31 julho 2020

A quarentena de juízes e promotores


De olho na candidatura de Sérgio Moro à Presidência da República, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, defende quarentena de oito anos a juízes e promotores que desejem se candidatar 


Não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo.

Esta regra já é antiga, mas, em se tratando de política, ela tem sempre uma nova versão a ser apresentada.

O ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), deu cores políticas à frase na quarta-feira (29), ao defender a necessidade de uma quarentena de oito anos para juízes e membros do Ministério Público (MP) que desejem se candidatar a cargos políticos.

Na opinião dele, o prazo visa descontaminar a atuação do juiz e de promotores candidatos para não prejudicar o trabalho de julgar e também o de investigar.

A afirmação ganhou as redes e virou assunto nos últimos três dias, movimentando o Legislativo para produzir lei neste sentido e os outros dois poderes da República, o Executivo e o próprio Judiciário, para comentar.

O presidente do STF não está errado.

Ainda que mire o ex-juiz Sérgio Moro, que dá mostras de querer se candidatar à Presidência da República em 2022, a norma da quarentena daria mais seriedade ao processo.

Com a Lava Jato, sobretudo, mas em praticamente toda ação do Ministério Público e de julgadores de casos de repercussão, o que se observa é muita pirotecnia.

A função do juiz ou do MP não é aparecer como hoje.

Notem que membros do MP se ocupam de dar nomes a operações que vão fazer e sempre são termos com viés publicitário para ganhar a mídia, como a própria Lava Jato.

Não haveria necessidade disso se o objetivo fosse apenas o de investigar, provar e punir quem é alvo delas.

Muitas vezes observo que há exageros no cumprimento do dever desses importantes ocupantes de cargos na Magistratura e na Promotoria Pública brasileira.

Isto se confirma quando as atuações de uns se sobressaem às dos outros por conta de irem além.

O próprio ex-juiz Sérgio Moro foi alvo de várias reclamações em relação à sua conduta como magistrado e, embora não tenham sido levadas à frente nunca, elas mostram que ele se valeu dessa notoriedade para alçar voos políticos, primeiro como ministro da Justiça e agora como provável candidato à Presidência da República.

Haverá quem dirá que é legítimo que ele pleiteie disputar um cargo político, já que conquistou a simpatia da população com sua atuação firme no combate à corrupção.

Não se nega esse direito evidentemente.

O problema é a coerência de atos.

Quando julgou o caso de Lula, Sérgio Moro foi incisivo e atropelou vários processos para colocar o petista na cadeia.

Não se discute aqui a culpa do ex-presidente.

Se havia uma investigação e havia provas para levá-lo à cadeia, que se o fizesse, mas não eram necessárias algumas ações que foram além dos procedimentos habituais.

Sobretudo porque logo depois o mesmo juiz se tornou ministro da Justiça do então principal adversário do PT.

É tão flagrante a falta de alinhamento ideológico e de prática de trabalho entre Moro e Jair Bolsonaro (sem partido) que ambos não duraram muito tempo juntos. 



O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, uma relação de água e óleo


Moro saiu atirando e atira até hoje.

Também não se discute as razões do presidente.

O que se observa é que a ação para condenar e prender o petista serviu como uma luva ao adversário, que serviu como uma luva ao ex-juiz para ingressar na vida pública e a briga entre eles serviu como uma luva para projetar a candidatura de Moro à Presidência da República.

Mesmo assim, a proposta de Dias Toffoli, endossada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de colocar os juízes e promotores candidatos na geladeira por oito anos, não é a melhor.

Como bem disse o vice-presidente Hamilton Mourão, uma quarentena tão longa é como tirar os direitos políticos dos juízes e promotores candidatos e isto não é justo.

Mais do que estabelecer um tempo adequado para esse período de espera a fim de existir a descontaminação, é necessário criar mecanismos mais eficientes do que o Conselho Nacional de Justiça para julgar os excessos.

O primeiro passo para isso é acabar com a espetacularização da divulgação de operações e com o uso da imprensa como forma de condenar antecipadamente.

A condenação nestes termos ocorre com a divulgação de uma investigação ainda em curso, cujo resultado pode confirmar ou não a tese que determinou a apuração.

O ex-juiz Sérgio Moro ficou famoso em uma espetacularização da investigação do caso Banestado. O episódio lhe rendeu manchetes nacionais pela primeira vez.

Nos anos 90, o ex-juiz determinou que a Polícia Federal oficiasse todas as companhias aéreas para saber os voos em que os advogados de um investigado estavam.

Isto virou notícia evidentemente.

Em outra ação mandou gravar vídeos de conversas de presos com advogados e familiares por causa da presença de traficantes no presídio federal de Catanduvas (PR).

Mais uma vez esteve no noticiário com destaque.

Mas desrespeitou, com isto, até mesmo a sua carreira no Direito, uma vez que a conversa entre advogados e clientes é inviolável, e os advogados não são os investigados.

Enfim, há um erro, a meu ver, na condução dos processos investigativos com essa preocupação de divulgação, que precisa ser barrado com urgência, sem dúvida.

A eleição de representantes da população deveria levar em conta o que cada candidato pode apresentar como proposta para o eleitorado e das condições que ele candidato apresenta para o exercício do cargo.

Isto não se aplica apenas aos juízes e promotores candidatos, mas também a artistas de televisão, cantores e jogadores de diversos esportes, que se tornaram conhecidos por suas atuações no seu campo de trabalho, mas não mostraram a empatia necessária com problemas vividos pela população e tampouco ciência deles.

Que venha uma quarentena sim.

30 julho 2020

Marketing e política são atitude

Natura aposta em Thammy Miranda, homem transgênero e que foi pai no início deste ano, para ser
influenciador na campanha do Dia dos Pais: uma boa estratégia de marketing


A campanha para o Dia dos Pais, criada pela DPZ&T para a Natura, que inclui o uso do ator Thammy Miranda como influenciador, ele que é um homem transgênero e que foi pai no início deste ano, confirma na prática o que Júlio Ribeiro, sócio e presidente da Talent, disse em 2012 em seu livro*: marketing é atitude. E eu digo: a política também. 

Ao escolher para a função uma figura conhecida, mas controversa por sua opção sexual, a empresa sabia que chamaria para si todos os holofotes e que se colocaria em uma polêmica, mas sabia também que posicionaria a marca como a mais lembrada e comentada por sua atitude e isto ocorreu exatamente nestes dias que antecedem a data. 

A despeito de sofrer pressões transfóbicas intensas como tem sofrido, Thammy ganha duplamente ao aceitar o convite para atuar como influenciador na campanha, já que expõe a sua condição e provoca a discussão e também porque é pré-candidato a vereador em São Paulo e nessa pandemia a campanha será quase que só na internet. 

Os resultados já puderam ser vistos desde segunda-feira desta semana (27), quando a participação dele foi divulgada. A Natura e o nome do ator foram os mais comentados nas redes sociais. A polêmica não esfriou com o passar dos dias. Era isto com certeza que a Natura e Thammy gostariam que acontecesse nessa empreitada. 

O desafio era e é grande e o risco também. Este país ainda é extremamente machista e profundamente preconceituoso, mas a forma de mudar é provocando a discussão e colocando em pauta as polêmicas. Aceitar calado e continuar fazendo o que o machismo e o preconceito pregam só consolida ainda mais os dois. 

O questionamento principal, que atropelou os assuntos mais discutidos nas redes sociais nos últimos quatro dias, é se Thammy Miranda representa os pais de fato e o quanto essa dúvida pode impactar negativamente nos negócios da Natura, não só nas vendas para o Dia dos Pais, mas para o restante do ano, ainda mais nessa pandemia. 

A resposta é simples: em que pesem as críticas de bolsonaristas e a defesa de um pastor evangélico de que se boicote a marca, os resultados são positivos e certamente não vão prejudicar o desempenho de vendas, porque a Natura pega na veia uma questão que está em alta na sociedade e que mobiliza muito mais do que transgêneros. 

Não se trata apenas de atitude de marketing e atitude política. A Natura sempre teve uma linha de defesa da diversidade. A aposta em um homem transgênero não é surpresa por conta disso. Essa coerência é uma das argumentações da empresa. Thammy também. Por sua condição, trava uma luta antiga já contra o preconceito. 

Além disso, a campanha não é baseada em um pai transgênero. A proposta é trabalhar o conceito #MeuPaiPresente, sobretudo nessa época de pandemia, na qual pai e mãe devem dividir tarefas. A escolha de Thammy e dos demais influenciadores contratados, que são pais presentes, segue essa mesma premissa. 

Participam da campanha também os influenciadores: Babu Santana, Henrique Fogaça, Rafael Zulu, Família Quilombo, Rafael Cunha, Fernando Ferraz, Bruno Guedes, Dário Costa, Rodrigo Capita, Lucas Silveira, Receitas de Pai, Léo Feck e Leonardo Filomeno, que aparecerão em diferentes peças e momentos já programados. 

Os influenciadores vão usar em suas redes sociais a hashtag #MeuPaiPresente e deverão refletir sobre sua postura e o papel como pais na criação e educação dos filhos. Para a Natura, ser pai é estar presente. É amar, cuidar e estar aberto a se envolver e a se emocionar com os filhos e Thammy mostra isto todos os dias. 

Patricia Capuchinho, diretora de comunicação, engajamento e influência da DPZ&T, afirma que a agência buscou gerar uma reflexão sobre a importância de estar presente e de se conectar com seus filhos por meio da experiência real de pais influenciadores, que já vivem isso em seu dia a dia conforme mostram ao público. 

A Natura está correta em defender todas as maneiras de ser homem, livre de estereótipos e preconceitos. Também está quando diz que acredita que essa masculinidade, quando encontra a paternidade, transforma relações. Ser pai vai muito além de ser homem e gerar um filho como se concebeu e se aceitou pacificamente até hoje. 

Negar que um transgênero possa ser pai à sua maneira é negar que um pai adotivo possa ser pai. Em um país onde muitos pais ao modelo tradicional abandonam seus filhos quando trocam de mulher, ter pais que assumam filhos sem poder gerá-los é muito positivo. As novas famílias com toda a sua natureza de diversidade estão aí e são realidade. 

*Júlio Ribeiro, sócio e presidente da Talent, lançou em 2012 o livro “Marketing de Atitude – Como Fazer Suas Equipes e Seus Clientes Gostarem de Você”, no qual defende que atitude em conjunção com a paixão pelo que se faz constrói uma relação forte e consistente entre marcas, seus representantes e os consumidores.

29 julho 2020

Liderança exige preparação



Lula não se tornou presidente por não estudar, mas apesar de não ter estudado.
É claro que ele é um caso que está na exceção, Então se prepare sempre



Quando meu filho era bem pequeno e viu Lula como presidente do Brasil, ele me disse: 

- Pai, não vou mais à escola. 

- Como é? 

- Olha o Lula: não estudou e virou presidente. Por que eu tenho de estudar, se nem quero ser presidente? 

Fiquei perplexo com a conclusão dele. Ser pai é enfrentar desafios constantemente, mas talvez a maior dificuldade seja ter a resposta certa na hora certa. Quase nunca dá. 

- Sente aqui: vou te contar uma história. 

- Não adianta, você não vai me convencer. 

- Só ouça e depois me diga o que concluiu. 

- Manda lá. 

- Quantas pessoas você conhece que estudaram para valer e nunca foram nada nessa vida? 

- Nem vem com essa. Estou falando do Lula. Ele não estudou e virou presidente. É isso que você precisa ver. 

- Está bem então: vamos falar do Lula. Você acha que alguém chega a ser presidente de um país sem nenhuma preparação? E eu não falo só do estudo. Existem várias situações que formam um líder. Lula não caiu lá de paraquedas. Você conhece a história dele? 

- Mas ele não estudou pai. 

- Sim, não teve oportunidade para estudar e se tornar uma pessoa letrada. Quando isto acontece, precisamos substituir a falta pelo que temos e transformar o que temos naquilo que vai suprir o que falta. 

- Não entendi. 

Passei então a mostrar a ele como se forja um líder como Lula foi e é até hoje, embora eu não seja seu seguidor nem defensor, e como ele chegou à Presidência do Brasil, um país continental, mesmo sem ter estudado. 

Um líder precisa ter confiança em si mesmo, precisa conhecer o seu meio e precisa ter capacidade de inspirar os demais por meio de uma comunicação eficaz e eficiente. 

Todo mundo é igual fazendo o que todo mundo faz. 

Ser diferente é fazer o que ninguém faz. 

Em 1979, os metalúrgicos do ABC deflagraram a primeira greve geral de uma categoria urbana, depois do golpe que instituiu a ditadura militar no Brasil em 1964. 

Essa greve foi liderada por Lula, que fazia o diferente. 

A campanha salarial da categoria vinha na esteira de várias greves localizadas deflagradas desde maio de 1978. 

Mas a Federação dos Metalúrgicos, que coordenava a campanha e reunia 34 sindicatos do Estado na época, propôs aceitar os 44% de reajuste oferecidos pela Fiesp, bem abaixo do reivindicado, que eram 78,1%. 

Lula levou cerca de 113 mil trabalhadores a cruzarem os braços em São Bernardo e Diadema, acompanhados por 47 mil de Santo André e região e mais 25 mil em São Caetano. 

Depois de demonstrar coragem para fazer o diferente, Lula mostrou criatividade na comunicação na primeira assembleia durante a greve, realizada no dia 13 de março, no Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo. 

Ele falou para mais de 60 mil trabalhadores de cima de uma mesa e, como não havia sistema de som, pediu que suas palavras fossem repetidas pelas pessoas que estavam na frente para as detrás e assim sucessivamente até chegarem a todos e aconteceu de forma impressionante. 

A Fiesp pediu o julgamento da greve no TRT, que a considerou ilegal e fixou o reajuste em 44%. Mas os metalúrgicos resistiram seguindo Lula. No domingo, dia 18 de março, trabalhadores e suas famílias realizaram nova assembleia no Estádio de Vila Euclides com 80 mil pessoas. 

A partir dessa manifestação, a população passou a apoiar o movimento. Houve repressão, a diretoria do sindicato presidido por Lula foi destituída e o ministro do Trabalho interveio em três sindicatos do ABC, mas em maio os metalúrgicos conseguiram 63% de reajuste. 

Para ser um líder, não bastam apenas as qualidades já elencadas acima, é preciso também ter persistência. 

Lula se tornou um líder conhecido nacionalmente com o movimento de 79 e depois com a fundação do seu partido, o PT, que ganhou as ruas já na campanha Diretas-já e foi crescendo junto com seu líder na trajetória política. 

Em 1986, ele se tornou o deputado federal com a maior votação do país para o cargo à época: 650 mil votos. 

Em 1989, tentou a presidência pela primeira vez e foi derrotado por Fernando Collor de Mello (PRN) no segundo turno por uma margem muito pequena de votos: 53% a 47%. Mas não desistiu. Em 1994 e em 1998, voltou a concorrer e voltou a perder, ambas no primeiro turno e para Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Mas não desistiu. 

Em 2002, elegeu-se presidente pela primeira vez, derrotando José Serra (PSDB) no segundo turno. Na eleição de 2006, foi reeleito ao vencer também no segundo turno, o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB). 

O que disse ao meu filho é que Lula não se tornou presidente por não estudar, mas apesar de não ter estudado. É claro que ele é um caso que está na exceção. 

O que não é fora da curva é fazer o que tem de ser feito: estudar, se preparar e estar apto quando a oportunidade surgir para poder aproveitá-la na sua integridade. 

Felizmente, ele se convenceu e continuou a estudar. 



O apresentador Rodrigo Bocardi com a companheira de bancada Glória Vanique
e ao fundo o sindicalista Altino de Melo Prazeres Júnior


Por falar em liderança, outro líder sindical mostrou nesta terça-feira (28) a importância de se preparar para o cargo. 

Entrevistado por conta da convocação de uma greve dos metroviários, que foi suspensa na madrugada de terça, o sindicalista Altino de Melo Prazeres Júnior, presidente do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, surpreendeu o jornalista Rodrigo Bocardi, âncora do “Bom Dia São Paulo”, da TV Globo, ao vivo, ao demonstrar que estava preparado para as perguntas que viessem, por mais ideologizadas que fossem, e acabou viralizando na internet. 

O apresentador questionou se havia legitimidade para realizar greve durante a pandemia do novo coronavírus, na qual muita gente perdeu o emprego ou teve redução de salário, e o sindicalista lembrou de reportagem do G1 (que pertence à TV Globo) sobre o crescimento do patrimônio de 42 bilionários brasileiros, em 34 bilhões de dólares, durante a pandemia, enquanto os trabalhadores arcam com os impactos negativos gerados pela covid-19. 

Por fim, arrematou: “É justo os mais ricos, os bilionários desse país, ficarem mais ricos na pandemia? Tá errado. A luta dos metroviários foi para resistir, para que a gente mantenha o nosso nível de vida. A pergunta é: por que os bilionários ficam mais ricos e os trabalhadores têm que pagar o custo desta crise que eles mesmos criaram?”. 

Que não se subestime ninguém nesta vida.

28 julho 2020

Os erros do STF e de Bolsonaro

Alexandre Moraes bloqueia contas em redes sociais de apoiadores de Bolsonaro prevendo
que eles vão atentar contra a ordem institucional: um erro, mas presidente também erra


O episódio envolvendo a decisão do ministro Alexandre Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que mandou bloquear 16 contas de apoiadores de Jair Bolsonaro (sem partido), e a contraofensiva do presidente, determinando à Advocacia Geral da União que derrube a medida, mostra o quanto ambos usam dos seus cargos inadequadamente. 

O ministro não pode suspender contas de apoiadores do presidente sob a assertiva de que esses influenciadores, empresários e ativistas vão cometer ilícitos. Não pode afirmar que essas pessoas vão subverter a ordem institucional e promover a quebra da normalidade. Ele só pode julgar sobre o que aconteceu e não sobre o que pode. 

Do lado do presidente, ele também não pode utilizar a Advocacia Geral da União (AGU) para defender os seus interesses pessoais de proteger os apoiadores. Se o ministro do STF erra ao exorbitar na sua função e a AGU tem razão no que afirma sobre isto, Bolsonaro erra mais ao mostrar esse erro por meio dos advogados da União. 

Quem tem de se defender contra a decisão do ministro são os apoiadores atingidos: a líder de um grupo armado de extrema direita Sara Giromini, o blogueiro Allan dos Santos, o ex-deputado federal Roberto Jefferson (PTB) e os empresários Luciano Hang, da Havan, e Edgar Corona, da rede de academias Smart Fit, que foram suspensos. 

As funções da AGU estão expressas claramente no artigo 131 da Constituição Federal: é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico ao Poder Executivo. Só a ele. 

O grande problema dessas duas arbitrariedades é que elas jogam por terra as liberdades individuais, promovem o cerceamento da liberdade de expressão e beneficiam uma casta, que, se não é genuinamente bolsonarista, o é por afinidade de interesses, conceitos e doutrinas, o que é tão perverso quanto os atos de ditaduras mundo afora. 

O que se espera de representantes de uma Corte fundamental como é a do ministro Alexandre Moraes, é que aja com equidistância, buscando sempre o cumprimento da lei, como fez há 20 dias quando suspendeu 38 contas do instagram e 35 do facebook, além de 14 grupos, que pertenciam a usuários falsos. 

A diferença da ação naquela oportunidade e agora é que a suspensão visava eliminar contas falsas. Evidentemente, elas eram operadas por pessoas ligadas ao presidente Bolsonaro, mas elas não assumiam isto. Quando alguém participa do debate político com a sua cara, isto é legítimo e democrático, ainda que não se concorde com ele. 

Na decisão tomada na última sexta-feira (24), o ministro Alexandre Moraes atacou os mesmos alvos de 20 dias atrás, mas agora estabelecendo um posicionamento inadequado. Os apoiadores de Bolsonaro têm todo o direito de apoiá-lo e de defender suas ideias. Só não podem comprometer a ordem institucional e criar falsas informações. 

Se o ministro provar que isto aconteceu em alguma situação, aí sim deve puni-los com rigor. O que não pode é supor que vão fazer e suspender de antemão. Então quem é Bolsonaro não pode se manifestar? Errado, pode sim. Todos devem poder. Vê-se a mudança de postura do ministro quando aplica multa agora e não aplicava antes. 

Além disso, o ministro não determinou o impedimento de que as pessoas com contas suspensas na decisão de sexta-feira (24) pudessem abrir novas contas. Ora, se elas devem ser impedidas de subverter a ordem para não prejudicar a normalidade, por que podem abrir outras contas? A ação revela uma atitude política e não institucional. 

O que se perde com essa disputa patrocinada por atitudes como a do STF é o debate real sobre o que está acontecendo. Os apoiadores do presidente fazem campanha contra o combate ao coronavírus, porque é essa a condução que Bolsonaro dá. O que se tem de fazer é provar que isto está matando pessoas. Só isto. 

Historicamente, líderes políticos usam a população como massa de manobra para os seus interesses. Quando a população não pensa, age como um monstro sem cabeça. Quebra tudo em redor sem saber o porquê. O que é preciso é mostrar a esse mesmo povo o que ele pode fazer em seu benefício e não em benefício do líder a quem segue.

27 julho 2020

Deputados melhoram Fundeb

 

PEC aprovada na Câmara Federal garante melhorias importantes para a continuidade
do Fundeb e para a educação como um todo, principalmente a educação infantil

A aprovação com modificações do texto final da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Fundeb, na semana passada, na Câmara dos Deputados, melhorou o que é praticado atualmente de forma considerável. 

Mas o texto ainda precisa ser aprovado pelo Senado em dois turnos de votação. Mais que isto: precisará ser aprovado por três quintos dos 81 parlamentares. E se os senadores fizerem mudanças, o texto volta à Câmara. 

O que é positivo é que não precisará da sanção presidencial para entrar em vigor, eliminando mais um ponto de resistência. Isto ocorre por se tratar de uma PEC, apesar de admitir que o governo acione contra. 

Jair Bolsonaro (sem partido) disse, após a aprovação na Câmara, que festeja o novo fundo. Só que sofreu derrota em várias das suas intenções na votação. A celebração que esboçou soa mais como de fachada que real. 

A principal derrota foi a recusa de transferência de cinco pontos percentuais da contribuição da União ao fundo para o programa Renda Brasil e também a manutenção de 70% como mínimo para pagar profissionais da educação. 

Além disso, Bolsonaro não conseguiu convencer os deputados a adiarem para 2022 a retomada do Fundeb e não os convenceu ainda a destinar parte das verbas para matrículas em instituições particulares. 

O ponto de destaque da aprovação é que a continuidade do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb, terá uma contribuição maior da União. 

A ampliação do complemento elevou de 10% para 23% a parte que caberá à União. O Fundeb é formado por 27 fundos, um de cada unidade da federação. Ele recebe 20% do que é arrecadado de impostos estaduais e municipais. 

Entram nesse cálculo os recursos do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) e o IPVA (Imposto sobre Propriedades de Veículos Automotores) e leva em conta o número de alunos na rede para a distribuição. 

A proposta inicial era elevar a contribuição da União para 40%, mas ela foi rejeitada. Mesmo os 23% aprovados não serão de uma vez. Começará com 12% em 2021, 15% em 2022 e cresce dois pontos percentuais ao ano até 2026. 

Outro ponto importante na aprovação dos deputados decorre do aumento de participação da União. Com ele, será possível elevar o gasto mínimo por aluno anualmente, que hoje está em R$ 3 mil e irá a R$ 5,5 mil em 2026. 

A elevação ampliará ainda as cidades atendidas, hoje na casa de 1.699 e em 2026 chegará 2.745, quase a metade dos 5.570 municípios do país, o que representará um total de 17 milhões dos 35 milhões de alunos da rede. 

Dos 23% que o governo federal investirá no Fundeb até 2026, 10% vão ser distribuídos da mesma forma que atualmente e o restante seguirá condicionantes, algumas ainda a serem definidas por leis complementares. 

Uma parcela de 2,5% vai ser distribuída para municípios que obtiverem bons resultados educacionais. As condições para isso estão a serem definidas. Os outros 10,5% serão distribuídos conforme necessidades dos municípios. 

O ponto positivo é que mais da metade desse recurso deverá ser investido na educação infantil, que é prioridade e já deveria estar recebendo mais recursos, haja vista que a situação do ingresso escolar ainda é crítica. 

Com isto, o custo de aluno-qualidade passa a ser constitucionalizado, o que certamente ajudará o país a melhorar as condições das escolas. Ainda alcançará os 11 milhões de analfabetos e os 70,3 milhões que desistiram. 

É importante resgatar quem não concluiu educação básica, mas também abrir a possibilidade de absorver as muitas crianças e jovens na idade obrigatória que estão fora das salas de aula e uma quantidade enorme das creches. 

A média de investimento por aluno é muito baixa para as condições existentes. Hoje o país tem 10 mil escolas que atendem 2 milhões de estudantes que não têm água potável. Essa situação é inimaginável em uma pandemia. 

O texto aprovado prevê também que um mínimo de 70% de todo o valor do Fundeb seja utilizado para o pagamento dos salários dos profissionais da educação básica, um aumento, já que hoje são 60% aplicados nessa área. 

A ideia de priorização da educação infantil é importante pelo que simboliza. Também haverá um teto de 85% para esse gasto com salários. Os restantes 15% dos recursos deverão ser destinados a investimentos. 

Enfim, há situações ainda para serem corrigidas, como a vinculação entre distribuição de recursos para as redes e o resultado, pois quem vai pior é exatamente quem mais precisa de ajuda, mas no geral foi uma grande conquista.

26 julho 2020

O monstro da cela 2

Depois de fazer as fotos mesmo com toda aquela gritaria e ameaças, o monstro
esbravejou que eu podia me considerar um jornalista morto a partir dali.



- Eu vou quebrar as suas pernas a marteladas, para você ficar sem andar por um ano. Vou espremer a sua garganta até você ficar preto por falta de ar. E, quando você estiver chorando de dor, eu vou furar os seus olhos com o meu fura-bolo, um por um, até seu sangue lavar as minhas mãos. 

Enquanto vociferava cada palavra, deixando cair saliva pelos cantos da boca, ele metia os braços musculosos entre as grades na tentativa de me alcançar de alguma maneira, o que deixava a sua pele, mais do que a raiva, ainda mais vermelha, e ele chutava as barras de ferro debaixo com a lateral interna do pé direito, enfiado em um botinão de fazenda, com tanta força, que parecia que as soldas iriam se desprender a qualquer momento, tudo sem deixar de acompanhar meus passos com olhos grandes e vermelhos. 

Dois policiais me levaram até a jaula do monstro, a Cela 2, uma cela provisória, já que a Cadeia Pública de Indaiatuba era feminina e só abrigava homens até o interrogatório e elaboração de boletim. Esses policiais olhavam atentos como se fossem turistas em um circo vendo a jaula do orangotango. A única diferença é que seguravam os revólveres em vez de câmeras fotográficas. E o carcereiro, tão forte quanto o preso (ele tinha sido lutador no passado), fazia postura de quem estava pronto para uma briga de rua: com os braços cruzados no peito, um pé mais à frente e o queixo inclinado para cima, encarando o preso com extrema dedicação. 

Os três estavam mais à frente para me proteger. 

Mas eu tinha certeza de que, se o monstro escapasse, não sobrava nenhum de nós para contar história. 

Nem imaginava quantos homens foram necessários para prendê-lo e colocá-lo naquela cela pequenininha. 

Confesso que fiquei com mais medo pela forma como ele bramia as palavras do que por se tratar de um homem de quase dois metros, forte como um touro e com mãos gigantes, sem falar no ódio que demonstrava por mim, embora nunca tivéssemos nos encontrado antes. 

A imagem dele, fazendo todas aquelas ameaças, não me permitiu dormir naquela noite e por outras seguidas. Quando conseguia pegar no sono, acordava sobressaltado. 

Foi um grande teste psicológico para mim na profissão de jornalista que eu abraçara não havia dois anos ainda. 

Era o ano de 1987. 

Enfrentei o risco para provar que não tinha medo. 

Havia acabado de ser contratado para fazer reportagens ao jornal Periscópio, de Itu, e para a Rádio Convenção, também daquela cidade, como correspondente em Indaiatuba, e não queria decepcionar o Airton Barbi. 

Radialista conhecido na região e funcionário dos dois veículos, ele me indicou depois de saber das mudanças arrojadas que eu havia feito na minha passagem pelo jornal “O Trabalhador”, de Salto, onde fui diretor geral. 

Barbi acreditava muito no meu trabalho. 

Vários jornalistas que estavam começando passaram por suas mãos, mas ele era seletivo demais para reter. 

Uma vez me disse uma frase que me ficou: 

- A glória do jornalismo é a sua transitoriedade. 

Para ele, tínhamos de fazer o melhor naquele momento, porque depois os momentos seriam outros. 

Ou seja, a dedicação a cada trabalho fosse como fosse. 



O receio de fotografar o preso só me veio quando os policiais me advertiram para não fazer fotos dele. 

Disseram que eu correria risco eternamente. 

Afinal, o preso sairia algum dia e não me esqueceria. 

- Normalmente, eles se vingam das pessoas. Tem policial aqui que nem olha para a cara dele nem se deixa ver. É puro medo. A gente tem família também, né? 

- Meu trabalho é fazer as fotos e eu vou fazer, a menos que vocês não me deixem fazer. Mas, se não me deixarem fazer, vou colocar no jornal e na rádio que não deixaram. 

- Não, você pode fazer e vamos te dar proteção para isso. Eu só fiz um alerta. Era minha obrigação. Você sabe o que faz ou, se não sabe, porque é jovem ainda, vai aprender. 

Depois dessa conversa, fiquei assustado. 

Eu estava lá para enfrentar o que tivesse de ser enfrentado. Jornalismo é isso. Você tem uma missão e ela precisa ser cumprida. Se vai ser fácil ou não, não importa. E, cá para nós, nunca é fácil. Nunca foi fácil para mim. 

Pensava comigo que aquele era o momento de testar a minha coragem. Afinal, era jovem e não tinha feito nada ainda que pudesse dizer que fazia parte do meu currículo. 

Admiro muito os jornalistas que enfrentam dificuldades para exercer a sua profissão, mas não se resignam. 

Eu tinha lido o livro “A Sangue Frio”, de Truman Capote, no qual ele faz um romance-reportagem sobre a morte de toda a família Clutter, em Holcomb, Kansas, e traça, com maestria, o perfil psicológico dos dois assassinos. 

O livro é a principal obra desse jornalista escritor que fazia textos de qualidade em vários gêneros e que se tornou uma lenda para os jornalistas em todos os tempos, além de render alguns milhões de dólares ao autor. 

“A Sangue Frio” se tornou rapidamente um sucesso de vendas e de crítica porque Capote estabeleceu uma relação muito próxima com as suas fontes, os responsáveis por lhe dar as informações necessárias para escrever. 

Ele passou mais de um ano na região de Holcomb investigando o crime e essa investigação o levou a entrevistar os criminosos. Depois de ganhar a confiança deles e dos moradores próximos da família, Truman Capote conseguiu fazer um perfil bastante humano dos dois. 

Eu havia ficado impactado com o texto. Capote tem um estilo que ressalta a emoção a partir da apuração precisa dos fatos e conduz o leitor pela curiosidade para chegar ao desenlace. Eu estava com o jornalismo nas veias. 

Disse ao policial: 

- Vou entrar e fazer as fotos, seja ele quem for. 

- Está bem: vamos à jaula do monstro. 

Em seguida, caminhamos até a Cela 2, onde ficavam os presos mais perigosos. Aquela era uma prisão temporária. Esse tipo de detento não ficava ali por muito tempo. 

Hoje presos como o monstro vão para os Centros de Detenção Provisória (CDPs), onde existe mais segurança e a concentração em um local só permite um controle maior. 

Os CDPs surgiram no ano de 2000, quase 13 anos depois, ainda no governo Mario Covas (morto em 2001). 

Eles foram construídos com o objetivo de receber a população das carceragens de delegacias e cadeias públicas como a de Indaiatuba, além de presos provisórios, ou seja, que ainda aguardavam uma sentença judicial. 

Era um preso perigoso por ser forte e não gostar de policiais. Já havia tentado matar dois.
Chegou a feri-los com gravidade, mas eles sobreviveram


Os policiais chamavam o preso da Cela 2 de monstro porque ele fora preso acusado de estuprar e matar seis mulheres em Indaiatuba e cidades da região. 

Era um preso perigoso por ser forte e não gostar de policiais. Já havia tentado matar dois. Chegou a feri-los com gravidade, mas eles sobreviveram. 

Quando fora preso, fiquei sabendo depois, ele movimentou cerca de 20 policiais da cidade com reforços de outras cidades, tal a dificuldade para detê-lo. 

A investigação para chegar ao esconderijo dele durou pelo menos um mês e envolveu policiais da região toda. 

Aos 45 anos, o monstro tinha uma aparência de homem mau, que assusta só de olhar para ele. 

Por isso usava uma moto para atacar as vítimas. O capacete escondia o rosto. Ele anunciava o assalto às mulheres e as obrigava a subirem na moto. Depois levava-as para algum matagal, onde as violentava e matava. 

Uma das suas marcas era se vingar de quem o prejudicava. Ele atacou os dois policiais que quase morreram com esse objetivo. Os dois foram os responsáveis por sua única prisão em flagrante. 

Ele fugiu da cadeia e atacou e feriu os policiais. 

Na sua ficha, havia ainda outros crimes, como de falsificação de documentos, furto e roubo. Também chegou a integrar a organização criminosa Comando Vermelho, que era muito violenta e sanguinária. Matou uma ex-mulher. Ainda assassinou um porteiro de prédio. 

Enfim, não era uma ficha pequena. 

As fotos que eu tirei tinham uma importância grande. Ele poderia ser identificado mais facilmente com elas. As anteriores estavam desatualizadas. O arquivo da polícia na época não era dos melhores. Hoje mudou muito. 

Lembro que fiquei tremendo quando bati as fotos e várias delas se perderam por ficarem embaçadas ou tremidas. 

Quando sai da frente da Cela 2 parecia que eu carregava o monstro comigo. As palavras dele não saiam da minha cabeça e nem os seus gestos: a boca espumando, o pé direito chutando a grade da cela e aqueles braços enormes saindo do meio dos ferros como se ele fosse um polvo. Ao baixar a câmera fotográfica que pendurara no pescoço, depois de fazer as fotos mesmo com toda aquela gritaria e ameaças, o monstro esbravejou que eu podia me considerar um jornalista morto a partir dali. 

Os policiais ficaram impressionados comigo: 

- Você não teve medo? 

- Não, eu disse, mas por dentro não havia nada em mim que não tivesse medo, pavor mesmo. 



O episódio das fotos do Monstro da Cela 2 já estava superado para mim alguns meses depois daquela cena. 

Mas, como os policiais disseram, ele se vingava de todos aqueles que se interpunham no seu caminho e que o prejudicavam de alguma forma, como eu havia feito. 

Pois bem: o meu dia chegou. 

Estava em um supermercado de Campinas fazendo compras quando eu o vi entrar, mas ele não me viu. 

Ele usava um boné que cobria boa parte dos seus cabelos e a aba da frente não deixava ver o rosto todo. 

Também estava com uma roupa esportiva de um padrão que eu supunha não ser o dele pelo que havia levantado a respeito na sua ficha criminal e dos detalhes da sua prisão. 

Mas aquele homem grande e forte era inconfundível. 

Tinha de sair dali o mais rapidamente possível e precisava de chamar a polícia. Naquela época, eu não tinha celular. Os aparelhos começaram a ser fabricados em 1984 e não tinham se popularizado ainda, além de custarem caro. 

Dependia então de orelhões operados com fichas. 

Eu não tinha fichas comigo. 

O problema maior é que eu não tinha como sair dali às pressas. Tinha um carrinho de compras para passar pelo caixa e gente atrás de mim. Naquela época só havia caixas registradoras para calcular a compra. Era demorado. 

Ficava com um olho no Monstro da Cela 2 e outro na caixa para passar as compras. Eu temia que ele disparasse contra mim ali no meio do supermercado. Não haveria escapatória. Ele também certamente não se importaria com aquele monte de gente em volta. 

Foram momentos de extrema agonia. 

Eu transpirava em bicas, o coração estava acelerado e a fala quase não saía para pedir ajuda. 

Mas o pior aconteceu quando ele veio na minha direção. 

Vinha sem ter me visto, eu tinha certeza, mas me veria ao chegar mais perto e aí eu não teria o que fazer. 

Resolvi abaixar atrás do carrinho. 

Ninguém entendeu nada do que estava acontecendo. 

- O senhor está passando mal?, perguntou uma mulher. 

- É só uma indisposição. 

- Vou chamar o segurança. 

- Não, por favor não. 

- Mas o senhor não está bem. 

- Estou melhor já. Não precisa. Obrigado. 

O Monstro da Cela 2 estava a alguns passos de mim. Eu não poderia levantar aquela hora. Seria descoberto. 

- Se melhorou, por que não se levanta? 

- Já vou. 

- Acho melhor chamar o segurança. 

- Acho melhor a senhora calar a boca um minuto. 

- Nossa, quanta grosseria. Estou só tentando ajudar. A gente tem de fazer isso, porque amanhã podemos ser nós... 

- Cale essa boca senhora. 

Ela fechou a cara e se calou finalmente. 

O homem passou pelo caixa e seguiu. 

- Ufa, disse me levantando. 

- Cada louco que aparece, disse a mulher. 

Depois desse sufoco, não vi mais o Monstro da Cela 2. 

Relaxei e esqueci o problema até ser tocado no ombro por alguém cuja voz me lembrava muito o preso. 

- Você por aqui? Que bom te encontrar. Agora vai me ajudar, ele disse nas minhas costas. 

Não me virei com receio de ser atacado fisicamente. 

Tentei chamar o segurança, mas a voz não saía. 

- E então, não vai me ajudar?, o homem insistiu. 

Olhei a frente e vi que poderia pular um carrinho e escapar dali. Não pensei duas vezes. Mas não fui longe. 

O segurança me apanhou e me trouxe de volta ao caixa. 

Aí olhei de frente para o homem que me abordara. 

Olhei fixamente, forçando os olhos para enxergar melhor. Não acreditava naquilo. Não podia ser. 

Mas era. Era outra pessoa. O homem que eu vira entrar no supermercado e que estava ali na minha frente era outra pessoa. Não se tratava do Monstro da Cela 2. 

Que alívio. 

Em seguida, o segurança me comunicou que eu havia urinado nas calças e molhara todo o chão. 

Foi a vergonha mais desejada do mundo.



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".

25 julho 2020

O mal que fazem ao turismo

Projeto do Trem Turístico ligando Salto e Itu ganhou um novo alento com a visita do
secretário de Estados de Turismo, Vinícius Lummertz, esta semana à cidade de Salto


A visita esta semana, aos municípios de Salto e de Itu, do secretário de Estado de Turismo, Vinícius Lummertz, dá um novo alento ao projeto do Trem Turístico. A ideia é que um trem tipo Maria Fumaça ligue as duas cidades para passeios de turistas no futuro. Só que o projeto, iniciado como um grande empreendimento há pelo menos dez anos, se arrasta com sucessivos adiamentos por diversas razões. 

O que é positivo agora é que o secretário anunciou pela primeira vez uma data efetiva para a conclusão das obras, que será o mês de novembro deste ano. É claro que o investimento tinha data para conclusão (era 3 de julho de 2018), mas a data nunca foi aventada com efetividade. Só agora parece que há uma disposição clara do governo do Estado em colocar um ponto final nessa história. 

Ainda assim, a entrega oficial do projeto para uso da comunidade não é uma certeza diante da pandemia provocada pelo novo coronavírus. Também o projeto está orçado em R$ 13,6 milhões envolvendo as duas cidades e não recebeu todos os recursos. Os dois municípios tiveram juntos aportes de quase R$ 60 milhões nos últimos oito anos, mas para obras diversas e não só para o projeto. 

A obra que mais aparece em Salto é a restauração da estação, a qual conta até mesmo com plataformas de embarque. Mas, assim como o restante do projeto, que vive um estado de abandono quase completo, a estação está sendo invadida pelo mato e pelas pichações de paredes. Foi abrigo de moradores de rua por conta do abandono, o que apressou a deterioração do local, apesar dos investimentos. 

A via férrea está escondida embaixo da vegetação, conta com espaçamento desproporcional dos dormentes e boa parte deles está rachada e podre. Construídas de ambos os lados da linha, as canaletas para escoamento da água das chuvas não receberam o tratamento correto e acabaram virando assoreamento para o rio Tietê nas proximidades. A situação é semelhante em toda ligação das duas cidades. 

Não dá, portanto, para se animar por completo, já que muita coisa terá de ser refeita e muito mais dinheiro terá de ser investido. Afora isto, será necessária a implantação de um plano bojudo de marketing para divulgar o projeto e os seus benefícios, a fim de atrair turistas. Também será necessária capacitação de funcionários, instalação de totens, banheiros em condições e lanchonetes. 

Que consigamos. 


Artigo publicado na seção opinião do Jornal Taperá de 25-07-20

24 julho 2020

A ameaça à Lei de Cotas

Apesar da Lei de Cotas, que completa 29 anos nesta sexta-feira (24), há pelo menos 
400 mil vagas para serem preenchidas por pessoas com deficiência e que não são



O governo federal enviou ao Congresso Nacional uma Medida Provisória com a qual tenta mudar para pior a Lei de Cotas, que completa 29 anos nesta sexta-feira (24). A iniciativa precisa ser barrada pelos representantes da população e o cidadão deve cobrá-los para que façam isto. 

A tentativa é alterar o artigo 93, o qual estabelece que empresas com cem ou mais funcionários destinem de 2% a 5% de suas vagas de trabalho a pessoas com deficiência ou beneficiários reabilitados, no sentido de atender jovens e adultos egressos do sistema de acolhimento. 

Se aprovada, a MP permitirá que as empresas optem por substituir a contratação de pessoas com deficiência e reabilitadas por jovens de 15 a 18 anos do sistema de acolhimento e por adultos de 18 a 29 anos egressos do mesmo sistema, que hoje não encontram trabalho. 

A proposta do governo é um retrocesso no que se refere ao alcance da Lei de Cotas, pois a exigência de contratação percentual de pessoas com deficiência ou reabilitadas é a principal razão hoje para que as empresas contratem esse tipo de mão de obra, em geral desprezada pelo mercado. 

Se não tiverem a obrigação, ainda que também não tenham simpatia pelos egressos do sistema de acolhimento, as empresas certamente vão preferir contratá-los a manter o processo atual, apenas para não terem de adaptar nenhuma área como hoje. 

É preciso lembrar que a situação das pessoas com deficiência e reabilitadas ainda não é boa mesmo com a lei. Neste momento, ainda há quase 400 mil vagas no país que deveriam estar ocupadas por essas pessoas, mas não estão por falta absoluta de fiscalização do governo. 

Há outro aspecto importante: com a pandemia provocada pelo novo coronavírus, a situação das pessoas com deficiência em idade de trabalhar ficou mais difícil. Muitas empresas não estão renovando o contrato ou não estão fazendo novos, gerando desemprego nesse setor. 

Só no Serviço Integrado de Reabilitação, Inclusão e Longevidade do Instituto Jô Clemente (antiga Apae de São Paulo), que insere pessoas com deficiência intelectual no mercado de trabalho desde 2013, pelo menos 440 novas inclusões previstas para este ano deixarão de acontecer. 

É claro que os projetos de inclusão de jovens do sistema de acolhimento são bem-vindos e necessários, mas não se pode despir um santo para vestir outro. É isto o que governo federal está fazendo com essa MP, em que pese a aura de boa intenção que apresentou aos congressistas. 

O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, revela que há cerca de 45 milhões de pessoas com deficiência no país e desse total 31 milhões têm idade para ingressar no mercado de trabalho, além de reunirem condições para isso. 

Nesse cenário, é fundamental garantir a Lei de Cotas como vem sendo nesses 29 anos, ainda mais porque a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2018 já indicava que 441 mil pessoas com deficiência estão empregadas pela Lei de Cotas, mas outras 400 mil não. 

O Estado de São Paulo, que tem cerca de 140 mil profissionais com deficiência empregados, é o que tem o maior número de contratações do país. Em boa parte, essas contratações e o pleno desenvolvimento social dessas pessoas está garantido pela popularização da Lei de Cotas. 

O Serviço Integrado de Reabilitação, Inclusão e Longevidade do Instituto Jô Clemente implementou a metodologia do Emprego Apoiado em 2013 e já incluiu em São Paulo, por meio dela, mais de 2.500 pessoas com deficiência intelectual em empresas e órgãos públicos.

23 julho 2020

O efeito Mandetta

 

Luiz Henrique Mandetta, hoje aclamado por onde vai, está fazendo uma grande jogada
de marketing político, que aproveita o bom momento dele junto à opinião pública


Depois de demitir Luiz Henrique Mandetta (DEM) do ministério da Saúde em 16 de abril de 2020, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) volta a ter de enfrentar, a partir desta quinta-feira (23), o efeito Mandetta. 

O ex-ministro anunciou, em entrevista ao programa Ponto a Ponto, do canal BandNews TV, que vai se colocar em praça pública em 2022 como candidato a presidente ou carregando a bandeira de quem ele acreditar. 

E foi mais longe: disse que pode ter uma chapa à Presidência da República com o também ex-ministro Sérgio Moro (da Justiça), outro desafeto do presidente, igualmente demitido por ele, este no dia 24 de abril. 

Na verdade, o médico, hoje aclamado por onde vai, está fazendo uma grande jogada de marketing político, que aproveita o bom momento dele junto à opinião pública, fortalecido pela desastrada gestão do seu sucessor. 

Se observarmos a entrevista do ex-ministro, ele admite que pode ser candidato à presidência, mas afirma que existirão outros cargos em disputa em 2022, ou seja, ele se cacifa ao mesmo tempo para ser governador, vice-governador ou senador. 

Ex-deputado federal por dois mandatos, Mandetta sabe que o jogo político vive do momento e esperou o tempo certo para trocar a roupa de ministro pela roupa de candidato, sem tirar, é claro, a aura de salvador. 

Ninguém me tira da cabeça que Luiz Henrique Mandetta preparou tudo desde o início. Não só a candidatura agora, mas toda a atuação política no ministério. Inteligente como é, ele sabia que seria difícil conviver com Bolsonaro. 

Sendo assim, o melhor a fazer era cumprir o seu papel adequadamente e se opor, de início, de forma leve ao presidente e, depois de ganhar notoriedade, simpatia e confiança popular, de lideranças e da imprensa, se isolar. 

A cartada final seria sair do cargo no auge da crise e transferir tudo que não fez no combate ao coronavírus (lembrem-se que ele prometeu, entre outras, testagem em massa e não fez) para o seu sucessor e ao presidente. 

O anúncio de que se coloca como possível candidato à Presidência hoje vem cercado de cuidados de marketing: na entrevista, Mandetta diz, por exemplo, que prefere o centro aos extremos. Assim, pega quem não quer o PT e o ex-chefe. 

Outro aspecto que integra o planejamento de marketing político do ex-ministro é colocar o dedo na ferida, aberta por Bolsonaro, de ser preconceituoso e discriminatório, dizendo que no centro se respeita as individualidades. 

E complementa com a declaração de que vai promover a revolução de uma década. Sublinha na fala que a década de 2010 a 2020 foi jogada na lata do lixo. Ou seja, ataca diretamente o que foi pior do PT, o governo Dilma Rousseff. 

A estratégia o coloca em evidência como uma terceira via mais sensata, menos radical e mais inteligente, ao mesmo tempo que alinhada com o desenvolvimento. Em suma, é o que quer o brasileiro: que o país avance e se consolide. 

Mandetta age corretamente do ponto de vista do marketing político, porque se alia ainda a Sérgio Moro, que saiu do governo como uma grande vítima: o juiz tido como honesto e justiceiro, que acabou sem emprego por discordar de Bolsonaro.

As pesquisas de opinião mostram que o nome dos dois acabou fortalecido pela gestão Bolsonaro. O presidente é um político esperto, mas não soube dar conta de duas lideranças que cresciam em cima dos seus erros. 

Agora, vai depender muito do que Bolsonaro fizer e da forma como vai reagir à jogada de Mandetta. Se morder a isca e começar a atacá-lo ou descaracterizá-lo, tendência natural pelo seu perfil, vai perder mais ainda. 

Mas ninguém dê o assunto por encerrado, posto que a eleição só acontecerá no próximo ano e Bolsonaro tem a máquina pública na mão. Ele pode reverter esse quadro se trabalhar nos bastidores contra os ex-ministros. 

Contra Moro não há nada de ilegal. Seu senão é a ambição desmedida de ser tornar muito além de um juiz. Mas contra Mandetta pesam acusações do tempo em que foi secretário de Saúde de Campo Grande (MS). 

A população precisa estar de olhos bem abertos para não cair de novo nas ciladas que foram o governo Dilma e que está sendo o governo de Bolsonaro, na escolha que terá de fazer a partir da eleição do ano que vem. 

Mandetta tem um bom histórico: fala bem, é competente como médico, se portou muito bem durante a crise do coronavírus, sabe ser político e sabe utilizar o patrimônio político que herdou, mas não é nenhum salvador da pátria. 

Essa história me lembra a história do bode: um eleitor pede uma casa ao político e este lhe promete a moradia, mas pede para ficar com um bode até que arranje a casa. O bode torna a vida do eleitor um inferno, a tal ponto que ele só quer ter a casa anterior sem o bode. 

Precisamos observar que o sucessor de Bolsonaro precisa ser alguém com condições de levar o Brasil ao desenvolvimento de fato e de direito, com medidas que atendam a toda a população e não a segmentos. 

Nem Bolsonaro nem o PT, pelos nomes que apresenta, mostraram até agora condições de fazer isto. O governador João Dória (PSDB) é um nome isolado no seu partido e já mostrou que não cumpre o que promete. 

Se quiser se tornar um nome com reconhecida condição de governar o Brasil e levá-lo ao patamar que os brasileiros merecem e precisam, Luiz Henrique Mandetta terá de ir além do político com cara boa, simpático e querido.