07 junho 2020

De repente

A pandemia do coronavírus reduziu os espaços para o interno das casas e tirou a
contagem dos dias da memória, porque a angústia nos faz perdidos no espaço das horas 



Aconteceu assim de repente, como um susto. Não deu tempo de fazer absolutamente nada. Parecia um flash, que brilha o mundo e apaga toda a atenção logo depois. Como a última piscada de olhos antes de um desmaio. Em um momento é luz, no outro é escuridão. Como a última badalada do sino da igreja. Depois de uma sequência frenética, simplesmente para. 

Sempre ouvi dizer que poderia ser assim. Que talvez fosse melhor assim. Tudo aquilo que não nos permite tempo para pensar não dói, não emociona, não marca. A memória não registra. Não vai nos acordar no meio da noite, quando a mente se esvaziar, como um fantasma que vem das profundezas, para dizer que está ali. Não, de repente é melhor. Acaba, se perde, desaparece. 

Mas, se não chama a atenção como algo que a gente espera acontecer, o de repente nos prende o interesse depois. Acontecido, você se pergunta: por que assim, inesperadamente? Por que não permitir que estejamos preparados? Por que não reunir a todos antes de tudo? Por que não criar uma vã expectativa? Não pode acontecer assim. Nada que acontece a nossa revelia pode ser bom. 

Independentemente dos protestos, aconteceu e foi de repente. Nada do que havia vai continuar. Teremos de nos acostumar. E vamos.Temos o péssimo hábito de nos acostumarmos a tudo. Vamos ao mesmo mercado, cozinhamos do mesmo jeito, falamos dos mesmos assuntos, temos as mesmas queixas. Quem disse que não somos fiéis? Mas não deveríamos nos acostumar. 

Nesses tempos de pandemia por causa do coronavírus temos vivido isolados. Ninguém nos visita. Não visitamos ninguém. Pior: não saímos de casa para nada, a não ser para jogar o lixo. Ainda assim vamos de máscara. É como se fôssemos astronautas andando em Marte. Parece que o ar acabou. O vírus se propaga pelas gotículas de saliva no ar. Então temos um ar para cada um. 

Eu que pensava que ia viver os meus últimos dias disputando água. Afinal, essa é a maior riqueza do planeta e um tesouro finito. Nada disso. Estamos mendigando um ar só nosso hoje. Eu que ouvia que o mundo estava perdido na lascívia de bocas que beijam sem conhecer. Hoje as bocas estão escondidas. Falavam que beber álcool em demasia era ruim e agora pode para enfrentar a solidão. 

Definitivamente, não era o melhor momento para acontecer. Ainda mais dessa forma: de repente. Um susto particular é um susto muito maior. Ao observar o corpo da minha janela, fico preocupado. Não, não é com a contaminação. É que eu terei de remover e dar fim. Senão daqui a pouco começa a feder. Assim como se deu de repente, fui até lá de repente e recolhi a pomba morta.