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19 junho 2020

Do quanto se ouvia de uma parede para outra

Um padeiro que conheci, que trabalhava de noite e dormia de dia, sofreu
 com a fofoca dos vizinhos e perdeu a namorada por conta disso


Há muito tempo, quando eu ainda era um adolescente, morei em um conjunto de casas conjugadas em Salto.

Essas casas ficaram muito conhecidas na cidade e chegaram a ter o nome pejorativo de cortiço.

Para nós que morávamos lá, elas não passavam de simples imóveis geminados, muito comuns antigamente. 

Era o Rei da Vila. 

A construção ficava na região próxima onde hoje funciona a cooperativa de médicos Unimed e que na época era por onde a cidade crescia e se desenvolvia. 

Não passavam de vinte casas. 

De qualquer forma, sendo cortiço ou casas geminadas, um traço que era comum naquele lugar e que foi muito marcante para mim sempre foi a fofoca. 

Nesse local todo mundo sabia da vida de todo mundo. 

Talvez por causa da proximidade e do quanto se ouvia de uma parede para outra.

Lembro que um dos vizinhos era um padeiro. 

Rapaz jovem ainda, vindo do nordeste, ele queria vencer e formar uma família, mas nunca conseguiu. 

E todo mundo falava mal da vida dele por isso. 

O coitado não podia nem se defender. Trabalhando à noite sempre, estava com sono frequentemente e passava o dia dormindo, longe do burburinho, embora fosse afetado.

Ele não conseguia acompanhar a vida da comunidade que habitava ali da mesma forma que ela o acompanhava. 

Essa era, aliás, a razão para o falatório contra ele. 

Divaldo ficou famoso na comunidade por perder namoradas. 

A cada uma que arranjava ele era trocado por outro. 

O problema era um só: não conseguia dar assistência. 

Estava sempre trabalhando de noite e elas queriam sair. Nos finais de semana, também não saia porque dormia. O único dia em que conseguia era o da folga, mas era um dia só e isto acontecia apenas duas vezes por mês.

Boa gente, ele não reclamava quando elas se irritavam. Ao contrário, tentava contemporizar. Admitia até que saíssem sozinhas para não ficarem tão zangadas.

Era aí que elas iam embora. Quando saiam, encontravam gente com mais tempo. Esses eram os seus piores rivais.

O famoso ditado popular "Quem não dá assistência abre concorrência" foi sempre a sua mais dura realidade. 

O coitado, às vezes, nem era avisado que fora trocado. 

Uma das namoradas deixou que ele comprasse móveis a prestação e que desse até entrada em uma casa para viver com ela sem dizer que já estava com outro.

Quando ele foi avisado que tinha sido passado para trás era tarde e o coitado ficou com as dívidas. Teve de vender a preços mais baixos para não se enforcar.

Depois de muito tempo, ele voltou a arranjar uma namorada. Ao contrário das outras, essa era super compreensiva. 

Roseli não se incomodava porque Divaldo não podia sair.

- Fico em casa e aproveito para orar, ela dizia.

Evangélica, se apresentava como uma moça realmente de família. Vestia-se com roupas pouco atraentes e não usava maquiagem em excesso como as outras.

Divaldo achou que tinha tirado a sorte grande.

Chegou a ligar para a mãe em Garanhuns para falar da nova namorada, empolgado que estava.

Mas outro ditado popular veio fazer parte da sua vida: "Não existe bom marinheiro com mar calmo".

Um dia ganhou uma folga inesperada e não pensou duas vezes: foi visitar Roseli de surpresa.

Ao chegar à casa dela, encontrou um homem: Roberto.

- Quem é você?, perguntou assustado.

O tal homem não sabia como responder e nem o que responder, porque não tinha uma resposta.

Na verdade, Roberto era Roseli. 

Ele era um travesti que se apaixonara pelo padeiro.

Apesar do susto da descoberta, Divaldo não terminou o namoro nem se ofendeu com a realidade.

Gostava de Roseli já e a calma dela o alegrava muito.

O problema foi que as pessoas que moravam no Rei da Vila não se conformaram. Passaram a fazer gozações com o padeiro e a ridicularizar Roseli.

O pior aconteceu no dia do aniversário da namorada.

Divaldo montou uma festinha para ela no seu quarto no Rei da Vila e quando ela chegou foi linchada e morreu.

O padeiro ficou tão desconsolado que nem foi trabalhar. No dia seguinte não tinha pão para ninguém, mas essa não foi a pior notícia. A que foi a pior é que a padaria o demitiu. 

Se todas as pessoas que cuidam da vida da gente realmente tivessem interesse em nós, seríamos os melhores.

O problema é que ninguém cuida realmente da vida da gente. Em vez disso, cuidam é do escândalo.

Quase nunca o que é "notícia" para fofoqueiros é verdade.

17 junho 2020

A carpa

A carpa é um peixe que se ajusta completamente ao ambiente em que é colocado,
 ficando maior ou menor conforme o tamanho do local



Elisabete nunca quis ser igual a ninguém. 

Talvez o fato de ter uma irmã gêmea tenha causado tanta aversão ao estilo manada. Era assim que ela definia a forma como as pessoas da empresa onde trabalhava se comportavam. 

Todos queriam ser iguais. 

Se havia uma queixa comum, todos embarcavam no protesto. Mas, se havia discordância, todos se calavam. 

A ousadia deu lugar a economia de energia. 

Era melhor perder uma parte do espaço a se expor. Foi assim que o horário de almoço foi reduzido, que o trabalho aos sábados foi implantado e que o desconto dos atrasos passou a ser rígido. 

Chefe do departamento de criação da empresa, Elisabete resolveu chamar a atenção dos colegas com uma carpa. 

Esse tipo de peixe se amolda ao ambiente em que está. Se colocar uma carpa em um aquário de meio metro, ela crescerá até esse tamanho. Mas, se o aquário for de 1 metro e meio, esse será o tamanho da carpa. 

Para demonstrar, Elisabete colocou um aquário pequeno na entrada da empresa com uma carpa filhote e inundou o ambiente com informações sobre comportamento e ambiente de trabalho. 

A carpa cresceu no tamanho do aquário. Então, Elisabete fez um evento para transferir a carpa a um aquário maior. Inundou novamente o ambiente com a informação de que aquela carpa ficaria do tamanho do aquário. Até apostas em um bolão foram feitas. 

Ao final, todos passaram a querer ser carpa. 

E foi assim que a empresa de Elisabete foi a vencedora em um prêmio de inovação e passou a olhar com outros olhos os diferentes. 

Nem tudo que parece ser igual, realmente é. 

Precisamos mostrar que temos vida própria no mercado de trabalho. Senão, somos engolidos. Afinal, mesmo parecidos, somos sempre diferentes. 

Sempre diferentes.

14 junho 2020

Uma pedra é construção

As latas de leite em pó vazias serviam para brincar de carreta. Bastava um pedaço de arame
ou fio de energia, um furo no meio do fundo e na tampa



Se tem uma coisa que anda comigo desde pequeno, essa coisa é a imaginação: sempre fui muito pobre. 

Eu acho que não tem ninguém que use mais a imaginação do que o pobre. Não é uma questão de privilégio não, mas de necessidade mesmo. A gente aprende a se virar. 

Lembro-me que não tinha brinquedos como todo mundo, mas isso não era problema para que me divertisse. 

Eu e meu irmão menor Ednei pegávamos latas de leite em pó vazias para brincar, que sobravam depois que nossa mãe usava o conteúdo retirado no posto de saúde. 

Nós furávamos bem no centro do fundo e da tampa. Passávamos um arame e fazíamos uma alça. Depois uníamos uma na outra e enchíamos de areia. 

Estava pronta uma carreta. 

O barulho do motor e das freadas a ar fazíamos na boca. 

Quantas viagens fizemos pelos morros e descidas existentes nos terrenos baldios que margeavam a nossa casa, pelos rios e ribanceiras feitos pela enxurrada e pela erosão nos barrancos que a chuva percorria. 

Éramos Pedro e Bino muito antes de “Carga Pesada”. 

E quantas aventuras vivemos dentro da nossa cabeça, imaginando desafios e coisas muito maiores que nós naquele espaço de terreno que a nossa infância nos permitia brincar com o que inventássemos. 


Eu sou o da esquerda e meu irmão menor Ednei é o da direita. No meio estão nossa
 mãe segurando meu irmão caçula Edison e na frente minha única irmã Elaine



As brincadeiras eram inesgotáveis. 

Lembro-me também de que uma vez eu e meu irmão aprontamos alguma e nossa mãe nos deu uma bronca: 

- Sumam daqui. 

Não sei o que fizemos, mas ela estava uma fera. 

Correu atrás de nós com o chinelo na mão. 

Corremos para um matagal e escapamos felizmente. 

Depois, pegamos forquilhas de galhos de árvore e fizemos revólveres. Um cabo de vassoura virou cavalo. Éramos então os vilões do velho oeste americano. 

Passamos uma tarde escondidos dos xerifes e invadindo tabernas para dançar com as mulheres que eram conquistadas na base dos atos de heroísmo. 

Meu irmão se metia em confusões com valentões armados que queriam resolver tudo no duelo. 

A sorte sempre andava conosco como nas verdadeiras histórias do velho oeste americano, onde a pontaria não era o forte de nenhum atirador metido a dono do pedaço. 

Não é à toa que o William “Bat” Masterson, um dos xerifes mais famosos do velho oeste americano dos filmes que víamos, dava como dica: “Se você quer atingir o coração do seu oponente, mire na virilha”. 

Lutávamos contra índios e roubávamos as índias mais bonitas, que queriam fugir com a gente no nosso cavalo. 

As índias eram representadas por pequenos arbustos que faziam parecer o cabelo comprido. 

Tudo estava na nossa imaginação, mas era real. 

Até um corte no dedo ao mexer em galhos de árvore, virava ferimento à faca na luta com os índios. 

A imaginação é o maior legado que alguém pode ter. 

Associada à criatividade, ela é uma chave de grifo na mão do faz-tudo que a vida cria nas periferias todo dia. 

Já usei muito disso quando criança: fiz tevê pegar com pedaço de bombril, montei gravador de fita cassete com restos de televisão, consertei perna de óculos com arame. 

A lista é enorme sem dúvida. 

Agora na pandemia por conta do coronavírus, fiz halteres com garrafa de água sanitária e areia. Montei colchonete de ginástica com tapetes. Fiz abdominais usando escada. 

A imaginação faz o meu dia parecer lindo, porque eu vejo o céu e voo, sinto o sol e viajo e percebo a brisa e mergulho em um silêncio renovador como se nada me prendesse. 

O melhor disso é que a minha imaginação me faz sonhar com um mundo novo sempre, o que me renova. 

Sem imaginação, uma pedra seria apenas uma pedra. Para mim, uma pedra é construção.

12 junho 2020

Eu poderia comprar uma vila inteira

Felicidade não se compra com dinheiro, mas com boas relações e bom coração, cedo ou tarde
aprendemos de uma maneira ou de outra por essa vida afora



Dinheiro não traz felicidade. 

Esta frase sempre me foi repetida em casa. Não porque venho de família pobre, mas para que nunca colocasse a ambição à frente de tudo. 

Tem muita gente que zomba desta interpretação do dinheiro. Até há uma frase que se contrapõe: “Dinheiro não traz felicidade, manda buscar”. 

Mas acredito que o sentido inicial seja o verdadeiro. 

Certa vez, assessorava uma autoridade política importante e rica, a quem não faltava nada material. 

Em uma visita que fizemos juntos a uma favela, percebi que o que faltava a ela era o emocional. 

Ela tinha brigado feio com o marido. 

Estava abalada, mas, rigorosa com os compromissos, não quis adiar. 

Ventava muito nesse dia. 

O cabelo dela ficou todo bagunçado. 

Na visita, tomamos café com marido e mulher em um casebre que mal parava em pé. 

Os dois se tratavam com tanto amor. 

Causava inveja. 

Juntos, pediram à autoridade que eu assessorava apenas que lhes ajudasse em uma cirurgia de catarata para a mulher. 

Saímos do barraco e essa autoridade desabou em choro compulsivo. 

Eu não entendi de pronto. 

Ela então me perguntou: 

- Você é feliz? 

Eu retruquei: 

- Por quê? 

E ela respondeu: 

- Porque felicidade é isso. Eles têm um ao outro. Não precisam de mais nada. 

Fiquei sem saber o que dizer. 

Ela completou: 

- Eu poderia comprar essa vila inteira, mas não a felicidade deles.

09 junho 2020

O gosto de empadas


As empadas de palmito sempre foram as minhas preferidas desde criança
e já fiz loucuras por elas, como relato neste texto

Gostava de empadas, principalmente as de palmito, desde muito pequeno.

A primeira vez que comi uma senti um gosto inesquecível, que me enchia a boca d'água de desejo toda vez que me lembrava.

Só havia um problema. 

Empadas custavam muito caro e eu não tinha dinheiro para compra-las quando pequeno, nem meus pais tinham. 

Parece estranho dizer isto, mas não é. 

Não tinha dinheiro porque não queria comer apenas uma: o meu desejo era me empaturrar de tanto comer empadas.

Esse exagero era uma coisa que me perturbava desde pequeno também. Tudo de que eu gostava muito eu queria muito.

Era como se a satisfação viesse com o exagero. Uma vez um médico me disse que comer em exagero é reflexo de ansiedade.

- O ansioso não se contenta com o mastigar leve e pausado de que é feito o saborear. Precisa encher a barriga para se sentir cheio.

É verdade. 

Depois disso, passei a pensar no quanto era ansioso e no porque era ansioso e descobri que era medo de perder. 

Era isso mesmo: eu tinha medo de que me tirassem o gosto bom das empadas e queria comer muitas para que ficassem para sempre.

Um dia deixei o emprego de tintureiro e recebi os meus direitos. Não era muito. Nem me lembro quanto. Talvez fosse a um menino. 

Mas não tive dúvida.

Comprei toda a produção de empadas de um bar próximo do emprego. Devia ter umas 15 ou 20. Comi desesperadamente tudo.

Foi a coisa mais gostosa daquele tempo.

Hoje não como mais empadas por causa desse dia. Aprendi que perco a comida mais deliciosa apenas quando não saboreio.

Assim é na vida também: nada de ansiedade.

07 junho 2020

De repente

A pandemia do coronavírus reduziu os espaços para o interno das casas e tirou a
contagem dos dias da memória, porque a angústia nos faz perdidos no espaço das horas 



Aconteceu assim de repente, como um susto. Não deu tempo de fazer absolutamente nada. Parecia um flash, que brilha o mundo e apaga toda a atenção logo depois. Como a última piscada de olhos antes de um desmaio. Em um momento é luz, no outro é escuridão. Como a última badalada do sino da igreja. Depois de uma sequência frenética, simplesmente para. 

Sempre ouvi dizer que poderia ser assim. Que talvez fosse melhor assim. Tudo aquilo que não nos permite tempo para pensar não dói, não emociona, não marca. A memória não registra. Não vai nos acordar no meio da noite, quando a mente se esvaziar, como um fantasma que vem das profundezas, para dizer que está ali. Não, de repente é melhor. Acaba, se perde, desaparece. 

Mas, se não chama a atenção como algo que a gente espera acontecer, o de repente nos prende o interesse depois. Acontecido, você se pergunta: por que assim, inesperadamente? Por que não permitir que estejamos preparados? Por que não reunir a todos antes de tudo? Por que não criar uma vã expectativa? Não pode acontecer assim. Nada que acontece a nossa revelia pode ser bom. 

Independentemente dos protestos, aconteceu e foi de repente. Nada do que havia vai continuar. Teremos de nos acostumar. E vamos.Temos o péssimo hábito de nos acostumarmos a tudo. Vamos ao mesmo mercado, cozinhamos do mesmo jeito, falamos dos mesmos assuntos, temos as mesmas queixas. Quem disse que não somos fiéis? Mas não deveríamos nos acostumar. 

Nesses tempos de pandemia por causa do coronavírus temos vivido isolados. Ninguém nos visita. Não visitamos ninguém. Pior: não saímos de casa para nada, a não ser para jogar o lixo. Ainda assim vamos de máscara. É como se fôssemos astronautas andando em Marte. Parece que o ar acabou. O vírus se propaga pelas gotículas de saliva no ar. Então temos um ar para cada um. 

Eu que pensava que ia viver os meus últimos dias disputando água. Afinal, essa é a maior riqueza do planeta e um tesouro finito. Nada disso. Estamos mendigando um ar só nosso hoje. Eu que ouvia que o mundo estava perdido na lascívia de bocas que beijam sem conhecer. Hoje as bocas estão escondidas. Falavam que beber álcool em demasia era ruim e agora pode para enfrentar a solidão. 

Definitivamente, não era o melhor momento para acontecer. Ainda mais dessa forma: de repente. Um susto particular é um susto muito maior. Ao observar o corpo da minha janela, fico preocupado. Não, não é com a contaminação. É que eu terei de remover e dar fim. Senão daqui a pouco começa a feder. Assim como se deu de repente, fui até lá de repente e recolhi a pomba morta.

05 junho 2020

Uma mulher

A ansiedade é a pior das inimigas para quem está fora do convívio social, pois ela atropela
os sentimentos e torna mais vulnerável aquele que tenta se proteger


Carlos não entendeu de pronto a mensagem no celular.

– Você é o meu menino lindo. Volta para casa logo. Um beijo carinhoso, Sílvia.

Gato escaldado com mensagens golpistas, de início o vendedor de seguros resolveu ignorar. Fechou o texto. Saiu do aplicativo. Colocou o aparelho no braço do sofá.

Talvez fosse algum tipo de pegadinha.

Um amigo lhe havia contado que recebera uma mensagem do tipo de uma suposta mulher, mas era, na verdade, um programa espião que captou os dados financeiros dele. Perdera boa parte do salário quando a empresa depositou.

O problema é que uma mensagem como essa não se resume em um texto que se deixa do lado.

Afora a possibilidade de golpe, ele sabia que não era para ele. Não conhecia nenhuma Sílvia. Tampouco achava que inspiraria alguém a dizer aquilo para ele atualmente. Estava sozinho desde a separação de Marta havia pelo menos uns dois anos. Morava unicamente com o cachorro João, um vira-latas de porte médio, que mais dormia que qualquer outra coisa, embora matasse baratas.

Sua rotina ao chegar em casa depois do trabalho, sempre por volta das 18h, era sentar-se no sofá, chutar os sapatos para qualquer lado e ainda de meias desabotoar a camisa social, retirando-a de dentro das calças.

Não usava gravata, mas tinha um porte elegante. A barba bem baixa, cortada na altura do início do pescoço. Os pelos brancos mesclavam-se com os ainda negros.

Era um quarentão que poderia encantar corações femininos, não fosse o olhar triste e o desânimo de viver.

Depois de se sentar sem sapatos e com a camisa desabotoada, pegava as correspondências e as lia, separando as que exigiam alguma providência urgente.

Antes de ir para o banho, pegava o celular e olhava o whatsapp para ver se havia algum recado do trabalho ou de clientes. Desencargo de consciência antes de desligar-se do mundo lá fora, principalmente pelo celular.

Fora o que fizera e o que o levara a encontrar a mensagem da tal Sílvia, recém-chegada.

Havia toda uma curiosidade masculina por saber quem era aquela mulher. Será que era bonita? Será que era simpática? Será que gostaria dele se o conhecesse?

Os romances estavam em stand-by fazia tempo.

A separação tirara dele aquela capacidade de se insinuar para uma mulher e de ser agradável a qualquer um.

Fora contra a separação, mas Marta encontrara outra pessoa. Não tinha como continuar. Ele sofrera muito.

Vinha se fechando no seu mundo. Desistira de sair, encontrar amigos, conversar sem pressa. Triste e só.

O problema da traição não é o fato em si, mas a constatação de que você estava aquém do outro. Era o que pensava sempre que se lembrava de Marta.

Não tinha certeza se agradaria a tal Sílvia. Provavelmente não. Como Marta dissera na última conversa, ao cobrá-lo do pagamento de dívidas que se arrastavam havia quase quatro anos, como a do carro:

– Vê se não sai na rua com essa cara. É capaz de assustar criancinhas. E poderá ser preso por desleixo.

A observação fora há mais de um ano. Não sabia por que se lembrava agora. Também estava com a barba bem mais alta e os cabelos por cortar. Talvez Marta tivesse razão.

Levantou-se e olhou-se no espelho da sala.

– Hoje não, disse para si.

Hoje estava melhor, mais apresentável.

Animado com o espelho, retomou o celular para ver a mensagem novamente. Notou que conhecia aquele número, mas de onde? Não se lembrava. Talvez essa Sílvia fosse alguém conhecida dele já.

– Será?, se perguntou como se pudesse obter uma resposta que não conhecesse.

Não, não era ninguém do trabalho. Nenhuma cliente.

– Quem poderia ser?, outra vez se perguntou.

Havia uma foto no contato que ele não se dera conta.

Clicou nela e uma linda mulher loira apareceu sorrindo. Os cabelos pelos ombros, a boca carnuda, os dentes brancos. Era bonita e simpática, ele avaliou.

Por um momento, o quarentão solitário e triste se iluminou pensando em uma mulher novamente.

Imaginou o que diria a ela se a encontrasse. Nossa, não sabia o que dizer. Fatalmente, ela o deixaria sozinho na hora. Ele se deu conta de que estava tão destreinado.

– Você é muito bonita e simpática. Gostaria de conhecê-la melhor. Você aceitaria jantar comigo hoje?

A frase dita para o espelho não convencia nem a ele mesmo. Murchou como uma planta. Os olhos miraram o chão. Estava derrotado sem nem entrar em campo.

De repente, o telefone tocou e ele quase o derrubou de susto. Olhou a chamada, era a mesma mulher: Sílvia.

Demorou para atender. Estava com medo. Não sabia o que falar. Mas não dava mais para esperar ou planejar.

– Alô.

– Alô, Carlinhos?

Estranhara a intimidade, mas assentiu com um sim nervoso e dito rápida e repetidamente.

– Sim, sim, sim, é ele. É o Carlos. É a Sílvia?

Do outro lado, houve um silêncio.

– Alô, quem está falando é a Sílvia, ele perguntou.

Após o silêncio, a voz do outro respondeu:

– Sim, é a Sílvia. Quem fala?

– É o Carlos, Carlinhos. Tudo bem com você?

– Que Carlinhos? Com essa voz, você não é o Carlinhos nem aqui nem na China. Está tentando me enganar?

– Nããããããõoooooo, ele gritou, mas já era tarde.

Aquela mulher já estava recuando.

– Por favor, eu não estou tentando te enganar não. Eu não engano ninguém. Sou o Carlos, o Carlinhos.

– Ah, vá para o diabo. Meu filho tem doze anos. Você é um marmanjo se passando por criança. Faça-me o favor.

– Filho? Como assim? Você mandou mensagem no meu celular. Eu tenho aqui.

– Seu celular é 99111-9030?

– Não Sílvia, é 99111-9040.

– Ah, então eu errei. Desculpe. Foi engano. Desculpe.

E desligou.

03 maio 2020

Vencer depende de nós

Ayrton Senna levanta o troféu de vencedor da corrida do Japão e do
Campeonato Mundial de Fórmula 1 de 1988, seu primeiro título mundial



Sempre disse aos meus filhos duas máximas que pratico na minha vida em todos os campos: 1) nunca seja igual a ninguém, crie o seu próprio estilo, seja você e 2) dedique-se para aquilo que quer, foque na sua meta, seja persistente nisso e conseguirá ser um sucesso. 

A primeira máxima me ocorreu, na verdade, para driblar uma situação que enfrentei desde menino: a dificuldade financeira. Minha filha, a mais velha da dupla que tenho, vinha da escola, toda chorosa para mim, dizendo que todos tinham mochila da hello kitty e que ela queria uma. 

Como não podia comprar, saquei a máxima na hora e expliquei a ela a beleza que existe em criar um novo estilo, uma coisa nova, em ser única. Ela aprendeu rapidamente em virtude da capacidade que tem de ser criativa. Nunca a falta dessa mania foi motivo para tristeza ou lamentações. 

A segunda surgiu quando meu filho disputava campeonatos de futebol de salão. Ele temia o fracasso e achava que boa parte do fracasso do seu time seria atribuído a ele por ser o goleiro. Eu disse a ele que alcançaria o sucesso se tivesse foco na sua meta. 

Nos dois episódios eu fui feliz com os resultados, mas apenas experimentava aquelas máximas. A vida é assim: temos de nos aventurar. Lançar as sementes e fazer com que frutifiquem. O que faz o resultado positivo é a nossa crença de que podemos e somos únicos em todo o mundo. 

A Globo acaba de reapresentar a corrida final do Campeonato Mundial de Fórmula 1 de 1988, exatamente o ano em que minha filha nasceu. Sempre fui um fã da Fórmula 1, mas hoje descubro que era um apaixonado mesmo pela liderança que Senna tinha naquela época. 

Depois dele não apareceu mais ninguém que me fizesse acordar de madrugada para ver uma corrida. Não apareceu mais ninguém que me fizesse ficar na frente de uma tevê sem fazer mais nada, a não ser apreciar o triunfo da perseverança, do foco e da paixão de alguém único. 

Senna era um líder nato, focado, preparado e dedicado à vitória. Ele sabia das suas capacidades e as explorava ao limite. Tenho orgulho de ter feito isto, a exemplo dele, mas sem ser igual, com meus filhos. Hoje os dois venceram em suas carreiras e continuam vencendo na vida. 

Também tenho orgulho de não ter sido igual a todos, de ter inventado o meu próprio estilo. Lembro que trabalhei no jornal Cruzeiro do Sul, em Sorocaba, no início da carreira e sai de lá para trabalhar na Folha de São Paulo. Mais de 20 anos depois voltei ao Cruzeiro e reencontrei todos lá. Ninguém havia se aventurado como eu. 

Considero que fui feliz nessa jornada, porque aprendi e conheci muita gente e muita coisa. A vida é uma viagem que temos de fazer apreciando a paisagem e os passageiros que nos acompanham ou que se encontram conosco. Do contrário, seríamos como um móvel que anda.

02 abril 2020

Treinar para quê?

Praticar exercícios físicos é uma das atividades que a pandemia
 transformou em rotina para a maioria das pessoas: tem até professora online


Desde o início da quarentena ou do isolamento social por causa do coronavírus, vivo uma pressão enorme de gente querendo definir como devo aproveitar o meu tempo livre.

Acho isso um absurdo, afinal não estou com tempo livre. Quarentena ou isolamento social, não importa qual prefiram, significa estar preso, recolhido, sem liberdade.

Isto se parece com aqueles momentos em que aparece um especialista na tevê para explicar como você deve gastar o seu décimo-terceiro salário. O dinheiro nem saiu e o cara está lá: faça isso, faça aquilo. Ora, ora. Ajudar a ganhar ninguém vem, né? Eu gasto como quiser e quando quiser e não me venham com chorumelas.

Um desses dias de quarentena, não sei exatamente qual (já perdi a noção do tempo com esse isolamento), fiz um protesto. Desliguei a tevê com as instruções para exercícios excelentes sobre como manter a forma, deitei no chão esparramado e dormi sem culpa ou medo.

Pode parecer que isso não seja protesto, mas eu não durmo como todo mundo não. Durmo pouquíssimas horas durante a noite. Pegar no sono sem mais e me entregar aos sonhos, como fiz, só quando era adolescente, um tempo em que mais comia, bebia e dormia que qualquer outra coisa. Era quase uma quarentena ou isolamento social, mas que acontecia, felizmente, só depois de curtir a balada até as 6 da manhã.

Acordei renovado e com muita disposição física e mental, muito melhor do que depois de fazer exercícios para me manter em forma. Pra que manter a forma? 
Nem sei se vai ter jogo.