02 agosto 2020

Matar não é uma questão de vontade


Se eu pudesse, matava um. 

Tal era o sentimento de impotência, de medo e de raiva que vivi naquele momento, explodindo dentro de mim. 

Foram apenas cinco minutos, mas intermináveis. 

Felizmente, Deus não me permitiu ter uma arma. 

Nem deixou que eles avançassem além do jugo, do assombro e da ignomínia de apenas cinco minutos. 

Eu fui salvo a tempo. 

- Vocês estão loucos? 



Era 2001, eu morava em Salto e trabalhava em Campinas, cidade a 40 km de distância, como correspondente da Gazeta Mercantil para a região de Sorocaba. 

Acompanhava sozinho os fatos diários que ocorriam em mais de 70 cidades na minha área de atuação. 

Fui para o jornal em 1998 a fim de participar da segunda fase do projeto de regionalização do jornal. 

Em 1987, começou a primeira etapa com a montagem em Campinas da primeira sucursal da Gazeta. 

Dez anos depois, a direção iniciou a implantação dos cadernos regionais. Em 1997, foi lançado o primeiro caderno regional, era o do Rio Grande do Sul. 

Quando fui para a Gazeta, estava sendo implantado o caderno regional de Campinas, o Planalto Paulista. 

Ao lado dos cadernos Vale do Paraíba, para o litoral norte, e Interior Paulista, para mais de 300 municípios, o Planalto Paulista completou a interiorização por cadernos regionais no Estado de São Paulo da Gazeta. 

Até o ano 2000 foram implantados ainda os cadernos do Distrito Federal, Rio de Janeiro, Grande São Paulo, Paraná, Pará, Santa Catarina, Espírito Santo, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Amazonas, Nordeste, Belo Horizonte, Triângulo Mineiro, Bahia e Tocantins. 

Campinas era muito estratégica nesse processo de interiorização. Só para se ter uma ideia, foram montados três cadernos separados para o interior, mas todos integravam um processo conjunto de elaboração de pauta e de fechamento centralizado em Campinas. Apenas a impressão era realizada em São Paulo. 

Cada um desses cadernos era produto de uma Unidade Regional de Negócios, que era autônoma e independente. 

A ideia da regionalização tinha como estratégia permitir que a Gazeta Mercantil fizesse uma aproximação horizontal com o setor empresarial, enquanto os regionais estreitariam a relação na vertical. Tudo com a visão, trato e proximidade do jornal com os problemas locais. 

Dessa forma, o caderno ganhava notoriedade no interior e faturava com os investidores médios e menores do mercado local, enquanto o jornal-mãe ficava com os anunciantes nacionais, o que daria uma reserva financeira bastante arrojada para a sobrevivência da Gazeta. 

O problema é que o projeto dos regionais, a segunda fase da interiorização, era para ser implantado em 12 anos. 

Mas Luiz Fernando Levy, o dono do jornal, tinha pressa. 

Na opinião dele, tudo poderia acontecer em três ou quatro anos. Só que ele não deu suporte financeiro para que os cadernos sobrevivessem até se consolidarem. 

Para construir o conteúdo do caderno, tínhamos reuniões em Campinas a cada semana, nas quais definíamos as pautas para as edições e também as estratégias comerciais. 

Eu era o que ia de mais longe para esses encontros. 

Por isso, me preparava com bastante antecedência para não chegar atrasado devido ao trânsito intenso que havia entre Salto e Campinas naquela época. 



Naquele dia em especial, eu estava muito atrasado para a reunião da semana na sede da Gazeta em Campinas. 

Não gosto de chegar depois que a conversa começa até hoje. Fica difícil compreender o que está sendo discutido. Além disso, uma coisa que aprendi trabalhando em jornal é que os atrasados ficam com as piores tarefas. 

Ou seja, aquelas que ninguém quer. 

Trabalhar sozinho, ainda que em casa, não é uma tarefa fácil e quando pegamos incumbências complicadas, como são as que ninguém quer, fica pior ainda. 

Mas não tive como evitar atrasar. 

O carro estava com um vazamento pequeno no cárter. 

Tive de passar no posto para ver o que era. 

Não dá para viajar com o carro assim. 

O problema é que o vazamento vinha da colocação errada do parafuso utilizado para o esgotamento nas trocas de óleo, o que fez a rosca dele amassar. 

O funcionário do posto disse que teria de trocar. 

Para fazer isto, foi necessário esgotar o cárter. 

Eu não podia perder tanto tempo, mas também não podia deixar de fazer o reparo. 

A possibilidade de fundir o motor por falta de óleo devido ao vazamento era mais assustadora que o atraso. 



A Unidade de Negócios de Campinas era comandada por Dirceu Pio, que conseguiu forte empatia com o público do jornal e com o empresariado já nos primeiros 18 meses. 

O público leitor reconhecia o caderno de forma independente do jornal-mãe, embora ele fosse encartado neste. E nas coletivas* era comum que os entrevistados perguntassem se havia alguém do Planalto Paulista. 

O sucesso no mercado publicitário e junto ao leitor se deveu em grande parte ao conteúdo de qualidade que era produzido pela redação comandada pela jornalista Ana Carolina Silveira, a Carol. Ao lado de Ana Heloísa Ferrero, que foram contratadas para fazer a transição de sucursal para o caderno regional, ela montou um time forte de jornalistas experientes e escolhidos a dedo para cada área. 

Além de mim, a primeira turma tinha Agnaldo Brito, Paulo Reda, Jorge Massarolo, Ângela Gisikuda e Maria Finetto 

A equipe toda da Unidade de Negócios montava 30 pessoas, entre a redação, com repórteres, fotógrafos e diagramadores; a área comercial e a de assinaturas. 

O segredo do jornal era levar a marca respeitada da Gazeta Mercantil para junto da comunidade. 

Durante toda a sua existência, o Planalto Paulista teve alto grau de envolvimento com os problemas das comunidades que atendia e como fruto disso ganhamos o Prêmio Yara de Jornalismo com o Projeto Água, que abordou os problemas para abastecimento de cidades como Campinas, Jundiaí, Piracicaba, Americana e Limeira. 

O Projeto Água conseguiu alterar a estrutura dos comitês de bacia do Estado de São Paulo e influenciou o início de centenas de projetos de racionalização de água pelas indústrias da região, além de obter amplo apoio comercial, com adesão de mais de 50 instituições empresariais. 

Afora o acompanhamento dos fatos econômicos, o Planalto Paulista se envolveu em um assunto do cotidiano que incomodava muito à época, que era a violência. 

Assim, lançou o “Dossiê Segurança”, uma edição especial que fez ampla radiografia dos problemas da criminalidade regional, e o prêmio socioambiental. 



Assim que peguei a pista em direção a Campinas após o conserto do carro, comecei a acelerar forte para tentar tirar o atraso e chegar razoavelmente próximo do horário. 

Mas o meu esforço foi em vão. 

Assim que começava a pegar velocidade, logo depois da saída de Salto, avistei um congestionamento enorme. 

Carros, caminhões, motos, tudo parado. 

Saí para o acostamento na tentativa de driblar o trânsito parado, torcendo para não encontrar nenhum guarda. 

Assim que cheguei mais próximo do que causava o congestionamento, pude entrar na pista novamente. 

Estava na via mais rápida ao lado do canteiro central. 

O que impedia o trânsito era um protesto de trabalhadores da empresa Fupresa, de Indaiatuba. 

Perguntei ao motorista de uma carreta que acabou ficando do meu lado o que estava acontecendo. 

- Parece que eles não receberam salário e estão fazendo um protesto para obrigar o dono da empresa a pagar. 

- Mas o dono da empresa está aqui? 

- Não, né, ele riu. 

Caramba, aqueles caras iriam me atrasar ainda mais. 

 
Quando trabalhei na Gazeta Mercantil com esse grupo de profissionais 
ganhamos o prêmio Yara de Jornalismo com o Projeto Água, ilustrado ao fundo: eu sou o de terno claro


Coloquei a cabeça para fora e comecei a gritar que precisava passar porque estava atrasado para uma reunião. 

Além de gritar, buzinava também. 

De repente, todos os trabalhadores que estavam mais próximos de mim no protesto vieram na minha direção. 

Havia vários participantes. Uma parte estava perto de mim, onde estavam todos os carros, caminhões, motos. Outra parte estava mais à frente no leito da pista, estendendo faixas e fazendo barulho com instrumentos de percussão. Mais à frente ainda havia alguém da CUT com um megafone gritando palavras de ordem e incitando os manifestantes a se revoltarem contra o patrão. 

Quando vi aquela porção de pessoas vindo na minha direção e nenhum deles mostrava cara de bons amigos para mim em função do que falei, coloquei a cabeça para dentro do carro, fechei o vidro e travei as portas. 

Eles cercaram o carro e um deles, mais corpulento, pegou a maçaneta da porta para abri-la. Não conseguiu porque eu tinha travado as portas. Isto o irritou mais. 

Esse que liderava os demais começou a chutar a porta e a incitar os outros a fazer o mesmo. O meu carro começou a ser chutado por todos os lados. 

Olhei em volta e havia gente mal-encarada em cada vidro e todos querendo entrar ou me tirar de lá de dentro. 

Comecei a buzinar desesperado para que se afastassem, mas ninguém arredava o pé. A buzina só piorou as coisas. Alguns deles, entre os quais o que liderava os demais, passaram a esmurrar a tampa do motor na frente do carro. 

Outros chegaram a enfiar os dedos no vão das portas, pressionando as borrachas de vedação, de modo que pudessem ter onde se apoiar para forçar a abertura. 

Eu me senti ameaçado de morte. 

Decidi tomar uma providência extrema. 

Não podia deixar que continuassem aquela investida, pois fatalmente conseguiriam entrar ou no mínimo danificar o carro em todas as partes possíveis. 

Liguei o motor para forçar a saída do cerco. 

Nesse momento, vivi o mais inusitado que poderia acontecer. Em vez de se afastarem com medo de serem atropelados, que era o que eu queria que sentissem, eles pegaram o carro em conjunto e o ergueram, tirando as rodas do chão, o que anulava minha atitude de ligar o motor. A ação deles me assustou tanto que fez com que o motor morresse, porque eu não sabia mais onde pôr os pés. 

Em seguida, o grupo carregou o carro até o canteiro central da pista e me colocou lá com ele, mas não desistiu de tentar me tirar de dentro ou de entrar. 

Se eu pudesse, matava um. 

Tal era o sentimento de impotência, de medo e de raiva que vivi naquele momento, explodindo dentro de mim. 

Foram apenas cinco minutos, mas intermináveis. 

Felizmente, Deus não me permitiu ter uma arma. 

Nem deixou que eles avançassem além do jugo, do assombro e da ignomínia de apenas cinco minutos. 

Eu fui salvo a tempo. 

- Vocês estão loucos? 

O manifestante da CUT que estava com o megafone veio correndo quando viu a confusão e gritava desesperado para tentar parar os trabalhadores revoltados. 

- Parem, parem, parem. 

Eles não se mexiam, mas não chutaram mais o carro nem forçaram os vãos das portas para tentar abrir. 

Só ficaram parados me encarando. 

- Vocês estão loucos, o que pensam fazer? Nós não podemos perder a cabeça. O que aconteceu? 

O líder da CUT tentava entender a situação após chegar finalmente onde eu estava sob a ameaça. 

O trabalhador que liderava os outros antes da chegada do representante da CUT contou em poucas palavras, sem sequer se preocupar em abrir a boca para falar: 

- Ele queria forçar a passagem e tentou atropelar a gente. 

- Meu Deus, mas vocês não podem fazer isso. Perdemos todo o nosso direito se atacarmos quem passa na rodovia. Vão para lá, vão. Vão todos para lá, ele apontava onde estavam os demais com faixas e instrumentos de percussão, a uns 15 metros de onde estávamos. 

Eles só começaram a se mexer quando o que liderava os demais abaixou a cabeça concordando com o líder da CUT e deu os primeiros passos. Aos poucos cada um dos manifestantes, mais calmos agora, foi seguindo aquele. Todos de cabeça baixa e sem o ímpeto de antes. 

O líder da CUT ficou ao lado do carro sozinho. 

Quando percebi que havia segurança, desci do carro e comecei a esbravejar com ele sem querer ouvi-lo: 

- Você viu o que estão fazendo? Você percebeu o que poderia ter acontecido aqui? Vocês são loucos ou o quê? 

- Eu entendo, mas o companheiro não podia tentar passar. Você também poderia ter cometido vários crimes se atropelasse os trabalhadores. 

- Eu não ia atropelar ninguém. Estava apenas me defendendo. Eles queriam me matar. 

- Se acalme. Ninguém vai matar ninguém. É só um protesto porque esses trabalhadores não receberam salário. Você sabe o que é uma pessoa dar um duro danado e, na hora de receber, o patrão simplesmente não pagar? 

- Eu sei que eu posso perder o meu emprego se não chegar a uma reunião que tenho em Campinas e para a qual estou muitíssimo atrasado por causa desse protesto. 

- Está certo. Não vamos piorar as coisas. Faz o seguinte: dirija pelo canteiro central. Quando passar as faixas e instrumentos de percussão, volte à pista e siga. 

Ele estendeu a mão para apertar a minha. 

Entendi finalmente que era uma pessoa do bem. Já estava mais calmo também. O coração ainda acelerado. 

Apertamos as mãos, entrei no carro e segui. 

Mas antes de deixar o protesto para traz encarei a todos os manifestantes que haviam me ameaçado, principalmente o que liderava os demais, com um olhar que, se fosse faca, teria rasgado cada um deles como quem abre porco: pela barriga, de alto abaixo e de uma vez só. 



O incidente já estava superado, mas o meu coração não parava de bater forte. Achava que teria um infarto se não conseguisse me acalmar. Só não tinha tempo para esperar a tensão diminuir até ficar em paz. 

Ao contrário, tinha de acelerar muito mais agora para reduzir o tempo de viagem e consequentemente o atraso. 

A Gazeta Mercantil funcionava em um condomínio empresarial na região central de Campinas. Eu teria ainda de vencer o trânsito do local e encontrar um estacionamento próximo ou parar no do condomínio, onde era muito mais caro. Decidi que optaria por esse mesmo, já que o tempo era o meu grande inimigo naquele momento. 

O jeito era tentar tirar o máximo que conseguisse na pista e lá na reunião me desculpar pelo atraso. 

Naquela época não havia tantos radares como hoje. 

Por isso, acelerei mais e estava ganhando tempo, quando vi um guarda rodoviário me mandando parar. 

- Essa não. Depois de tudo que já passei, agora uma multa e mais atraso era tudo o que não precisava. 

Parei no acostamento. 

- O senhor estava acima da velocidade permitida. 

- Eu sei, seu guarda. É que estou muito atrasado. Houve um protesto na pista perto de Indaiatuba. Eu preciso chegar em Campinas para uma reunião. 

- O senhor vai chegar, mas não nessa velocidade. Logo à frente tem uma área invadida na chegada a Campinas. Existem muitas crianças lá. Se estiver correndo desse jeito, poderá atropelar alguém. Vou fazer uma multa. 

Eu não estava com paciência e nem com tempo para todo aquele sermão do guarda, embora tivesse certeza de que ele estava certo e de que aquilo era para o meu bem. 

Mas o atraso estava me pressionando muito. 

Assim que fui multado, segui em frente ainda imprimindo velocidade para tirar o atraso. Só que agora mais atento para não ser flagrado novamente por outro guarda. 

O que me multara tinha razão. 

A invasão de sem-teto na entrada de Campinas realmente era vítima de vários atropelamentos. Os moradores do Parque Oziel, Monte Cristo e Gleba B viviam fazendo protestos cobrando providências das autoridades. 

Chegaram a paralisar a rodovia nos dois sentidos, abrindo valetas com picaretas uma vez em razão de atropelamentos na Rodovia Santos Dumont, já que não havia passarela. 

Os pensamentos em torno do que o guarda falara e a pressa de chegar estavam embaralhados na minha cabeça. 

Fui abaixar o som do rádio e acabei derrubando no chão o botão do rádio, que já estava meio frouxo. 

Abaixei rapidamente para apanhar. 

O tempo de abaixar e voltar a olhar a pista foi o suficiente para que sentisse um choque violento na frente do carro. 

Quando ergui a cabeça segundos depois de abaixá-la, vi que algo passava por cima do para-brisa e caia atrás do carro e já ganhava distância rapidamente. 

Pensei que tivesse atropelado alguém. Não sabia. Não dava para ver. As pessoas já se aglomeravam. 

Achei que seria suicídio parar e retornar. 

Do jeito que aqueles trabalhadores já haviam agido comigo, certamente esses moradores não me dariam chance de escapar vivo. Segui em frente torcendo para que não tivesse sido nada, que fosse apenas impressão. 

Não tinha certeza de que tivesse atropelado alguém. 

Talvez fosse algum brinquedo ou algum objeto. 

Não ouvi grito nem choro. 

Uma criança ou um adulto teria produzido algum som. 

Eu estava tremendo de nervoso e de medo. 

Ninguém veio atrás de mim. 

Avaliei que esse era um bom sinal. 

Se tivesse atropelado alguém, os moradores teriam denunciado e alguém ou a polícia já estaria atrás de mim. 

Finalmente cheguei ao estacionamento do condomínio empresarial onde funcionava a Gazeta Mercantil. 

Parei o carro em uma das garagens e desci para pegar o comprovante do estacionamento, quando o funcionário me perguntou qual era a placa do carro. 

- Não dá para ver?, eu disse. 

- Não senhor, aliás não há placa para ver. 

Olhei na mesma direção que ele e pude ver que a placa da frente realmente havia sido arrancada com o choque. 

Estava frito. 

Se tivesse atropelado alguém e os moradores encontrassem a minha placa, me achariam facilmente. Como tinha sido multado antes por excesso de velocidade, minha situação se agravaria mais ainda. 

Após informar as letras e números da placa, subi para a reunião, mas essa foi a pior reunião de que participei. 

Cheguei atrasado demais para ajudar a decidir a próxima empreitada do Planalto Paulista e recebi uma série de tarefas que realmente ninguém ia querer, por certo. 


As reuniões semanais na sede da Gazeta Mercantil em Campinas serviam
 para discutir a viabilidade dos projetos e ajustar o conteúdo



Quando sai da reunião, paguei o estacionamento e entrei no carro, coloquei a cabeça sobre o volante e fiquei alguns instantes refletindo sobre aquele dia. 

Meu Deus, o que me acontecera? 

Finalmente parara um pouco. Tudo aconteceu de forma muito rápida. Não deu nem para pensar. 

Felizmente consegui chegar para a reunião e, embora ela não tenha sido a melhor possível, deu para apresentar os meus pontos de vista e ouvir as orientações necessárias. 

O que me perturbava é que agora estava com um novo problema: ter certeza de que não atropelara ninguém. 

Bom, não dava para continuar ali pensando. 

Liguei o motor, coloquei o carro em marcha e segui de volta para Salto. Pretendia passar pelo local do possível atropelamento e parar um pouco distante. Depois voltar a pé (ninguém me reconheceria) para ver o que de fato acontecera. Além de recuperar a minha placa. 

Tentei avistar de longe se havia concentração de pessoas nas proximidades e não havia. Também já haviam se passado três horas. Se tivesse acontecido um atropelamento, a essa altura estaria tudo resolvido. 

Reduzi a marcha quando passava pelo local na pista contrária, mas não vi nada de anormal. 

Como havia planejado, parei um pouco mais à frente. 

Desci, olhei para todos os lados para ver se alguém me acompanhava. Tudo estava tranquilo. 

Tive de percorrer uma longa caminhada até voltar ao local do possível atropelamento. 

Em princípio, fiquei do outro lado da pista observando apenas com os olhos. Dali teria tempo de correr, se necessário. Foi aí que vi a placa perto do guard-rail que dividia as duas pistas. Bom, se a placa estava lá, não houve atropelamento. A primeira coisa que pegariam era ela para tentar identificar o motorista. Era preciso ter calma. 

Olhei novamente em redor. 

Tudo estava calmo. Não havia ninguém perto. Nada. 

Resolvi me arriscar pela placa. 

Pulei o guard-rail e fui caminhando até ela. 

Ao apanhá-la e verificar se era mesmo a minha e era, vi a uns dois metros do local um corpo inerte. 

Era um cachorro. 

Provavelmente, eu atropelara o cachorro. 

Sai do local imediatamente, carregando a placa debaixo do braço, e, depois de entrar no carro, acelerei para sair dali. Não via a hora de estar longe de tudo aquilo. 

Quando já havia ganho uma distância boa, reduzi e fui embora vagarosamente como Airton Senna na última curva com medo de o carro quebrar. 

Minha cabeça estava um turbilhão. 



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".