16 agosto 2020

A noite da liberdade perdida

Em 1986, eu dirigia o jornal "O Trabalhador", em Salto, e o país vivia a implantação do
Plano Cruzado, o que me fez experimentar uma situação inusitada, que jamais esqueci ao longo da carreira




- Peguem, peguem esse homem. 

Não tive tempo nem de pensar, o que se dirá de ver quem era que deveria ser pego com toda aquela fúria. 

O homem perseguido me atropelou literalmente. 

Eu entrava em um supermercado em Salto e fui derrubado sentado no chão, sem conseguir me segurar. 

Quando comecei a me levantar assustado, atrás dele vieram várias pessoas e elas pareciam dispostas a tudo. 

Berravam palavras de ordem e faziam gestos. 

Mas, sem querer, eu o ajudei a escapar. 

Como estava na frente das pessoas, elas se atrasaram e não tiveram tempo de alcançá-lo. 

Ele dobrou a esquina rapidamente e desapareceu. 

- Por que você o ajudou?, me indagou a mulher que esgoelava antes para pegarem o tal homem. 

- Eu? Não ajudei ninguém. Ele e vocês me atropelaram. 

- É verdade Ana. Ele não teve culpa, disse outra mulher. 

- Teve sim, ela insistiu, se colocando bem na minha frente como se fosse me agredir a socos e pontapés. 

- Escute, eu não fiz nada e nem sei por que vocês perseguiam aquele homem, bradei, inchando o peito. 

O gesto de enfrentamento mais enérgico acabou acalmando os ânimos da mulher. 

Em seguida, ela mascou: 

- Vamos ver se achamos o safado. 

Disse e seguiu em marcha. Os outros foram atrás. Eram várias mulheres. Havia dois ou três homens. Umas cinco crianças acompanhavam meio sem saber o porquê. 

Finalmente consegui me reequilibrar. 

Bati as mãos nas roupas para tirar o pó do chão e arrumei a camisa, que ficou toda torcida e amassada. 

O rapaz do caixa olhou intrigado para mim. 

- O que foi aquilo?, perguntei. 

- Você nem imagina. 

- Como assim? 

- Aquele que fugiu é o dono do supermercado. 

- Não entendi. 

- Essas loucas são as fiscais do Sarney. 

- Ah, começo a entender. 

- Elas tentaram linchar o seu Manoel, porque ele aumentou o preço das bolachas. 

- Nossa, mas as coisas estão saindo do controle. 

- Estão sim. A gente nem sabe o que fazer agora. 

Fiquei pensando em tudo aquilo. De repente percebi que o supermercado estava praticamente fechado já. 

- Ei, espere. 

- O senhor desculpe, mas vamos ter de fechar. É capaz de elas voltarem e quebrarem tudo aqui. Desculpe mesmo. 

O supermercado foi fechado na minha cara. 



Era o ano de 1986, precisamente o mês de junho. 

Eu dirigia o jornal “O Trabalhador”, que assumi assim que me formei na faculdade, um ano antes. 

O jornal era o mais antigo de Salto. Havia sido fundado em 1949. Minha missão vinha sendo transformá-lo. Nascido no Salão Paroquial da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Monte Serrat, ele precisava se tornar um órgão de comunicação da cidade toda para poder crescer. 

Quando assumi, tirávamos apenas 697 exemplares. 

Já tinha inserido várias mudanças, que foram decorrentes do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). 

Eu e meu grupo da faculdade havíamos planejado uma série de alterações e eu vinha fazendo. Todas elas foram pensadas a partir de pesquisas de campo que fizemos. 

O desafio era ganhar leitores novos para ampliar o número de assinantes, sem perder os antigos. 

Assim, tudo que acontecia em qualquer lugar de Salto me interessava. Era sempre uma oportunidade de integrar o jornal à comunidade local como seu representante fiel. 

O que acontecera comigo no supermercado era um exemplo. Eu já tinha preparado uma reportagem com todas as informações. Consegui inclusive entrevista com o dono do supermercado espantado pela turba de fiscais malucas. 

Toda aquela mobilização das pessoas em torno dos preços era fruto da crise econômica que vivíamos. 

O monstro daquela época não era o coronavírus. Era a inflação. Um dragão que beirava os 240% ao ano. 

A inflação roubava tudo o que produzíamos. 

Os produtos perdiam valor no mesmo dia. 

Por isso, em uma sexta-feira de fevereiro, o então presidente José Sarney (PMDB) decretou feriado bancário e anunciou a implantação do Plano Cruzado. 

A proposta era corrigir os salários automaticamente toda vez que a inflação passasse de 20%. 

Quem trabalhava registrado achou maravilhoso. 

Ainda mais porque o governo deu aumento de 15% para o salário mínimo e de 8% para o funcionalismo. 

Os empresários chiaram bastante. 

Achavam que não ia dar certo e criticavam muito. 

Mas o governo não queria saber. 

As medidas visavam deixar a população tranquila. Se a correção dos salários, fazia algo nesse sentido, o que mais ajudou foi o congelamento dos preços de alimentos, combustíveis, produtos de higiene, limpeza e serviços. 

Para regular isso, foi criada a "tabela da Sunab", que era publicada nos jornais e afixada nos supermercados, mostrando quanto cada coisa deveria custar. 

As mudanças conquistaram a população. 

Houve mobilização como se fosse uma Copa do Mundo. As donas de casa iam aos supermercados com a tabelinha de preços nas mãos, checavam e denunciavam aumentos. 

O presidente foi para a tevê, convocou a população a fiscalizar e a ajudar a fechar os estabelecimentos que não respeitassem a tabela da Sunab e a prender seus donos. 

Surgia, assim, a figura dos "fiscais do Sarney". 

Era o que representavam aquelas mulheres que me atropelaram na entrada do supermercado. 

O problema era a insanidade das pessoas. 

Sem um líder sensato, o povo é um monstro sem cabeça. 



O ano de 1986 foi extremamente conturbado por conta das mudanças na economia do país. 

O Plano Cruzado, que criou a moeda cruzado representada pelo símbolo Cz$ resistiu por meses apenas. 

Já de cara o dinheiro perdeu três zeros para passar de cruzeiro (Cr$) a cruzado, uma desvalorização enorme. 

Os aumentos de salário, o gatilho para a inflação e o congelamento de preços deram resultado no começo. 

Mas com o poder de compra e as condições de vida garantidos pelas medidas, os brasileiros começaram a querer comprar cada vez mais e mais. 

Só que os empresários não queriam produzir com o congelamento de preços e os produtos começaram a faltar. 

Resultado: prateleiras vazias. 

Houve filas e até racionamento. 

Nem a carne vinha para os supermercados. 

O governo chegou a apelar para a "desapropriação" de bois no pasto para tentar atender a demanda. 

A grita foi geral. 

Surgiu então o mercado paralelo com preços altíssimos. 

A inflação começou a voltar. 

Quem tinha algum negócio ou quem não dependia do salário pago com registro em carteira enfrentava uma crise particular dentro daquela enorme crise nacional. 

Muita gente quebrou. 

O faturamento do jornal teve uma das maiores baixas de todo o meu período como diretor. 

Tivemos de criar alternativas com novos produtos. 

Mesmo assim, não perdemos o cuidado com a apuração dos fatos que levavam ao noticiário daquele período. 

Isto foi o que aconteceu quando os vereadores de Salto resolveram dar a si mesmos um aumento. 

Demos uma manchete, que é o título principal da primeira página do jornal, para o assunto: “Vereadores rompem congelamento e aumentam o próprio salário”. 

A notícia teve grande repercussão. 

Os vereadores responsáveis pelo aumento ficaram muito irritados com a nossa divulgação. 

A população se posicionou contra a Câmara toda, afinal o congelamento impedia o aumento. 

Eu cumpria com isto o papel de jornalista como havia aprendido na faculdade, aquele que denuncia as irregularidades e que se coloca ao lado da comunidade. 


O governo congelou os preços e criou uma tabela com os valores que poderiam
ser cobrados: quem não obedece tinha o estabelecimento fechado e era preso



Apesar de ter noticiado o aumento dos vereadores e de manter o acompanhamento de todas as ocorrências da cidade mesmo com a crise econômica se agravando, o jornal passou a correr o risco de não sair. 

Anunciantes rompiam contratos e novas divulgações começaram a ficar cada vez mais raras. 

Quando cheguei à redação em uma segunda-feira do final de julho, fui informado que deveria comparecer ao banco para ver como resolver o impasse da conta negativada. 

Nunca a conta do jornal havia ficado sem saldo. 

Estive no banco Itaú e conversei com os gerentes da conta explicando tudo o que acontecera e as providências que havia tomado, mas eles não tinham o que fazer. 

Pedi prazo e voltei para o jornal a fim de estudar alternativas para vencer as dificuldades. 

A secretária me disse que mais dois anunciantes haviam cancelado os contratos e que não teríamos dinheiro para pagar o papel de impressão que teríamos de usar. 

Liguei para o banco na tentativa de fazer um empréstimo. Eles negaram. Disseram que não teria como honrar. 

Sem papel, não poderíamos ter edição. 

Liguei para a Tribuna, de Porto Feliz, que era um jornal parceiro sempre que precisava de ajuda quando quebrava a máquina ou precisava de papel. 

Consegui o empréstimo de algumas resmas. 

A edição seguinte e a da outra semana estavam garantidas, mas depois disso não sabia como fazer. 

De qualquer forma, esse seria um problema para se pensar depois quando chegasse a hora. 

Tinha decidido que não me preocuparia com o que não tivesse ainda acontecido. Se agisse dessa forma, ficaria louco. Os problemas para tocar um jornal não param. 

Ao chegar para trabalhar em uma quinta-feira do começo de agosto, fui surpreendido com todos os funcionários, com exceção da secretária, de braços cruzados. 

Era greve por falta de pagamento. 

Conversei com os três, o linotipista, o montador de páginas e o menino que ajudava aos dois. Pedi que reconsiderassem, pois eu não teria como pagá-los se o jornal não circulasse e que a paralisação prejudicaria ainda mais o faturamento. Outros anunciantes desistiriam. 

De nada adiantou. 

Inflamados pelo linotipista, que era o mais experiente dos três, eles resolveram ir embora para casa. 

A secretária me perguntou o que faria. 

Eu disse: 

- Farei o jornal. 

Tinha aprendido a operar a linotipo e sabia montar as páginas também*. O que precisava agora era de um sangue extra para aguentar todo o esforço. 

Não sei onde o encontrei, mas consegui. 

Terminei o dia no início da noite já. 

E uma certeza surgiu: nenhuma greve pararia o jornal. 



Ao final daquele dia, estava exausto e me sentei no meio da redação para descansar um pouco. 

Foi quando tive uma ideia. 

Poderia adiantar os pagamentos colocando as cobranças em títulos resgatáveis no banco. Perderia um pouco de dinheiro, porque havia uma taxa a ser paga, mas teria recursos para resolver aquele momento. 

Além disso, corrigiria alguns preços. 

Atualizei a tabela de anúncios e a de assinaturas. 

Entre os preços estava também o cobrado por exemplar. 

A edição custava Cz$ 1,80 e passou para Cz$ 2,10. 

Saí da redação com os planos fechados e fui atrás dos três funcionários. Disse a eles o que pretendia e que poderia ter o dinheiro das duplicatas já na sexta-feira. 

Eles confiaram em mim e voltaram ao trabalho. 

Na sexta-feira, fizemos o encerramento da edição e eu consegui receber do banco o adiantamento. 

Com o dinheiro na mão, paguei todos os salários atrasados e comprei papel de impressão. 

Depois que o novo papel chegasse, devolveria o empréstimo feito junto à Tribuna, de Porto Feliz. 

O encerramento da edição daquela semana foi como seu tivesse tirado uma cruz das costas. 

Nunca foi tão difícil. 

Todos já tinham ido embora. 

Fiquei um pouco mais para fazer as contas. 

Lá pelas nove da noite a secretária me ligou. 

- Estava vendo televisão agora há pouco e saiu uma notícia que me chamou a atenção. 

- O que foi? 

- Você corrigiu os preços do jornal, mas eles disseram aqui que o congelamento permanece. Se alguém aumentar preços, poderá ser preso. Você entendeu? 

- Ah meu Deus, tinha esquecido disso. 

- Sim, eu ouvi agora. O que vai fazer? 

- Vou recuar. 

- Mas e o preço impresso no jornal? As tabelas dos anúncios têm como recuar. O preço impresso não. 

Fiquei alguns minutos com aquela informação martelando a minha cabeça depois de desligar. 

Puxa vida, eu tinha de fazer alguma coisa. 

Não poderia deixar daquela forma. 

A única saída era remarcar à mão mesmo. 

A nossa edição era pequena: estava um pouco acima dos mil exemplares àquela época. 

Não havia mais ninguém na redação, então eu mesmo peguei uma caneta preta e passei a fazer a alteração do preço à mão, um a um dos exemplares. 

O número de jornais não era grande, mas, para uma pessoa só fazer tudo, aquilo demorou muito. Fui madrugada à fora rabiscando cada jornal. 

Quando já eram três e meia da manhã, eu estava abrindo a boca de sono e cansaço e ainda faltavam mais de cem exemplares. Acabei pegando no sono. 

Acordei assustado. Já eram quase seis horas. 

Retomei rapidamente a correção. 

Terminei por volta de sete e meia. 

Logo em seguida chegaram os entregadores e levaram todo o jornal alterado e eu fiquei em paz. 

Passei uma noite inteira preso a um erro e pagando por ele para poder ter a tão importante liberdade garantida. 

Aprendi naquele dia uma lição que nunca mais esqueci: jornalistas são pessoas tão comuns e vulneráveis como qualquer cidadão deste país, os vereadores que o digam. 



As letras dos títulos eram compostas uma a uma com
 moldes como esses e depois eram colocadas na
 página montada em uma moldura de ferro. Os
 textos eram feitos de chumbo em máquinas como
 esta ao lado, as linotipos, e as fotos eram impressas
 em placas de aço presas a pedaços de madeira 







O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".



* Inventada por Ottmar Mergenthaler em 1884, na Alemanha, a linotipo é uma máquina que funde em bloco cada linha de caracteres tipográficos. O processo utiliza um teclado como o da máquina de escrever, matrizes que formam cada linha a partir do teclado e uma caldeira. Ligada, a caldeira derrete o chumbo, que assim penetra nas matrizes. Uma parte do equipamento retira as sobras e as linhas são encaminhadas para outro espaço, onde descansam até secar e endurecer. Depois de formadas as linhas de todo um texto, elas são encaminhadas para a montagem da página. Trata-se de um quadro de ferro, onde as linhas de chumbo compõem o texto e os títulos são montados letra por letra. As fotos são feitas em chapas de metal impressas em uma máquina própria e presas em pedaços de madeira para o encaixe na montagem. O conjunto todo é preso por calços, parafusos e porcas. É essa página montada que vai para a impressão em uma impressora plana, ou seja, onde a página passa em linha reta embaixo do rolo de tinta e volta para transmitir a tinta que apanhou na passagem no rolo para o papel. É esse o processo de produção de um jornal a quente. Ele foi substituído nas grandes cidades pela impressão em offset, o jornal a frio feito em impressoras rotativas. Neste processo, a tinta toca uma peça intermediária e esta a página a ser impressa. Apesar do novo processo, as linotipos ainda persistem em jornais pequenos do interior.