05 julho 2020

Em um olhar azul como o mar

 

Dona Isaura, uma mulher que encontrei morando em frente a uma cadeia
rebelada, tinha uma rica história ligada a presos e à violência, mas era uma pessoa muito boa


Os olhos de Isaura Maria dos Santos Vieira tinham um brilho incomum. Pareciam iluminar uma escuridão antiga. Eram como um velho filme em preto e branco. Profundamente negros, eles tinham um mistério sutil. Eram tristes, úmidos, pequenos. Mas cativavam pela singeleza. 

- Podem ficar aqui. Se precisarem de alguma coisa, é só chamar. Lá nos fundos tem café e umas bolachinhas. 

A frase de boas-vindas soou como a abertura da porta de um oásis para mim e para mais uns 20 ou 25 jornalistas. 

Eram 18h30 mais ou menos de um sábado quente, não me lembro o ano, talvez 1989, 90, mas algo no início do meu período de trabalho na Folha de São Paulo, que começou em agosto de 1988 e acabou em agosto de 1995. 

Aquela mulher generosa estava abrindo para a imprensa a área da entrada da sua casa e todo o jardim, repleto de flores e arbustos, e ainda nos oferecia café e bolachas. 

Não poderia haver nada melhor àquela hora. 

Estávamos em pé nas imediações desde o início da tarde. 

A casa de dona Isaura ficava a uns 15 ou 20 metros da Cadeia Pública de Americana, no centro, onde um preso, revoltado, segurava um refém e apontava um revólver ora para a cabeça dele, ora para os policiais na margem da rua, que estavam entre nós e ele armados até os dentes. 

Toda a imprensa estava ali acompanhando o desenrolar das negociações e a polícia entendeu por bem concentrar os jornalistas àquela distância para garantir a segurança. 

Quando dona Isaura conversou com o comando da polícia e ofereceu a sua casa para nos abrigar, houve um alívio para os policiais. Afinal, o comandante sabia que jornalista não respeita muito essa coisa de ficar em um determinado lugar e muito menos de ficar quietinho aguardando. 

Até porque a busca da melhor informação, do ângulo perfeito da foto, da imagem mais nítida a ser capturada pela câmera das tevês não podia esperar nem se conter. 

De qualquer forma, a oferta da casa agradava a todos. Os jornalistas estavam cansados. De todos que estavam ali, só os das tevês EPTV, Band e Record haviam feito a troca de jornalistas por findar o turno. Os demais estavam desde o início e enfrentariam o que viesse até a solução. 



Eu estava de plantão naquele sábado e já fazia uns três plantões que vinha pegando situações cansativas. 

Em uma acompanhei o desenrolar do sequestro de um empresário conhecido em todo o Estado e que morava em Campinas, onde era a minha base para a Folha. 

Noutro dia foi um acidente com várias mortes. 

Parecia que tudo acontecia no meu dia de estar a postos. 

Mas eu encarava como um aprendizado. A minha grande e maior experiência em jornal diário aconteceu na Folha de São Paulo. Lá, eu conheci a pauta de fato e de direito. 

Comecei em São Paulo no antigo caderno de Cidades, onde havia uma página só para a Educação. 

Trabalhava nessa editoria e fazia pautas mais amenas. Com a abertura de uma vaga na mini sucursal de Campinas, achei legal mudar, já que tinha uma casa em Salto, cidade que fica a 40 quilômetros de Campinas. Fui para lá com a incumbência de acompanhar o esporte da região. 

Mas não fazia só esportes, embora tivesse muito trabalho na área, já que a região concentrava 25% dos times do Campeonato Paulista na época, e também porque um colega, que havia sido meu professor na faculdade, Luiz Roberto Saviani Rey, também fazia esportes. 

Por conta dessa possibilidade de fazer várias editorias, todos os dias apareciam situações novas ou nas quais eu acabava descobrindo mais uma forma de exercer a minha profissão e aquela da rebelião de Americana era mais uma, eu entenderia depois, quando tudo terminasse. 

Na hora em que o telefone tocou e a polícia me informou sobre ocorrência, achei que estava bem encrencado, afinal acompanhar uma rebelião em um sábado à tarde não era o programa dos sonhos para nenhum jornalista. 

Mas o fato de ter um informante na polícia, que me avisou da situação, já foi um aprendizado. A maioria dos veículos da região chegou atrasada ao local. 

Jornalismo não se faz com eficiência chegando tarde ou quando as coisas já aconteceram. 

Chegar antes me garantiu registrar o exato momento em que o preso rebelado disparou contra a polícia, ainda no início das negociações, e pegar o clima da ocorrência. 

Os presos se rebelaram porque havia alguns deles que estavam doentes e não estariam recebendo o tratamento necessário e o líder da rebelião queria ser transferido. 

Só aparecia para negociar um deles, mas a rebelião envolvia pelo menos oito detentos. 

Eles pegaram dois carcereiros de reféns e destruíram colchões e as instalações de cinco celas. 

A reclamação também era por conta da superlotação. 

A negociação da polícia não envolvia o atendimento de nenhuma reivindicação a não ser tratar dos doentes. 

Por isso, emperrara e já durava mais de quatro horas. 


Muitos presos com histórias particulares interferem diretamente na vida de
muita gente com cadeias no meio das cidades




A oferta para ocupar a área e o jardim da casa de dona Isaura aconteceu quando já escurecia. 

Aquela noite prometia devido à dificuldade nas negociações apresentada pela polícia e à resistência dos presos, que agora ameaçavam atear fogo no prédio. 

Os jornalistas ainda se ajeitavam cada um em seu novo espaço quando um estagiário iluminador de uma das tevês ligou o refletor para ajudar o repórter cinematográfico. 

Aquele facho de luz rompendo a escuridão de repente assustou muito o preso rebelado. 

Imediatamente, ele começou a disparar na nossa direção. Foram apenas dois tiros, mas aquilo foi suficiente para todo mundo odiar o estagiário e para que tivesse jornalista vazando para debaixo da área, que era um pouco elevada. Teve gente que invadiu a casa de dona Isaura com medo. 

- Apague essa merda, seu filho da puta, muita gente gritou e a luz foi rapidamente desligada. 

Felizmente nenhum dos tiros acertou ninguém. 

Os policiais vieram tirar satisfações conosco também. 

A bronca foi geral. 

O comandante da operação disse que, se acontecesse de novo, seríamos todos retirados dali. 

Houve um burburinho de revolta, mas todos entenderam que havia sido cometido um erro de fato. 

Nunca tinha tido ninguém disparando na minha direção. 

A experiência traumática daquele momento nunca mais saiu da minha cabeça e também não deve ter saído da cabeça daquele estagiário. Ele queria ser trocando antes até do turno, mas não conseguiu escapar do clima criado. 



A rebelião avançou a noite. 

Os policiais montaram uma barricada na margem da rua e ficaram de prontidão, enquanto alguém negociava com os presos, mas chegou uma hora em que não havia mais conversa e o silêncio começou a imperar. 

Aí era uma questão de ver quem cansava primeiro. 

E nenhuma das partes cansava. 

Era incrível observar como os policiais resistiam. 

Muitos ali, conforme apurei, já tinham participado de várias rebeliões antes e sabiam como se portar. Eles diziam que a espera é a mais cruel das torturas para os presos. 

Quanto mais o tempo passava, menos poder de negociação eles tinham, mas também mais irritados e violentos eles ficavam com os reféns e com os policiais. 

Por isso, o comando não quis revelar a estratégia que usaria. Até porque os presos acompanhavam lá dentro tudo o que acontecia aqui fora por meio dos jornalistas. Toda a imprensa registrava cada passo e isto era divulgado instantaneamente e visto e ouvido por todos os detentos. 

Entrevistaram a família dos reféns. 

Havia uma mulher grávida de um deles. Tudo para dar mais dramaticidade ao caso. Acho que em parte isto dificultava também as negociações. Saber desses ingredientes dava aos presos mais força. 

Pela Folha, eu tinha de enviar boletins completos a cada duas horas para serem divulgados pela internet. 

O jornal completo com todas as informações só sairia no dia seguinte. Fechamos o primeiro clichê (edição para outros Estados) às 19h com o que havia até ali, que não era muito, mas já tinha uma carga grande de dramaticidade. Os tiros e o clima tenso estavam bem retratados. 

Só não tinha ainda personagens. 

Ouvi policiais, mas as histórias não eram comoventes. Afinal, o trabalho deles era exatamente aquele. As histórias dos reféns dariam boas laudas, mas só depois. 

Teríamos outro clichê, o segundo daquela edição, às 23h (edição que iria para o interior de São Paulo). E um último clichê à 1h (edição que iria para a capital apenas). 

Como as coisas ficaram mais calmas, eu e outros colegas jornalistas fomos para os fundos da casa, onde dona Isaura havia servido o cafezinho com bolachas. 

Ela estava dentro da casa e não saiu antes. 

Os jornalistas iam, tomavam café, comiam bolachas, conversavam um pouco e voltavam para o front. 

Quando eu fui, as bolachas haviam acabado. 

Dona Isaura tinha o cuidado de reabastecer constantemente a nossa mesa nos fundos da casa. 

Encontrei-me com ela e pedi para conversar. 



- Gostaria de agradecer muito a generosidade da senhora, eu comecei a conversa. 

Dona Isaura era uma mulher de 62 anos. Nascera em Sergipe e estava na região de Campinas havia mais de 30 anos. Morara em Campinas e agora em Americana. 

- Não precisa agradecer. Faço isto de coração. Sei da dificuldade do trabalho de vocês. Presos sempre dão esse trabalho para jornalistas e para todo mundo próximo. 

- A senhora deve enfrentar muitas dificuldades aqui. As rebeliões são constantes nesta cadeia. É complicado morar aqui tão perto, né? Se bem que essa proximidade nos está dando essa oportunidade de estarmos abrigados agora. 

- Sim, sempre tem rebeliões aqui. Mas eu já vivo isto há muito mais tempo. Estou acostumada. 

Dona Isaura disse a frase já se despedindo para entrar. 

Mas o que ela disse me interessou. 

A maioria dos jornalistas estava focada no que os presos e os policiais faziam e sequer prestaram atenção na mulher. 

Eles vinham, tomavam café, conversavam entre si e voltavam para a frente da casa para ficar a postos. 

- Só mais um minuto dona Isaura. A senhora disse que já enfrenta isto há muito tempo. Sempre morou perto de cadeias como essa? Lá em Sergipe também? 

- Sim, mas você quer mesmo saber disso? 

- Sim, quero sim. 

- É uma longa história que não sei se vai ter paciência para ouvir: eu fui presa por um par de olhos azuis como mar. 

- Como assim?, quis saber. 

- Quando eu tinha 16 anos conheci o Mauro, um homem alto e loiro. Ele era bem mais velho que eu. Tinha 28 anos. Eu estava em um bailinho do clube lá da minha cidade. Não consegui fugir daqueles olhos. Ele me olhou e me conquistou. Saímos de lá para um lugar mais tranquilo, como ele disse, e acabamos fazendo amor. 

- Nossa, que história. 

- Pois é, mas não foi um mar de rosas. Eu fiquei grávida. E eu não sabia nada dele. Perguntei para as minhas amigas. Umas perguntaram para outras e acabamos chegando nele. Mauro era casado. Tinha quatro filhos já. 

- Puxa que triste. 

- Aí eu tinha duas coisas a fazer: ou tirava o filho, que era o que ele queria, ou levava a gravidez até o final. 

- E a senhora manteve a gravidez? 

- Eu disse a ele que não tiraria, mas minha família me colocou para fora de casa com uma mão na frente e outra atrás e eu quase enlouqueci. Imagina uma menina grávida jogada na rua? Não sabia o que fazer. Fui atrás dele. 

- Mas e a família dele? 

- Ele me disse que não poderia fazer nada por mim, que tinha família e que não tinha dinheiro também. 

- E a senhora? 

- Eu peguei uma faca e fui para cima dele. Desgraçado, na hora de fazer faz, mas depois não assume. Ia cortar o que ele tinha no meio das pernas. Quase consegui. 

- Meu Deus, e aí? 

- Lutamos e ele conseguiu tirar a faca das minhas mãos. Depois me bateu tanto, que fiquei desacordada. Só que a nossa briga chamou a atenção da vizinhança. Várias pessoas cercaram o Mauro e queriam linchá-lo. 

- Ele conseguiu escapar? 

- Ele estava com a faca na mão. Quando viu que seria linchado, agarrou uma menininha de uns seis anos e disse que a mataria se as pessoas avançassem. Todo mundo parou com medo. Mas um sujeito lá era mais doido que todo mundo. Ele gritou vamos pegá-lo e as pessoas avançaram. Então o Mauro cortou o pescoço dela. 

- Nossa. Aí ele foi morto? 

- Não. A polícia chegou a tempo e evitou o massacre. Mauro foi levado para a delegacia. Foi julgado e condenado. Apesar de tudo, eu fui vê-lo na cadeia. 

- Como ele reagiu? 

- Ele disse que me amava e eu também gostava daquele desgraçado. Além disso, carregava um filho dele. Fui ajudada pela igreja do bairro e por vizinhos. O padre me arranjou um lugar para ficar na casa de uns paroquianos. 

- Bom, mas isso durou quanto tempo?, quis saber. 

- Ele pegou 25 anos e seis meses de prisão. Eu fui visitá-lo durante oito anos seguidos após a prisão. Levei o filho dele para ele conhecer. O Luan adorava o pai. 

- Entendi, mas como terminou essa história? 

- Em um dos encontros íntimos que tivemos na prisão, eu fiquei grávida do Mauro de novo. Tive o Peter, que hoje tem 40 anos. Aí eu conheci o Juvenal. 

- Juvenal? 

- Sim, o Juvenal era da igreja. Ele acompanhou toda a minha vida difícil e sempre me ajudou. Um dia aconteceu. Fizemos amor em casa e eu fiquei grávida dele. 

- E o Mauro, como recebeu isso? 

- Ele ficou louco. Nunca me perdoou. Quando conseguiu liberdade condicional, ele veio atrás de mim. O Juvenal quis intervir e ele matou o Juvenal com dois tiros. 

- Nossa, e voltou para a cadeia? 

- Voltou. Eu peguei os meus filhos e vim para Campinas. Uma tia minha morava lá. Fui morar com ela. Foram anos difíceis novamente, mas sobrevivemos. Ela me ajudou. 

- O Mauro continua preso? 

- Não, ele conseguiu sair anos depois e veio atrás de mim. Morei quatro anos em Campinas. Quando soube que ele viria atrás de mim, me mudei para Americana. 

- Ele não a achou? 

- Eu conheci aqui o Josué, um policial militar. Quando o Mauro veio atrás de mim, ele foi morto por Josué. Ele foi preso e cumpre pena até hoje. Fiquei na miséria de novo. Sem ter como cuidar dos meus filhos. A história se repetiu. 

- E como a senhora conseguiu sair dessa situação? 

- Fui morar na rua com as crianças. Lá, eu conheci o Leandro Rosa. Ele cuidou da gente. Embora morasse na rua também, ele tinha algumas coisas que lhe davam dinheiro. Depois de algum tempo, conseguimos sair de lá e ir para uma casa. Não esta onde estou hoje, mas uma casa boa. 

- Que coisas ele fazia que davam dinheiro? 

- Pois é, quando eu descobri já era tarde. Ele vendia drogas. Um dia matou usuário que não pagou e foi preso. 

- Aí a senhora voltou a viver na rua? 

- Não, ele tinha me dado uma condição melhor. Havia montado um comércio e vivia dele. Quando ele foi preso, eu consegui sobreviver com o que tinha. 

Quando dona Isaura me contava essa parte da sua vida, houve mais disparos dos presos dentro da cadeia. A informação era que teriam atirado em um carcereiro refém e eu tive de correr lá na frente para acompanhar o desenrolar das coisas. Na verdade, o disparo fora para o chão. Ninguém se ferira felizmente. 



As rebeliões deixam histórias que marcam a vida de todos em redor e ainda
 na cabeça de cabeça de jornalista que acompanha



Era madrugada já quando os ânimos haviam serenado, mas dona Isaura havia se recolhido e a história parou aí. 

A rebelião prosseguiu até perto do meio-dia do domingo. 

Pela manhã, dona Isaura serviu um café reforçado para todos os jornalistas e os policiais também comeram lá. 

Não tive oportunidade de conversar novamente com ela para saber como terminava a sua história. 

Mas acabei descobrindo depois que ela montara uma cozinha industrial e que passou a servir refeições para os presos da Cadeia de Americana por conta do marido preso. 

Ganhou fama por fazer uma comida boa. 

Ela empregava os filhos e conseguiu sobreviver durante todos os anos que se seguiram até aquele em que estávamos vendendo marmitas não só para os presos, mas também para empresas e pequenos comércios. 

Vinha daí a estrutura que ela oferecia aos jornalistas. Tinha prática e tinha condições de fornecer café e até comida se ficássemos mais tempo lá. 

O marido dela, Leandro Rosa, acabou sendo assassinado na prisão por rivais de facção, mas isto já tinha anos. 

Mesmo assim, dona Isaura quis continuar o trabalho e se manteve no mesmo endereço, aquela casa quase em frente à Cadeia Pública de Americana para onde se mudou para ficar mais perto do marido que a salvou da miséria. 

Uma baita de uma história ligada à reportagem que eu fazia sobre a rebelião, mas o factual engoliu tudo. 

Não pude divulgar nada disso. 

Uma rebelião tão longa merecia mais detalhes da ação dos presos, que também tinham feito muita coisa. 

Tinha a história dos carcereiros ainda. 

Antes de me despedir de dona Isaura, perguntei a ela o que sentia em relação ao Mauro e ela me disse: 

- Por incrível que pareça: às vezes, tenho saudade.



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".