14 junho 2020

Uma pedra é construção

As latas de leite em pó vazias serviam para brincar de carreta. Bastava um pedaço de arame
ou fio de energia, um furo no meio do fundo e na tampa



Se tem uma coisa que anda comigo desde pequeno, essa coisa é a imaginação: sempre fui muito pobre. 

Eu acho que não tem ninguém que use mais a imaginação do que o pobre. Não é uma questão de privilégio não, mas de necessidade mesmo. A gente aprende a se virar. 

Lembro-me que não tinha brinquedos como todo mundo, mas isso não era problema para que me divertisse. 

Eu e meu irmão menor Ednei pegávamos latas de leite em pó vazias para brincar, que sobravam depois que nossa mãe usava o conteúdo retirado no posto de saúde. 

Nós furávamos bem no centro do fundo e da tampa. Passávamos um arame e fazíamos uma alça. Depois uníamos uma na outra e enchíamos de areia. 

Estava pronta uma carreta. 

O barulho do motor e das freadas a ar fazíamos na boca. 

Quantas viagens fizemos pelos morros e descidas existentes nos terrenos baldios que margeavam a nossa casa, pelos rios e ribanceiras feitos pela enxurrada e pela erosão nos barrancos que a chuva percorria. 

Éramos Pedro e Bino muito antes de “Carga Pesada”. 

E quantas aventuras vivemos dentro da nossa cabeça, imaginando desafios e coisas muito maiores que nós naquele espaço de terreno que a nossa infância nos permitia brincar com o que inventássemos. 


Eu sou o da esquerda e meu irmão menor Ednei é o da direita. No meio estão nossa
 mãe segurando meu irmão caçula Edison e na frente minha única irmã Elaine



As brincadeiras eram inesgotáveis. 

Lembro-me também de que uma vez eu e meu irmão aprontamos alguma e nossa mãe nos deu uma bronca: 

- Sumam daqui. 

Não sei o que fizemos, mas ela estava uma fera. 

Correu atrás de nós com o chinelo na mão. 

Corremos para um matagal e escapamos felizmente. 

Depois, pegamos forquilhas de galhos de árvore e fizemos revólveres. Um cabo de vassoura virou cavalo. Éramos então os vilões do velho oeste americano. 

Passamos uma tarde escondidos dos xerifes e invadindo tabernas para dançar com as mulheres que eram conquistadas na base dos atos de heroísmo. 

Meu irmão se metia em confusões com valentões armados que queriam resolver tudo no duelo. 

A sorte sempre andava conosco como nas verdadeiras histórias do velho oeste americano, onde a pontaria não era o forte de nenhum atirador metido a dono do pedaço. 

Não é à toa que o William “Bat” Masterson, um dos xerifes mais famosos do velho oeste americano dos filmes que víamos, dava como dica: “Se você quer atingir o coração do seu oponente, mire na virilha”. 

Lutávamos contra índios e roubávamos as índias mais bonitas, que queriam fugir com a gente no nosso cavalo. 

As índias eram representadas por pequenos arbustos que faziam parecer o cabelo comprido. 

Tudo estava na nossa imaginação, mas era real. 

Até um corte no dedo ao mexer em galhos de árvore, virava ferimento à faca na luta com os índios. 

A imaginação é o maior legado que alguém pode ter. 

Associada à criatividade, ela é uma chave de grifo na mão do faz-tudo que a vida cria nas periferias todo dia. 

Já usei muito disso quando criança: fiz tevê pegar com pedaço de bombril, montei gravador de fita cassete com restos de televisão, consertei perna de óculos com arame. 

A lista é enorme sem dúvida. 

Agora na pandemia por conta do coronavírus, fiz halteres com garrafa de água sanitária e areia. Montei colchonete de ginástica com tapetes. Fiz abdominais usando escada. 

A imaginação faz o meu dia parecer lindo, porque eu vejo o céu e voo, sinto o sol e viajo e percebo a brisa e mergulho em um silêncio renovador como se nada me prendesse. 

O melhor disso é que a minha imaginação me faz sonhar com um mundo novo sempre, o que me renova. 

Sem imaginação, uma pedra seria apenas uma pedra. Para mim, uma pedra é construção.