08 abril 2020

O velho ator

O ator Umberto Magnani, que saiu de cena em 2016 quando 
interpretava o padre Romão, na novela "Velho Chico", da Globo, vítima de um AVC 


Hoje faz exatamente um ano que eu fui tirado de cena como um velho ator. Guardiões do templo me cercaram e decretaram a minha sentença: não poderá mais ser o bom homem, o homem honesto, o pai de família. Nem o empreendedor, o homem capaz, o trabalhador. Não será, tampouco, o homem em quem se confia, aposta de futuro, bom exemplo.

O ator que fica velho só representa um papel: o de vilão. O Dr. Smith, de “Perdidos no Espaço”. É isto que a experiência dá: a esperteza de saber tudo, a capacidade de viver o perverso sem dor nem compaixão. Não pega bem ao velho ator protagonizar um romance tórrido, uma aventura de conquista como a de desbravador, a jornada do herói.

O velho ator tem de ser retirado de cena. A plateia deve sorrir, quem assiste precisa sonhar, os ingressos têm de valer a pena. Nada de bom se espera de um velho ator: restam só lapsos de memória, incertezas, o texto errado na cena errada. Como nos distanciamos dele, só o vemos como vilão, porque ninguém quer estar ao alcance de vilões.



É melhor que o velho ator se aposente. Se nada há para fazer a quem passou a vida em diferentes papéis pelo bom espetáculo, que o velho ator se retire para um asilo, que fique em quarentena após o seu último papel, que o desgastou tanto. Que fique confinado como homem do século passado ou nem isto, já que vilões nem homens de verdade são.

Esquecido em seu isolamento social, o velho ator não atua mais. Só é lembrado como vilão, a cena na qual foi envolvido e se tornou odiado, desrespeitado, nojento. O velho ator delira. Se é vilão, quer ser o maior. Então se torna “Jack, o Estripador”. Incapaz de ter sentimentos humanos, esquarteja na própria mente a vítima, a pessoa mais próxima. 

As pessoas são pedaços. Os pedaços ganham vida. E se perdem embaralhados. Os vilões não são dotados de cuidados com ninguém. Não têm carinho para dar. Não percebem o amor. Não valorizam os esforços de quem trabalha pelo sustento. Desconfiam de todos. São machistas, hipócritas, perversos. Os vilões impõem medo, nojo, pena.

Todos esses rótulos confundem a cabeça do velho ator. Ele não compõe mais nada. Não consegue representar nem a si mesmo. O mundo gira. Ele quer descer do gira-gira da infância. Não consegue. Uma ânsia sobe à garganta como labaredas. Um incêndio corrói o velho ator por dentro. Destrói tudo. É o Museu da Língua Portuguesa se acabando.



- O senhor está louco, dizem as pessoas ao meu lado. – O senhor está louco, repetem. Eu não sei o que está acontecendo. Tudo ainda está girando em torno de mim. De repente, o velho ator sai do meu corpo como se fosse um encosto maligno. “Carrie, a Estranha” se manifesta nele. Uma baba branca se espalha. As pessoas se afastam. 

No meio da multidão está um homem todo torto, poucos cabelos, andar troncho. Parece um sobrevivente de guerra por trás de um par de óculos com lentes que refletem a luz. Ele tenta escapar sorrateiramente entre as pessoas. Fora ele quem colocara o velho ator naquela cena final. Carrega o roteiro da prova debaixo do braço. Maldito.

As chamas que consomem o velho ator já estão altas. As pessoas olham aquilo como minha mãe olhava as baratas mortas a chineladas que ela incendiava no quintal. Ninguém salva quem não tem chance de uma nova vida. - Primeiro, as crianças, mulheres e idosos. Isto não existe mais. O “Titanic” afunda vigorosamente. A orquestra ainda toca. Ninguém dança. 



- Parou, parou! É assim que Ronaldinho Gaúcho acorda na prisão no Paraguai. O guarda o desperta de um pesadelo desesperador. João da Silva Santos, o João Bobo, ganhara o apelido de Ronaldinho Gaúcho em Bangu 1 por jogar bem o futebol desde quando chegara havia um ano. Fora condenado pela morte de uma família inteira incendiada.

No caminho para o café, João comenta com um dos companheiros de cela que está com queimação na garganta. – Esquenta tudo, parece fogo. – Você está pagando os seus pecados, diz o outro. – Vá para o inferno, diz ele. Os presos caminham como um rebanho. Ninguém se move fora das linhas definidas para o refeitório onde o café será servido.

A vida é uma espécie de engenhoca complicada demais, que nunca vamos conseguir entender como funciona e muito menos como consertar quando engripa do nada. É daquelas coisas que a gente olha, olha, olha e não sai disso. E não há a quem recorrer diante de tudo o que acontece. O negócio é viver, viver até morrer. Ou morrer de tanto viver.