava acontecendo. 

- O senhor está passando mal?, perguntou uma mulher. 

- É só uma indisposição. 

- Vou chamar o segurança. 

- Não, por favor não. 

- Mas o senhor não está bem. 

- Estou melhor já. Não precisa. Obrigado. 

O Monstro da Cela 2 estava a alguns passos de mim. Eu não poderia levantar aquela hora. Seria descoberto. 

- Se melhorou, por que não se levanta? 

- Já vou. 

- Acho melhor chamar o segurança. 

- Acho melhor a senhora calar a boca um minuto. 

- Nossa, quanta grosseria. Estou só tentando ajudar. A gente tem de fazer isso, porque amanhã podemos ser nós... 

- Cale essa boca senhora. 

Ela fechou a cara e se calou finalmente. 

O homem passou pelo caixa e seguiu. 

- Ufa, disse me levantando. 

- Cada louco que aparece, disse a mulher. 

Depois desse sufoco, não vi mais o Monstro da Cela 2. 

Relaxei e esqueci o problema até ser tocado no ombro por alguém cuja voz me lembrava muito o preso. 

- Você por aqui? Que bom te encontrar. Agora vai me ajudar, ele disse nas minhas costas. 

Não me virei com receio de ser atacado fisicamente. 

Tentei chamar o segurança, mas a voz não saía. 

- E então, não vai me ajudar?, o homem insistiu. 

Olhei a frente e vi que poderia pular um carrinho e escapar dali. Não pensei duas vezes. Mas não fui longe. 

O segurança me apanhou e me trouxe de volta ao caixa. 

Aí olhei de frente para o homem que me abordara. 

Olhei fixamente, forçando os olhos para enxergar melhor. Não acreditava naquilo. Não podia ser. 

Mas era. Era outra pessoa. O homem que eu vira entrar no supermercado e que estava ali na minha frente era outra pessoa. Não se tratava do Monstro da Cela 2. 

Que alívio. 

Em seguida, o segurança me comunicou que eu havia urinado nas calças e molhara todo o chão. 

Foi a vergonha mais desejada do mundo.



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".