19 julho 2020

Sequestrado por uma vaca

Em 1999 fui cercado por um grupo de vacas em uma estrada de terra no meio das
fazendas de cana de Porto Feliz e fiquei lá preso por elas por horas


- Olha Lauda, disse a pequena Emília apontando para uma vaca furiosa e enorme, que vinha na direção das duas. 

Imediatamente, Laudelina, que era três anos mais velha, agarrou a irmã de dez e a arremessou ao tronco da mangueira frondosa ao lado delas naquele momento. 

- Agarre firme e não solte. Tente subir o mais alto que puder. Se cair, ela vai te pegar. Vamos, não largue, disse ela. 

Após atirar a irmã, ela própria saltou para o galho e dele alcançou Emília, já um pouco mais no alto. 

Se não o fizesse, as duas seriam atropeladas pela vaca. 

Do alto da mangueira, as duas meninas olharam para a imensidão do pasto em Pederneiras, onde a vaca furiosa imperava e montava guarda contra elas agora. 

- Como vamos sair daqui Lauda? 

- Ainda não sei Milha. Não tem ninguém por perto. Estou tentando ver o pai ou a Linda, a Nísia. Alguém tem de vir. 

O rebanho da criação do pai das duas meninas era enorme, mas aquela vaca em especial não fazia amigos. 

- Não entendo por que essa vaca não vai com a nossa cara. Toda vez que passamos por aqui, ela avança. Nunca fizemos nada para ela, fizemos Lauda? 

- Não, o pai disse que ela foi separada de outra vaca com a qual foi criada e não aceita isso. Agora acha que todo mundo vai tirar alguma coisa dela Milha. Logo passa. 

Depois de identificar as meninas no pasto, a vaca abaixou a cabeça e foi firme na direção delas, seguindo os passos marcados no capim amassado pelas duas, e ficou embaixo da mangueira andando de um lado para o outro. 

Sempre que alguém aparecia no pasto, ela agia assim. 

Dois empregados da fazenda já haviam sido pisoteados. 

Todos os dias seu João ia trabalhar na lavoura e os filhos iam atrás para ajudar. As duas ficaram para trás ao se distraírem com flores que Emília adorava ver. 

Ninguém deu pela falta delas. 

Eram as menores do grupo e pouco ajudavam. 

Passavam alguns minutos do início da manhã quando a perseguição aconteceu e o tempo foi seguindo de forma angustiosa para as irmãs, que já estavam cansadas de ficar trepadas nos galhos da mangueira sem se mexer. 

Mas a vaca não arredava pé dali. 

Só por volta da hora do almoço, seu João, o pai das meninas, passou pela mangueira para almoçar. 

Ao vê-las lá no alto e a vaca embaixo, tocou o animal e libertou as filhas, enfim, do medo de serem pisoteadas. 



Quando minha mãe me contou essa passagem da infância dela, eu ri bastante, mas não me identifiquei com aquele medo de pronto. 

Afinal, vaca não mete medo em ninguém, vamos e convenhamos. Se fosse um touro bravo desses que aparecem em rodeio ou um animal mais violento, até poderia sentir alguma coisa. Com uma simples vaca não. 

Mas um dia, quando trabalhava na Gazeta Mercantil e era responsável por noticiar todas as mais de 70 cidades da região de Sorocaba, descobri na prática o que minha mãe havia sentido naquele dia com minha tia Laudelina. 

Tudo começou quando fui convidado pelo dono de uma granja de frangos em Porto Feliz para conhecer as instalações e acompanhar todo o processo de produção. 

Corria o ano de 1999 e naquela época eu viajava sozinho pela região com o meu carro para fazer as reportagens que divulguei pelo jornal entre os anos de 1998 a 2002. 

Eu fazia as reportagens e as fotos. Produzia tudo, desde a pauta, que era a indicação do que seria abordado, até o texto final a ser publicado. Por isso, as viagens tinham de ser bem planejadas para não perder tempo no que não deveria exigir muito mais de mim, como o trajeto. 

Peguei as indicações de onde ficava a granja e parti para lá no começo da tarde. A empresa ficava na zona rural de Porto Feliz e eu teria de passar por algumas estradas de terra entre fazendas para chegar pelo que vi. Encontrar o meu destino foi bastante complicado para mim. 

O primeiro problema foi que não havia ainda o Google Maps (criado em 2005) e o Waze (em 2008), que eu uso hoje para me orientar nessas situações. 

Naquela época, a orientação era por meio de mapa impresso ou guia de ruas. Até mesmo o GPS, um antecessor do Google Maps e do Waze, só foi liberado em 2000. 

Bastou sair do asfalto e começar a pegar as vias de terra das indicações para que eu ficasse totalmente perdido. 

Rapidamente, fiquei sem saber para onde ir. 

Como havia sido prevenido de que isto pudesse acontecer, peguei dicas sobre marcas do caminho, como placas, bifurcações, extensões a serem percorridas, pontes e principalmente nomes de fazendas e de propriedades. 

Segui por elas e fui me embrenhando estradas de terra adentro em meio a plantações de cana. 

Tinha indicações e o destino: faltava o caminho certo. 

Uma viagem solitária como todas as que eu fazia, mas esta com um certo ar de preocupação, já que não poderia pedir socorro a ninguém, se precisasse. 

Os únicos companheiros eram o rádio do carro e o celular, caso tivesse de ligar. Nem sempre o sinal era percebido, mas vez por outra sim. Então teria de andar mais alguns metros ou recuar um pouco para tê-lo. 


Vacas podem ser mais perigosas que tubarões, pois matam uma média de 100 pessoas por ano
 pisoteadas ou atacadas e os tubarões matam 10 pessoas no mesmo período

Já passava das três horas da tarde quando entrei nas estradas mais distantes do asfalto. 

Pretendia chegar até as 16 horas, para poder voltar sem muito risco no começo do escurecer. 

Quando fiz uma curva bem acentuada e longa, me deparei com várias vacas que desciam de um lado da estrada e a atravessavam com destino ao outro lado. 

Eu estava na parte mais alta da via. 

Iria começar uma descida quando as vi. 

Parei o carro devagar para não as assustar. 

Achei que duraria apenas alguns minutos e seguiria viagem, mas não foi assim, infelizmente. 

Uma das vacas me descobriu na paisagem, parou e desviou o seu curso para seguir na minha direção. 

Chegou rapidamente perto da porta do carro e me encarou como se perguntasse o que eu fazia ali. 

Fiquei incomodado e, se tivesse contado a alguém antes de hoje, talvez tivesse sido gozado pelo receio que tive. 

Mas hoje, mais de 20 anos depois, absorvi o que aconteceu e percebo que me faltou habilidade para resolver a situação inusitada sem dúvida nenhuma. 

A vaca que me afrontava parecia ser uma espécie de líder das demais, pois bastou que ela se dirigisse até mim para que as outras também o fizessem. De repente, eu estava cercado de vacas por todos os lados. E o pior é que elas não saíam do lugar: ficavam me encarando e ruminando, como se esperassem que eu fizesse ou dissesse alguma coisa. 

Eu não sabia o que fazer. 

Afinal, nunca tinha passado por uma situação tão estranha como aquela. E temia tomar qualquer atitude que pudesse me causar mais problemas ainda. 

A primeira atitude que decidi tomar foi meter a buzina nas vacas. Achava que assustariam e sairiam da frente rapidamente. Era simples, pensei. 

Apertei a buzina várias vezes e elas simplesmente não se mexiam, sequer percebiam que eu estava buzinando. 

Meu Deus, o que eu vou fazer agora? Tenho horário e não posso voltar por essas estradas de noite, pensava. 

As reflexões pareciam fechas que me acertavam. 

Doía a cabeça, o peito, o corpo todo. 

Decidi ligar para o dono da granja a fim de avisar que me atrasaria um pouco, mas não havia sinal no celular. 

O tempo passava como se fosse um sorvete derretendo ao sol quente do meio-dia e me deixava me sentindo melado pelo suor daquela preocupação infinda. 

Quando fui cercado, desliguei o carro e abri um pouco dos vidros dianteiros, mas isto não impediu que o calor tomasse conta do meu corpo, não sei se pelo nervoso da situação ou se pela tarde de sol que fazia. 



Desligara o rádio para me concentrar no problema. 

Tinha de agir. Não poderia ficar paralisado por um grupo de vacas. Eu estava dentro de um veículo. 

Pensei que poderia acelerar, fazendo muito barulho por pisar forte no acelerador, e tocar o carro para cima delas. 

Não era possível que as vacas não se mexessem. 

Daí lembrei de um amigo dos tempos do Correio Popular, de Campinas, que se acidentou com um cavalo quando voltava do trabalho em uma madrugada de sexta-feira. 

Nesses dias, costumávamos ficar até muito tarde para adiantar as edições de domingo e segunda-feira. 

Essa era a vida em todos os jornais impressos na época. 

Esse amigo seguia para casa em Americana após um dia cansativo de trabalho quando avistou cavalos na pista. 

Mas a velocidade que imprimia ao veículo e a proximidade dos animais não permitiu que ele tivesse tempo para frear. O choque não foi tão violento, mas o que lhe causou problemas sérios foi o fato de o carro bater nas pernas de um dos cavalos. O animal caiu sobre o para-brisa e rolou por cima da lataria depois, até cair morto no chão. 

O corpo do cavalo sobre a capota do carro fez com que a lata amassasse sobre a cabeça desse meu amigo. 

Ele teve traumatismo craniano e se salvou por pouco. 

Imediatamente, recuei do impulso de acelerar para cima das vacas. Por mais lento que estivesse, já que elas estavam bem próximas de mim, fatalmente cairiam sobre o carro. 

Isto não poderia acontecer de forma nenhuma. 

Eu tinha uma entrevista e uma visita a uma granja para fazer. Não poderia ter um problema dessa dimensão. O que enfrentava já era suficiente para me transtornar. 

A vaca que, supostamente, comandava aquela operação era a mais provocativa de todas. Ela me encarava como se tivesse cada milímetro dos meus movimentos contabilizados. Era uma antipatia gratuita, pensei. 

Nunca imaginei que uma vaca se comportasse assim. 

Lembrei-me então da aventura vivida por minha mãe e minha tia quando crianças no pasto da fazenda do meu avô. 

Quem disse que vaca não mete medo? 

Eu retirava ali toda a zombaria que fiz com minha mãe quando me contou o que sentiu na fuga de uma vaca. 

Ela e minha tia tiveram mais sorte que eu, uma vez que lá era uma vaca só e aqui havia pelo menos umas dez. 

Era um bando que me sequestrava literalmente. 

Fiquei pensando no que poderiam pedir de resgate. Risos. Talvez uns dez sacos de feno? Ou um pasto do tamanho daquele que minha mãe descreveu em relação ao lugar onde se defrontou com aquela vaca na infância? 

Que bobagem. 

Eu já estava delirando com aquela situação. 

Bati no cinto e escorreguei para o banco detrás. Lá, abaixei o encosto do banco traseiro para ter acesso ao porta-malas. Talvez tivesse algo, uma ferramenta ou alguma coisa assim, com que eu pudesse enfrentá-las. 

O meu movimento dentro do carro fez com que a vaca líder daquela situação mudasse sua posição para me acompanhar. Com isso, as outras vacas a acompanharam. Parecia que elas esperavam que eu descesse pelo porta-malas. Essas vacas eram mais espertas do que pensava. 

De repente, percebi que o movimento, que as levou para a parte detrás do veículo, deixou a parte da frente livre. 

Era a minha chance de sair dali, mas fatalmente elas se movimentariam novamente se eu fosse para a posição do motorista. Tinha de ser estratégico naquela hora. Fiz o seguinte: mantive o corpo no banco detrás com o encosto abaixado e estiquei o braço até o freio de mão, soltando-o devagar e desengatando o carro para que ele descesse. 

O gesto foi positivo. 

O carro desceu uns dez metros. 

Mas as vacas foram todas atrás do carro e me cercaram novamente, de modo que não conseguisse ligar o motor e sair daquela situação difícil que já me constrangia. 

Estava mesmo encrencado. 

O que fazer?, fiquei pensando outra vez. 



Olhei o celular para ver a hora e saber quanto tempo já havia perdido naquela parada forçada. 

Já se tinham ido mais de quarenta minutos. 

Passava das 16 horas. 

Mesmo que eu conseguisse escapar daquelas vacas, teria de voltar por aquelas estradas à noite. Seria outro problema. Mas eu nem tinha ido ainda. Deixei de pensar. 

Tornei a olhar o celular e percebi que havia sinal agora. 

Imediatamente, liguei para o dono da granja de frangos. 

Não mencionei que estava sequestrado por um grupo de vacas, evidentemente, mas disse que tivera problemas com o percurso e que atrasaria um pouco. Ele entendeu e prometeu me esperar não importava a hora que chegasse, pois queria sair na Gazeta Mercantil de todo jeito. 

Desligado o telefone, fiquei pensando no quanto aquilo era surreal para qualquer pessoa normal. 

Eu não poderia ficar ali preso por um grupo de vacas. 

E ninguém aparecia para ajudar. 

Era um silêncio sepulcral. 

Eu olhava pelos vidros entreabertos e as vacas estavam como antes: ruminando e me olhando sem reação. 

Lembrei da fala de um amigo dos tempos do colégio: 

- Sempre que tiver um problema, procure ajuda em uma boa enciclopédia Barsa. Lá, você vai encontrar tudo. 

Hoje seria algo como um tutorial sobre como escapar de vacas ou como apaziguar vacas bravas. 

Falar isto também é uma coisa surreal para muita gente que nasceu depois daquele ano de 1999. 

Atualmente, quando se tem uma dúvida ou se busca um passo a passo para resolver qualquer problema, basta procurar no Youtube, não é mesmo? 

Só que o Youtube foi criado em 2005. 

Não havia nada disso ainda. 

Até mesmo o poderoso Google, o maior buscador do mundo hoje, tinha apenas um ano de vida naquela época e reunia poucas coisas para serem buscadas. 

Era impossível ainda pesquisar pelo Smartphone como hoje. A internet começou a ser usada em celulares em 1993, mas só em 15 de agosto de 1996, a Nokia lançou o Nokia 9000 Communicator, que foi o embrião do que conhecemos hoje como “celular inteligente”. 

Esse celular foi mostrado pela primeira vez durante a CeBIT, na Alemanha*. Na época, ele foi vendido na Europa pelo equivalente a 1.400 euros (o euro tinha um ano quando vivi essa aventura) e nos EUA por 800 dólares. 

Nem que tivesse no Brasil, eu não poderia comprar um modelo desses por absoluta falta de recursos. 

Eu também não tinha uma Barsa na mão evidentemente. 

Mas se tivesse tido como buscar informações naquele momento, teria ficado mais assustado ainda. Pouca gente sabe, mas uma vaca é mais perigosa que um tubarão. 

As estatísticas mostram que as vacas matam cerca de 100 pessoas ao redor do mundo por ano em média, seja atacando-as ou pisoteando-as, enquanto os tubarões matam apenas dez pessoas no mesmo período. 

As vacas ainda produzem flatulências e arrotos que emitem gás metano e amônia, ambos capazes de causar grandes estragos. Em 2014, por exemplo, um grupo de 90 vacas confinadas em um celeiro, na Alemanha, explodiu o teto do lugar só com o efeito dessas emissões. 

Cada vaca libera cerca de 500 litros de gás metano/dia. 

Não é à toa: elas passam 8 horas por dia comendo, 8 horas ruminando e as 8 horas restantes dormindo. 

Quando já escurecia, um cidadão morador do lugar apareceu perto do carro e gritou para mim: 

- Tudo bem com o doutor? 

- Tudo sim. Só estou preso com essas vacas faz um bom tempo já. Pode me ajudar? 

- Sim senhor. 

- Por que elas me cercaram desse jeito? 

- Ah, é que a Esmeralda, essa vaca que ficou mais em cima do senhor, acabou de ter um filhote. Sempre que acontece isso, elas ficam vigilantes contra todo mundo. 

Rapidamente, o rapaz tocou as vacas e elas foram embora. A tal da Esmeralda ofereceu alguma resistência para me liberar, mas ele tinha jeito com os bichos. 

Só tinha contado essa aventura para a minha mãe até hoje. Eu tinha de me redimir por rir da façanha dela. Aí foi a vez de ela rir de mim e do meu medo de vacas. 

Nos divertimos depois, mas no dia foi tenso. 


Vacas que dão cria ficam mais violentas para proteger os bezerrinhos e podem
 assustar as pessoas com suas reações, segundo os criadores

Finalmente cheguei à granja. 

Nunca uma reportagem me custou tanto. 

Felizmente, o dono do empreendimento me recebeu com muita atenção, paciência e interesse. 

Explicou que a distância do seu negócio da cidade e o isolamento no meio de fazendas de plantação de cana davam aos frangos o silêncio de que eles precisavam. 

Eles nasciam, cresciam e eram abatidos ao som de músicas clássicas. Não podiam ter sobressaltos de nenhuma ordem, sobretudo quando era mais novinhos. Senão morriam. Eram bem fracos e vulneráveis mesmo. 

Até a minha entrada nos viveiros teve de ser preparada. Vesti uma roupa especial de plástico, totalmente branca, acrescida de botas e bonés e protetores de rosto todos na mesma cor, e ainda com passos lentos, fala baixa e gestos controlados, tudo como era com os tratadores habituais. 

O calor era controlado com ventiladores e o frio com aquecedores para manter a temperatura ambiente. 

Nada podia abalar os pintinhos no seu desenvolvimento. 

Eles comiam ouvindo música. Depois dormiam em um silêncio absurdo. Tudo isto até crescerem e ficarem em ponto de abate. Em geral, após um período de 45 dias. 

Todo esse cuidado encurtara o tempo de espera em 45 dias, já que antes demorava 90 dias para ficarem prontos. 

A reportagem foi publicada com destaque na Gazeta Mercantil e me rendeu outras sequências. 

A minha aventura no agronegócio nesse dia terminou com uma escolta oferecida pelo dono da granja para que eu voltasse mesmo de noite por aquelas estradas de terra. 

Não fosse isso, não sei como seria minha volta. 



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".



* Feira realizada por mais de três décadas em Hannover, na Alemanha, e que chegou a ser considerada a maior de tecnologia da informação no mundo.