23 agosto 2020

O diabo está nos detalhes

  
Policiais e funcionários do departamento de fiscalização da Prefeitura de Sorocaba
durante a realização de blitz em estabelecimentos da região central 




- Vão lá em cima e prendam todos. 

O homem baixinho, gordo e falastrão dizia cada palavra com convicção quando apontava para o alto do prédio. 

O velho hotelzinho com três andares no centro de Sorocaba era suspeito por si só. 

A movimentação ali vivia intensa. 

Aliás, era assim na maioria dos hoteizinhos, pousadas e casas de massagem da região central. 

Por estarem próximos da rodoviária recebiam muita gente de fora, sem compromisso com ninguém nem nada. Em geral gente sozinha, homens, alguns com envolvimento em crimes em outros lugares, que só se descobria quando eram presos. Não faltava também gente com mandado de prisão decretada, que só se cumpria durante blitzes. 

Havia, é claro, gente que estava ali só para trabalhar e que frequentava o lugar apenas por ser mais barato e não exigir praticamente nada do interessado, além do pagamento da diária do quarto. 

Mas a eles se juntavam prostitutas, que viam nesse público seu ganha pão, sobretudo naqueles que não estavam ali a trabalho. Como o valor dos programas era baixo, elas precisavam realizar muitos em um intervalo menor de tempo. 

Isto fazia a movimentação se manter intensa tanto de dia quanto de noite. 

Prostituição nunca está dissociada de outras infrações penais. O agenciador tinha de ser discreto, mas operava a venda de drogas, bebidas lícitas e ilícitas e patrocinava até crimes, se fosse enganado ou furtado de alguma maneira. 

A polícia estava atônita. 

Era uma operação complicada. Muita gente inocente no meio de potenciais culpados. Não bastasse isso, havia diversos funcionários da prefeitura de outros setores envolvidos: saúde, vigilância sanitária, assistência social e fiscalização, além da Guarda Municipal. 

E a imprensa acompanhava tudo. 

O foco era a exploração da prostituição, mas todos os outros crimes não podiam passar em branco na operação. 

Só que, se a polícia fosse pegar todo tipo de crime, a operação iria ficar gigantesca. 

Por isto, de início a informação do homem baixinho, gordo e falastrão não interessou muito aos policiais. 

Ele dizia que havia drogas lá em cima. 

Falava que uma mulher grande e morena, uma paraguaia, era quem vendia e que ela estava lá em cima. 

O homem era um dos muitos aposentados que frequentavam a praça central Coronel Fernando Prestes. 

Eles eram outra fonte de renda para as prostitutas, embora não a preferida pelos parcos recursos de que dispunham. 

Quando havia blitzes como aquela, tentavam atrapalhar para dar fuga a quem não podia ser preso. Não que quisessem acobertar criminosos. Alguns aposentados recebiam programas gratuitos em retribuição ao acobertamento. 

O problema é que o homem falava o tempo todo e com muita convicção e quando se mente isto não acontece. 

Até quanto pôde, o policial que comandava a operação relutou, mas acabou cedendo e mandou investigar. 

- Como o senhor sabe que a droga está lá em cima? O senhor já foi lá? 

- Imagina doutor. Eu não sou desse tipo. Sou um cara que tem mais de quarenta anos de casado. Não preciso disso não. 

- Se o senhor não foi até lá, como sabe? 

- Eu sei: escreva o que eu te digo. 

- Desculpe, mas não dá para acreditar e nós já checamos esse hotelzinho. 

- Procuraram no cano que fica na cabeceira da cama? Aqueles dois canos que dão sustentação à cabeceira são ocos. Se procurarem embaixo de uma tampinha de plástico que recobre a superfície de cima encontrarão um buraco de chave. 

- O quê? 

- Vão lá e prendam eles. A chave fica atrás do cano de esgoto da pia. A piazinha que fica perto da janela do quarto. 

A polícia foi e achou a droga e a mulher. 

O homem baixinho, gordo e falastrão foi preso como cúmplice. Ele não soube explicar como tinha tantos detalhes sem nunca ter subido ao hotelzinho. Quase enfartou, mas enfrentou firme. 

Depois se soube que não tinha participação na venda das drogas. 

Só denunciou porque fora abusado por um homem naquele quarto a mando da mesma mulher quando revelou que não tinha dinheiro para pagar o programa. 

Mas ele aprendeu uma máxima da investigação policial: toda mentira contada com riqueza de detalhes se torna verdade. 



Não me lembro exatamente a data destes fatos, mas ocorreram em um dos cinco períodos em que trabalhei como repórter da Secretaria de Comunicação da Prefeitura de Sorocaba. 

Creio que foi em 2005. 

Nesse período havia uma médica da Secretaria de Saúde que usava bastante o recurso das blitzes para resgatar pessoas pressionadas à prostituição e idosos maltratados em clínicas ilegais. 

Havia também um cerco da fiscalização do governo para deter estabelecimentos sem documentação e sonegadores de impostos cujos casos eram frequentes. 

Depois de participar da primeira edição escolhido ao acaso na secretaria, a médica gostou do meu trabalho, sobretudo da minha discrição e organização, que eram essenciais para aquele acompanhamento, e pediu ao secretário da pasta que só me mandasse para as operações. 

A função do repórter da Secretaria de Comunicação era fazer a filtragem sobre o que deveria ser publicado e o que não deveria pelas mais diversas razões, entre elas as técnicas, as econômicas, as policiais e principalmente as políticas. 

Tinha também de ser alguém que escrevesse rapidamente, já que as operações aconteciam no final da tarde, quando as redações começavam os encerramentos das edições e qualquer atraso poderia deixar os resultados do trabalho de fora, caso eles não fossem escandalosamente chamativos do ponto de vista jornalístico ou de jornalistas. 

Além disso, o profissional tinha de ter um bom trânsito nas redações por ser encarregado ainda de chamar a imprensa nos momentos-chave das operações e garantir que ela viesse, sempre com a missão de dar visibilidade, sem escândalos que colocassem luz no que não se queria iluminado, mas que chamasse a atenção. 

Um exemplo fora a prisão da paraguaia com drogas e do aposentado que sabia de tudo, sem estar envolvido diretamente. 

As operações eram montadas com muita estratégia e segredo. Havia vários informantes dentro da Prefeitura que ajudavam os prováveis investigados. Eu era dos poucos que não integravam a cúpula, mas participava de reuniões preparatórias. 

A deflagração delas também tinha toda uma preparação. As equipes se dividiam amparadas pela Polícia Militar e pela Guarda Municipal. Isto porque as fiscalizações tinham de acontecer ao mesmo tempo nos vários pontos investigados. Do contrário, um avisaria o outro e não se pegaria ninguém. 

Não se sabia nada das operações fora desse círculo. A imprensa só tinha acesso aos resultados que nós divulgávamos. Os demais setores da Prefeitura viam o que a imprensa dava e alguns comentários de bastidores de quem participava. 



Em uma das operações que fizemos, em que eu acompanhei a entrada dos policiais em uma casa de massagem do centro, aconteceu um fato bastante curioso. 

Invadimos o portão. Alguns policiais foram por fora e outros entraram na recepção e na primeira sala depois dela. Fui com estes, mas atrás deles. 

Encontramos uma mulher loira, alta, bastante jovem, que teclava no computador com um provável cliente. 

Ela foi afastada do computador e ficou de pé ao lado esperando o que seria determinado que fizesse. 

Um policial ficou vigiando os movimentos dela enquanto os outros viam o que havia nas outras salas. 

Eu fiquei com esse policial e a loira. 

Nessa casa em especial não se flagrou nada demais, de irregular, nesse dia. 

Entusiasmado pelo clima da operação, fiz algumas perguntas para a loira enquanto aguardávamos os policiais vasculharem os ambientes, como se fosse da polícia. 

Ela estava muito nervosa. Nunca tinha passado por algo parecido antes. Chegara a Sorocaba havia poucos meses. Era massoterapeuta e vinha de Minas. 

Perguntei com quem ela conversava. Disse que era com a mãe, que ficara em Leopoldina, na zona da mata de Minas. Mas não demonstrou muita convicção. 

A convicção era essencial para saber se estavam falando a verdade. Aprendi com os policiais nas várias operações. 

Resolvi investigar. 

Ela tinha mudado a tela e minimizado o msn, que utilizava, assim que entramos. 

Abri o comunicador e, para minha surpresa, ela falava com um homem da Prefeitura. Marcavam uma visita dele à casa para mais tarde. Mas a conversa era longa. Estavam se falando o dia todo. 

A loira ficou mais desesperada quando a pessoa com quem falava fora descoberta. 

É que o homem fazia o contato durante o dia e no seu horário de trabalho. 

Aquilo era material suficiente para a abertura de um processo interno de investigação, com resultados bastante danosos para o acusado. 

Resolvi levar o caso ao comando da operação para verificar como se procederia naquela situação. 

Ao saber disso, a loira implorou para que não fizesse. Ela sabia que prejudicaria muito o homem com quem falava. 

Eu disse que não poderia evitar. 

Não era eu quem decidia. 

Então ela começou a chorar. 

Tentei fazer com que parasse. Disse que não deveria se preocupar. Afinal, o homem sabia dos riscos que corria. 

- Pode ser que nem dê em nada. 

- Mesmo assim, ele não pode enfrentar isto. Se acontecer alguma coisa com ele, como eu vou ficar? Como? 

- Como assim? Qual é a sua ligação com ele? O que te afeta se ele for punido? 

Ela pediu para que conversássemos longe do policial que guardava posição ali. 

Fomos para a outra sala. 

Com muita dificuldade, a loira me contou que se chamava Juliana e que tinha conhecido o tal homem em uma viagem que ele fez a Minas de férias. 

Ele tinha parentes lá. 

Tiveram um envolvimento e ela ficou grávida. O pai dela a colocou para fora de casa. Ela não tinha o que fazer. Era muito jovem, apenas 18 anos na época. Não tinha profissão e não estudara o suficiente. 

O homem então a trouxe para Sorocaba depois que tivera o bebê. Só que não podia ficar com ela, porque era casado. Alugou um quartinho onde ela vivia com a criança. Sem conseguir emprego por não ter formação em nada, ela dependia dele. 

Ele a colocou em um curso rápido de massoterapia em Itu e arranjou aquela casa de massagens para ela trabalhar. 

- Agora entendi o que acontece. 

- Por favor, não denuncie. 

- Vou falar com quem comanda a operação e pedir por você. Não sou eu quem decide, como te disse. 

Para sorte dela, o caso ficou na casa. 



O número de histórias que presenciei nessas operações da Prefeitura daria um livro ou mais de um, pelo curioso, pelo peculiar e pelas histórias pessoais de cada personagem que conheci ou me defrontei, mas vou me concentrar em apenas mais um: além de Juliana, outro episódio que me chamou atenção foi o de Mayara. 

Eu a conheci em outra blitz no centro. 

Era uma mulher mais velha. Não aparentava, mas tinha 44 anos. Era ruiva, baixinha, com corpo muito bem definido e em forma para a idade. Falava com voz rouca. Ela sabia ser charmosa e demonstrou isto aos policiais. 

Pena que não adiantou muito. 

Entramos na clínica de massagem da mesma forma que fizemos nas anteriores, como se fôssemos agentes da Swat ou do FBI. Era uma sensação diferente que os policiais militares faziam a gente sentir pela forma de abordagem. 

Sempre fui fã de filmes policiais e de investigações que usam a inteligência como arma em vez da força. 

O objetivo era flagrar todos ao mesmo tempo e impedir qualquer fuga ou escamotear de provas ou informações. 

Os policiais iam na frente, eu e outros funcionários da Prefeitura íamos atrás. 

Eles simplesmente abriam os quartos com chaves fornecidas e entravam. O que se via lá dentro em muitas vezes não era publicável e foi o caso de Mayara. 

Quando entramos no quarto, ela estava nua fazendo sexo com um homem. 

A sua reação foi imediatamente se cobrir para que ninguém visse o seu corpo. 

Esse detalhe me chamou a atenção. 

Já tinha presenciado aquela cena de interromper um ato sexual por diversas vezes nessas operações, mas as mulheres não se preocupavam em cobrir nada. Agiam como se estivessem vestidas. 

Esse comportamento é muito comum entre os homens flagrados nessa situação. 

Todos eles agiam normalmente. 

Era comum que os policiais ordenassem que o casal se vestisse. Do contrário, aguardariam as investigações terminarem. 

Isto acontecia porque eram prostitutas na maioria das vezes. Ficar nua para uma mulher que atua dessa forma é normal. Os homens flagrados se acham mais másculos quando vistos em ação. 

Coisa que talvez a psicologia explique ou nem ela, porque a cabeça do ser humano é um mistério, um grande mistério. 

Mayara dava a entender que não era do meio, mas, se não era, por que estava ali? 

Os policiais faziam a investigação padrão. Queriam saber se havia agenciamento para a prostituição, consumo de drogas, se os envolvidos tinham fichas criminais, se tinham alguma coisa ilegal com eles. Eu queria ir além. Saber das pessoas. O que as levava a estarem ali, suas histórias. 

Mayara disse aos policiais que estava ali porque precisava pagar as prestações do carro que o marido havia comprado. 

- O carnê está aqui, ela sacudia o carnê que tirara da bolsa para que todos os policiais vissem e ninguém se detinha nela. 

Falou várias vezes que o marido tinha comprado o carro e que perdera o emprego e não tinha como pagar. 

Só estava fazendo aquilo para arrecadar o dinheiro que seria necessário para o pagamento. Não era prostituta nem gostava daquela situação. Era a necessidade que a havia colocado naquilo. 

Os policiais riam e não davam importância nem sequer se detiveram para ver se o carnê que ela sacudia era real. 

Eu não. Pedi para olhar. Era verdadeiro. Um Uno Mille com parcelas de R$ 594,52 a levara àquela situação constrangedora. 

- Não havia outro meio?, perguntei. 

- Se tivesse, eu teria escolhido, pode ter certeza. Nunca fiz isso. Estou sofrendo por dentro o que você nem imagina. 

- E você acha que terá de fazer quantos programas para pagar o carro? 

- Ah meu filho... 

Ela começou a chorar. 

Os programas das prostitutas e, por consequência, dela também não valiam nada. Se dependesse só deles, ela teria de trabalhar mais umas 18 vezes ainda só para pagar uma prestação do carro. Fiz a conta para ela quando me disse que ganhava em torno de R$ 30,00 por vez. 

- De onde você é? 

- Umuarama, Paraná. 

- Você acha que vale a pena fazer isto por causa de um carro? 

- Não acho. 

- Mas então... 

- Ele me obrigou. 

- Ele quem? 

- O meu marido. 

- Você quer dizer que o seu marido está te obrigando a se prostituir para pagar o carro que ele comprou financiado? 

- Só o carro não. Tudo. Todas as despesas da casa estão nas minhas costas. Ele não faz nada, a não ser.... Deixa pra lá. 

- Não, fale. A não ser o quê? 

- Não se envolva nisso. É melhor para você. Não vale a pena. 

- Diga o que é e eu decido se vale a pena. 

- Não, esqueça. 

- Eu insisto. Prostituição não é crime. Mas agenciar para isto é. 

- Ele não tem medo de ser preso não. 

- E por que aceita isto? 

- Por quê? Eu não tenho escolha. É isso ou isso. Não posso fazer nada. 

- Escute, sempre há o que fazer. Me fale o que está acontecendo. Se eu puder ajudar, vou te ajudar. 

- Eu não quero que minha filha sofra. 

- O que tem sua filha? Ela está com ele? Ele a ameaça e a usa para isto? 

Ela deixou escorrer lágrimas pelos cantos dos olhos e rapidamente as enxugou. 

Avisei a polícia sobre o que acontecia. De início não fui acreditado. Achavam que era golpe de Mayara. Mas depois foram. 

Eu estava na Prefeitura quando recebi uma ligação de Mayara. 

- Ela está comigo. Ela está comigo. Graças a Deus. Graças a você. Obrigado. 

- O que vai fazer agora? 

- Vou embora para o Paraná. Ele não sabe de onde eu vim. Me conheceu no Rio. Pensa que sou de lá. Até tenho parentes lá. Falei com meu pai. Estou voltando. 

- Fico feliz que tenha saído disso. 

- Por que você quis me ajudar? Por que não achou que era uma vagabunda como todo mundo? Ainda mais por ter me encontrado naquela situação? 

- Por um detalhe. 

- Que detalhe? 

- Você quis se vestir rapidamente quando entramos. Nenhuma mulher que flagramos na mesma situação se preocupou com isto. 

- Obrigada. Você foi um anjo. Um anjo de cabelos enrolados. 

Ela disse em uma referência aos meus cabelos encaracolados na época. 

Depois completou: 

- Um anjo sem asas. 

Eu poderia divulgar a história de Mayara para a imprensa, mas, se fizesse, a colocaria em risco novamente. 

Preferi guardar até hoje. 




O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".