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10 julho 2020

Quarentena


Conviver é tão difícil quanto ficar sozinho, com o agravante de que conviver
exige mais que persistência e dedicação: exige paciência



O que você disse? 
Não disse nada. 
Fale, diga o que disse? 
Nada, não disse nada. 
Deixe de coisa, diga. 
Não disse nada. 
Diga de uma vez. 
Nada, já disse. 
Eu sei que disse algo. 
Disse que você é surdo. 
O quê? O que disse? 
Nada, não disse nada. 

16 junho 2020

O menino e a cidade

A imagem de Nossa Senhora do Monte Serrat, no alto do bairro da Estação,
ostenta o título de segundo maior monumento religioso do Brasil 



Desde muito pequeno eu ouço falar 
de uma Salto de lindas cascatas, 
de bandos de taperás, de verdes matas, 
belezas que levam a nos orgulhar. 


Hoje não há mais nada além da bruma: 
as cascatas viraram banheira de espuma, 
os taperás voaram para sempre, 
as matas só existem na imaginação da gente. 


Sonho com aquela época de tardes serenas, 
de praças floridas, de casas pequenas, 
de frutos nas matas com mais sabor, 
de noites de mais estrelas, do poema de amor. 


Eu cresci com esta cidade, alargando horizontes. 
Já sai e já voltei como brincavam nas fontes 
os bandos de taperás do passado. 
E com o tempo por ela fiquei apaixonado. 


Mas tudo mudou demais na minha cidade. 
Ela se tornou grande de verdade. 
Para onde olhar então, meu Deus, 
se aquela beleza desapareceu dos olhos meus? 


Eu olho para o meu tempo. 
Os antigos versos de louvor têm outro momento. 
Vou cantar com eles esta minha terra 
porque ela ainda muitas belezas encerra. 


Os bandeirantes, faz tempo, foram embora, 
mas gente de todas as partes ainda agora 
vêm ver se esta cidade continua formosa 
e abençoada pela virgem orgulhosa. 


Hoje é estância turística, se transformou 
para mostrar ao mundo o que o homem criou 
e mistura a isso aquilo que Deus lhe deu 
para suplantar o que de feio concebeu. 


Do passado uma rocha de milhões de anos resiste. 
Só em dois lugares do mundo ela existe. 
A Moutonnée testemunha uma era antiga 
de quando os continentes foram área contígua. 


A cidade ganhou parques: um deles aquela pedra envolve, 
outro um lago e um terceiro a virgem nos devolve. 
A padroeira se estica em 30 metros na Estação e lá do alto 
observa, entre triste e esperançosa, a nova Salto. 


As lindas cascatas, infelizmente, não mais verás. 
Nem as verdes matas, nem os bandos de taperás. 
Mas este chão conquistou o Brasil com J. Silvestre 
e encantou o mundo com Anselmo e Flávio Pretti. 


É de Salto ainda uma empada frita esperta, 
que deixa quituteiras da Bahia de boca aberta. 
Temos aqui também uma fábrica que faz dinheiro 
para todo o país, o continente inteiro. 


Nossas belezas são a nossa gente a sonhar. 
A cidade cresceu, mas não perdeu a sua história: 
os nossos museus guardam-na de boa memória. 
Agora como antes Salto é uma terra para se amar.

11 junho 2020

Teu mundo é mar para o meu rio

 

São muitas as oportunidades nesta vida, mas nem todas são sinceras: há que se
 separar quem fala mais do que faz de quem faz mais do que fala


Embriago-me de paixão, 
como um louco poeta, 
para falar-te ao coração 
da tua jura predileta. 


Mas é vã minha dedicação, 
está longe de te ser dileta. 
Não bebes desta ilusão, 
esta loucura não te afeta. 


Preferes ceder ao aluvião 
de outra fala abjeta, 
que te dá horas de animação 
e ao teu lado se aboleta. 


De que vale minha emoção 
aqui e agora se tens o profeta 
para falar à imaginação, 
esse doce que te desperta? 


Só sei falar da atração 
que tens e meu peito aperta. 
Não sou bom falastrão. 
Sou só um pseudopoeta.

31 maio 2020

Outono


Um menino empina pipa aproveitando o vento do outono em um dia de frio, onde
todo mundo está recolhido por conta do coronavírus 




Dia de frio esse. 
Venta lá fora 
e a poeira carrega folhas. 
Um menino empina pipa. 
Um redemoinho confunde o vento. 
Na esquina, vai a tarde. 


O céu está nublado. 
O ar esquecido e longe. 


As casas frias fechadas 
na periferia 
parecem mais solitárias. 


Quase ninguém 
assiste ao voo da pipa, 
quase ninguém. 


Um cão fareja o caminho perdido. 
Focinho gelado, 
orelhas caídas, 
olhos tristonhos. 
Inadvertidamente, tomba latas 
em um sonho quase impossível 
de encontrar comida. 


Parece perguntar: 
quem sabe? 
E quem sabe? 


Ninguém, certamente. 


Com poeira nos olhos, 
os planos ficam em redemoinho, 
as portas fechadas. 


Mas não importam os enganos 
nas latas tombadas. 
O sonho voa como a pipa 
na esquina, na rua, na distância. 


A vida também é feita de dias frios. 


O cão caminha. 
Para onde, ninguém sabe.

30 abril 2020

A barata e o copo

O que parece asqueroso faz parte da vida cotidiana e é capaz de
mostrar um lado que nunca foi imaginado


Uma barata grande,
desajeitada,
percorre toda a boca do copo,
melado de açúcar,
como se estivesse apaixonada
pelo doce.


Como se ele fosse
o seu amor.


O copo imóvel,
molhado pela calda,
parece que se esquece
da vida que ali se esbalda.


As lambidas secam a boca
e o açúcar desaparece.
Então aquela relação
perde a emoção.


Um tirou do outro
o que o outro tinha.
O primeiro seca, definha.
A sina do segundo
não é menos trágica.
A lâmpada mágica
se desliga.


O escuro cobre o palco.


Não há mais ardor:
amor precisa de liga...