30 agosto 2020

Chora, que Deus perdoa

O aparecimento de supostas lágrimas no rosto da imagem de Nossa Senhora da
Rosa Mística em Louveira mudou a vida do padre e da cidade no início da década de 90



- Perdeu mermão, perdeu.

Ao ouvir essa frase, que já me soava conhecida de filmes e séries de tevê, pensei de início que fosse alguém contando sobre um assalto.

Em fila de banco se fala de tudo.

Curiosamente, é comum que as pessoas relembrem nessas horas de demorada espera os assaltos ou situações difíceis pelas quais passaram em bancos.

Acho que é o lugar e a situação de vulnerabilidade a que nos expomos que inspiram e que destrancam a boca.

Tem gente que não para de falar. Parece que acha que tagarelar acalma. O nervosismo é tal que, se ninguém lhe dá atenção, essa pessoa fala até sozinha.

Tem gente que reza o terço enquanto aguarda com todos os seus mistérios.

Já vi quem passou mal de tanto medo.

Eu não sou de falar nesses momentos. Os relatos do tipo causam em mim mais ansiedade e terror. Prefiro ficar em silêncio observando cada movimento do lugar.

Apesar de que, em compensação, isto me leva a um torturante hábito que desenvolvi nos bancos de olhar pessoas e situações e imaginar histórias de medo e de terror que essas pessoas poderiam protagonizar em função da situação.

Tipo: um senhor baixinho, incomodado com a fila que não termina, saca um revólver, aterrorizando todo mundo, ou a velhinha, em depressão pela solidão, cuja bolsa traz secretamente uma bomba.

Quando estou em fila de banco não posso olhar para as pessoas, nem de relance, que já começo a viagem mental.

Mas o que mais me tortura nas filas de banco são os pensamentos recorrentes de uma perda irreparável e inapelável.

Esses pensamentos são uma continuidade daqueles de imaginar que alguém da fila tenha uma atitude inusitada, porque nesses pensamentos eu imagino o assalto mesmo. Imagino que um ladrão ou um grupo de ladrões possa invadir o banco exatamente naquele momento que estou vivendo e levar todo o dinheiro que eu estou indo depositar antes que eu consiga chegar ao caixa.

Nessas situações, sei que perderia tudo.

Por isso, a ansiedade da fila nesses momentos não é para que não aconteça um assalto, afinal isso se tornou muito comum com as sucessivas crises econômicas e com a sensação de impunidade gigante do Brasil, mas para que eu consiga ter depositado o dinheiro antes do assalto, pois assim o banco poderia me ressarcir todo o prejuízo.

Que loucura que a cabeça da gente fantasia: eu passo a admitir o assalto para não viver a perda que ele provocaria.

O ponto alto desse medo é entrar na fila.

Ser o último da fila me lembra filmes de Tarzan, que eu via quando era criança.

Lá, enormes filas se formavam quando exploradores iam à África e eles seguiam em marcha pela selva assustadora. De repente, o último da fila sumia e ninguém nem percebia. Ele era “sequestrado” por selvagens e normalmente morria.

Eu imaginava que seria pego pelos ladrões, que são os selvagens de hoje.

Os devaneios são muitos, intermináveis.

Para mim, o período na fila de um banco é um instante de profunda tortura.

A frase que ouvi de que alguém havia perdido tudo para o bandido embaralhou os meus pensamentos de repente ao me dar conta da minha realidade.

Eu estava em uma fila enorme em uma das agências do Bradesco no bairro Cambuí, em Campinas, e tinha acabado de deixar de ser último da fila.

Ainda faltava muito para chegar ao caixa.

Eu me dei conta então de que estava muito perto de quem havia dito a frase, que antes soava distante para mim.

Estava tão perto que poderia estar ao alcance de um tiro certeiro.

A frase se repetia na minha cabeça como se estivesse em um looping eterno.

Ela não parava de ecoar e aumentava de volume à medida que se repetia na minha cabeça e se repetia, se repetia, se repetia.

Comecei a suar frio, o coração disparou, os olhos escureciam e voltavam.

- Perdeu mermão, perdeu.

Minhas pernas tremiam, estava a ponto de um ataque cardíaco.

- Perdeu mermão, perdeu.

O medo detonou meu rosto como um para-brisa de carro atingido por pedra, que quebra, mas não se destrói totalmente.

- Perdeu mermão, perdeu.

Eu não queria olhar para trás, mas o instinto de fuga e de sobrevivência me fez olhar para ver como escapar dali.

Quase desmaiei quando vi, apenas dois clientes para trás de mim, um senhor frágil e branco como porcelana com o pescoço envolvido por um dos braços do ladrão. No outro braço, o marginal perigoso e desesperado segurava a arma.

Era um menino ainda pelas feições e pelo tamanho, talvez uns 14 anos.

Mas ele tinha cara de muito mau.

Os olhos esbugalhados, vermelhos onde deveriam ser brancos, e negros, para torná-los mais assustadores ainda.

Aquele braço envolvendo o homem parecia uma cobra venenosa expondo o seu guizo por meio de uma pulseira prateada e grossa, que chacoalhava enquanto ele o dominava perversamente.

Pensei em me abaixar para evitar continuar como alvo e correr para a porta.

Quando movi os olhos para medir a distância que teria de percorrer e a velocidade que teria de empreender, percebi a presença nefasta de outro ladrão, este mais alto e magro, mas também armado com um revólver.

A senhora na frente do último da fila, um cliente só atrás de mim, chorava e rezava ao mesmo tempo em balbucios.

O mais alto olhou para mim, talvez porque eu o olhava com medo, e chamou:

- Você.

Olhei para trás no resto da fila. Todos abaixavam a cabeça e evitavam encarar os bandidos. Eles pareciam gostar disso, mas percebi que o medo estampado na face também atuava como excitação para eles.

Eu não disse nada quando me chamou. Desviei o olhar e fiquei em silêncio.

- Está surdo?, ele insistiu, agora bem próximo, tanto que encostou o revólver no meu braço para que tivesse certeza.

- Quem, eu?

- É, você. Venha comigo.

Saí da fila e o acompanhei claudicante.

Em seguida, ele me jogou uma sacola de plástico vazia na mão.

- Recolha dinheiro, relógios, correntes, anéis, pulseiras e tudo que for de valor.

- Eu?

- É, você.

Terminou a frase apontando o revólver para o meio dos meus olhos.

Em seguida, passei a recolher na fila o que o ladrão mais alto me disse para fazer.

Ele também era um menino, talvez tivesse uns 16 ou 17 anos.

Outro cara de mau.

Cabelos encaracolados longos, anéis grossos nos dedos compridos e uma corrente também grossa no pescoço.

As pessoas da fila tremiam tanto quanto eu, mas entregavam tudo.

Enquanto eu recolhia o dinheiro e os pertences dos outros clientes, observado pelo bandido que segurava o último da fila, o que me deu a ordem fazia o mesmo nos caixas do banco e com os funcionários.

Os vigias ficaram sem ação por eles terem o refém da fila e não fizeram nada.

O assalto durou alguns minutos só.

Quando entreguei a sacola a ele, o ladrão disse que colocasse o meu dinheiro e o meu relógio junto com os demais.

Fiquei alguns segundos paralisado com a nova ordem e o outro disse:

- Vamos, já temos o bastante. Rápido, rápido. Deixe esse para lá.

Em seguida, os dois pivetes arrastaram o último da fila até a porta e depois dela alguns metros na calçada.

Só o deixaram quando se sentiram seguros para escapar sem serem pegos.

E fugiram.

A senhora que chorava e rezava passou mal assim que os dois saíram.

Ajudei a socorrê-la.

Quando se recuperou, ela me agradeceu e me deu um terço de Nossa Senhora da Rosa Mística em prata.

- Obrigado, meu filho. Guarde isto como um amuleto, pois Nossa Senhora nos protege e nos guia sempre.

Guardei o objeto e fiquei pensando que talvez tivesse alguma lógica, afinal eu tinha conseguido ficar com o dinheiro que iria depositar intacto, apesar do assalto.

Isto fora uma das coisas boas que vivi naquele episódio, além de ter saído vivo, é claro, e de ter conhecido aquela senhora.

Ela tinha um olhar de mãe.


Em dezembro de 1991 fui destacado pela Folha de São Paulo, onde trabalhava como repórter desde agosto de 1988, para levantar a história de um suposto milagre promovido pela imagem de Nossa Senhora da Rosa Mística, na cidade de Louveira.

Quase oito meses depois do assalto ao banco Bradesco, a santa voltava a cruzar o meu caminho e de uma forma curiosa.

Em tese, eu não devia fazer o trabalho de apuração do suposto milagre.

Desde que a Folha havia lançado o seu primeiro caderno regional, o SP – Sudeste ou Folha Sudeste, também conhecido como Folha Campinas, em 19 de novembro de 1990, eu havia me tornado responsável pela editoria de esportes.

A minha escolha para aquele trabalho se deveu a uma necessidade momentânea e a uma particularidade especial.

Francisco Celso Jordão, colega que ainda hoje trabalha na Folha, mas em Brasília, e que havia sido contratado quando o caderno fora criado, era quem acompanhava o assunto desde o início.

O problema é que ele tinha viajado para Casa Branca, outra cidade da região de Campinas, e existia um factual importante: a Unicamp instalaria uma redoma para a imagem a fim de garantir segurança nas investigações sobre o suposto milagre.

Na hora de escolher quem pudesse substituir o Fran, pesou o fato de eu ser morador de Salto, a mesma cidade de origem do religioso responsável pela paróquia, onde a santa estava, o monsenhor Antônio Benedito Spoladori, o padre Toninho, como era conhecido.

Havia ainda mais uma ligação que justificava a minha escolha: uma irmã do religioso morava na mesma rua que eu.

Fran me passou as coordenadas do que estava acontecendo e segui para a cidade.

Toda a história começara em 13 de fevereiro de 1990, quando uma imagem em gesso da santa, adquirida na cidade de Éssen, na Alemanha, chegou à Igreja de São Sebastião, em Louveira.

O templo religioso estava fechado havia três anos já para uma ampla reforma.

Um dos operários que trabalhavam nessa obra era o pintor Aparecido Manoel Rodrigues, especializado em obras religiosas, que atuava ali desde o início.

Durante o dia em que a imagem chegou, ele observou que vertia água no rosto dela.

Imediatamente e impressionado, ele tocou no líquido para ver o que era. Achou que fossem lágrimas. Então provou para ter certeza e sentiu um salgado.

O pintor chamou o padre Toninho para contar e o religioso, também impressionado, tocou o sino da igreja chamando os fiéis. A notícia se espalhou.

A partir dali a igreja nunca mais fechou. As reformas continuaram com multidões de fiéis que vinham de todos os lugares do Brasil em busca de graças e para agradecer o que já teriam alcançado.

Devotos colocavam bilhetes, cartas, fotografias e roupas em caixas de papelão nos pés da imagem. Pediam por graças principalmente na área da saúde. Pediam também por paz, emprego e até para ganharem uma casa e um marido.

O fenômeno se manifestava sempre nos primeiros dias do mês. De fevereiro a outubro de 1990, a santa chorou 17 vezes.

Como ninguém sabia quando aconteceria de novo, havia gente que passava o dia olhando para a imagem, impressionada, esperando que ela chorasse em algum momento.

O próprio padre Toninho chamou a Unicamp para investigar se o que escorria do rosto da imagem era lágrima ou não.

As investigações foram iniciadas pelo Departamento de Medicina Legal, que na época era comandado pelo conhecido Fortunato Badan Palhares.

O médico e professor fora o responsável pela identificação da ossada do oficial alemão da Schutzstaffel (SS) e médico no campo de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial, Josef Mengele, morto em 1979 no Brasil.

O alemão sofreu um ataque cardíaco enquanto nadava em Bertioga, no litoral de São Paulo. O corpo foi enterrado sob nome falso e seus restos mortais só foram identificados em 1985 por Badan Palhares.

O próprio padre Toninho forneceu amostra da suposta primeira lágrima para a Unicamp e depois especialistas vieram colher amostras quando a santa chorava.

Em 12 de outubro de 1990, dia da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, a imagem apresentou as lágrimas por três vezes seguidas.

A primeira ocorreu às 6h. Duas horas depois técnicos da Unicamp estavam lá para colher amostras. Foram dois dias de acompanhamento direto deles.

Mais de 30 mil pessoas haviam visto a santa chorar e o milagre estava cada vez mais famoso. Filas de ônibus levavam fiéis à cidade todos os dias. A igreja vivia cheia.

O padre passou a vender souvenirs no corredor lateral e o negócio já empregava quase 20 pessoas ligadas a ele.

No dia em que fui acompanhar o factual da instalação da redoma, não disse ao padre Toninho que era de Salto nem que morava na mesma rua da sua irmã.

Apenas perguntei se ele tinha contato com as pessoas de Salto, de onde ele viera.

Disse que sim e que estavam todos orgulhosos do fato de o milagre ter acontecido na sua paróquia.

Antes de voltar para a redação em Campinas, parei em frente à imagem da santa e a olhei fixamente. Depois aos fiéis que lotavam a igreja. Tentava entender o que acontecia ali, mas não consegui.

Em meio a todo o barulho que as pessoas faziam e aos cantos que eram entoados o tempo todo, ouvi uma voz:

- Não tente entender: Deus está nas pequenas coisas e nem sempre vemos.

Olhei para trás a fim de ver quem dissera e me deparei com a mesma mulher do dia do assalto ao banco Bradesco.

Não sou bom para guardar nomes, mas fisionomias sim. Era o mesmo rosto, só um pouco mais envelhecido e cansado.

- A senhora?

- Não se esqueça do que te falei.

Disse e saiu em direção à multidão.

Cheguei a segui-la por alguns passos, mas ela não queria falar mais nada.


Quando o Fran voltou da viagem, me agradeceu por ter ido em seu lugar e disse que gostara muito do que eu escrevera.

Na verdade, estava sendo gentil, pois o meu texto não trazia nada de espetacular.

Fiz uma reportagem mais em cima da mobilização que a fé das pessoas promovia e citei personagens curiosos e marcantes que encontrei, como a mulher do assalto.

Tudo, claro, depois de citar o factual.

Havia me impressionado muito a fé que as pessoas demonstravam por algo que elas apenas imaginavam ser, como as lágrimas da santa, que, para elas, eram a demonstração da tristeza pela situação do mundo, desgarrado da fé.

Não falei sobre o assalto ao Bradesco.

No texto, eu não sabia o nome da senhora e por isso não citei nenhum nome. Quando me referi a ela, falei de uma mulher misteriosa que surgiu, disse uma frase e desapareceu no meio da multidão como se não quisesse mais falar. Pontuei que aquela manifestação era curiosa.

Havia outros tipos estranhos com quem me defrontei naquela visita: um homem que esperava encontrar o filho desaparecido havia 15 anos. Ele me parou e disse que a santa lhe dera a certeza de que encontraria o filho. Perguntei detalhes do desaparecimento e ele não tinha praticamente nada. Era só a fé.

Encontrei ainda uma mulher que queria se casar e que esperava que a santa compreendesse suas lágrimas de desespero e a ajudasse a encontrar um marido e uma casa onde pudessem viver juntos, mas ela era doida de pedra.

Tinha nascido em uma família de oito irmãs. Todas como ela: de uma aparência nada atrativa e falando muito. Me disse que esperava um marido com cara de ator de novela, trabalhador e honesto.

O curioso é que ela havia colocado em uma caixa de papelão uma calcinha usada, embrulhada em papel alumínio, com o pedido e as recomendações à santa.

Deparei-me, por fim, com um homem misterioso, que também se aproximou, falou uma frase enigmática e sumiu.

- Eu sou encanador. Você ainda vai ouvir falar de mim por causa disso tudo aqui. Lembre-se disso, afirmou ele.

Fran não só gostou da reportagem como pediu à edição que a partir dali eu e ele fôssemos encarregados de fazer as reportagens da santa de Louveira juntos.

Disse a ele que via aquela situação da devoção à santa com algum desconforto e que precisávamos encontrar o fio da meada para tudo aquilo rapidamente.

De fato, na jornada de reportagens que fizemos juntos fomos em busca do que havia por trás daquela história toda.

Nós dois desconfiávamos do padre.

Padre Toninho ficou no comando da Igreja de São Sebastião de 1981 a 1996 e o surgimento da santa que chorava foi o fato mais extraordinário que ele viveu lá.

Mais que isto: o suposto milagre reabriu a igreja que estava fechada por mais de três anos em uma reforma interminável e deu condições a ele de garantir uma boa arrecadação de donativos dos fiéis para o término da obra e o início de outras.

A estrutura ao lado da igreja para a venda de souvenirs surgiu rápido demais para a nossa avaliação. Parecia algo já planejado. Está certo que o padre era empreendedor, mas nós achávamos que havia algo por trás daquela movimentação.

Uma coisa que chamou a nossa atenção foi que ele recebia ligações durante as entrevistas que fizemos e pedia para esperar, mas nunca falava na nossa frente.

Por vezes o vimos nervoso ao telefone, mesmo sem ouvir o que falava. Isto era sinal de que alguma coisa não ia bem. Mas não tínhamos como saber ainda.


As visitas que eu e o Fran fizemos a Louveira em várias oportunidades depois daquela em que fui sozinho foram positivas para a descoberta de muitas coisas a respeito do milagre.

Mas nem todas pudemos publicar.

A razão principal foi não conseguir provar, uma exigência da Folha. Aliás, muito correta por sinal, afinal falávamos de reputações, nomes, histórias.

Uma delas surgiu quando interrogamos uma mulher na estação ferroviária, que ficava a 500 metros da igreja.

Ela havia trabalhado na casa do padre e ouvira e vira tudo o que acontecia lá. Acabou dispensada quando começou a questionar a respeito de tudo.

Essa mulher nos disse muitas coisas contra o padre Toninho, que depois viriam à tona quando ele já não estava mais em Louveira e sim na cidade de Itu e que abordarei a seguir neste relato.

O mesmo homem que me procurou na igreja se dizendo encanador depois nos disse que ele havia ajudado a forjar o choro da santa, mas ele não conseguiu provar o que dizia, embora dissesse detalhes.

Enfim, a Unicamp acabou desfazendo as várias certezas que o padre havia criado.

Talvez ele não acreditasse que a universidade chegasse a uma conclusão negativa quando a chamou para a análise.

Só que a Unicamp levou o caso a sério. Os técnicos da Medicina Legal iniciaram o trabalho e depois se juntaram a eles os do Cepagri (Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura). No total, 30 pesquisadores se envolveram nas análises. E eles acompanharam o processo por um ano.

No princípio encontraram três possibilidades para o fenômeno: a condensação, na qual a umidade do ar se concentraria na imagem, sobretudo em dias mais chuvosos; a transpiração, na qual a imagem absorveria a umidade do ar, e a capilaridade, na qual a imagem absorveria o líquido da base onde estava.

A avaliação inicial era de que o gesso de que era feita a imagem e o local onde ela estava levava ao fenômeno. Por isso se juntaram aos técnicos da Medicina Legal os do Cepagri. Estes foram lá medir pressão, temperatura e umidade.

Apesar de eu e o Fran e outros jornalistas também termos questionado os cientistas sobre a possibilidade de o padre ou alguém ligado a ele estar promovendo o milagre, eles não avaliavam essa hipótese.

Até porque fora o próprio padre Toninho quem chamara a Unicamp para investigar e ele mesmo colaborava com tudo.

Só que a investigação dava credibilidade para o milagre. O padre aparecia como alguém interessado na verdade. E, enquanto a universidade investigava, nada impedia que a notícia se espalhasse.

Encontramos em Louveira gente de todo o Brasil. Vimos pessoas que não aceitavam duvidar. A fé é cega, surda e muda. Ela só precisa de um milagre. Essas pessoas não hesitavam em investir no milagre. Compravam souvenirs, davam donativos, ajudavam na reforma da igreja.

O que fosse pedido ou necessário seria conseguido para curar doenças, realizar desejos e estabelecer algum tipo de paz.

O que intrigava os cientistas não era a desconfiança de nada forjado, mas havia situações estranhas para eles. O fato de ocorrer sempre em determinados dias do início do mês era um deles.

Achou-se no início que a temperatura da cidade, a umidade em torno da igreja ou até mesmo que o volume de pessoas gerava alguma coisa para chegar ao milagre das lágrimas na imagem.

Outra coisa que tirava o sono dos pesquisadores era o fato de o fenômeno já ter se manifestado em 17 países e mesmo no Brasil ter ocorrido em quatro cidades: além de Louveira, Jambeiro (SP), Santo Antônio e Juiz de Fora (MG).

Tinha horas que eles passavam uma sensação de descontrole da situação. Afinal, cem imagens iguais tinham vindo da Alemanha junto com a aquela. Nem todas choravam e a de Louveira era a que mais chorava. As pessoas já se posicionavam duvidando da Unicamp antes mesmo do laudo final, o que assustava a todos.

O clima de comoção e de fé era tão grande que arriscávamos sofrer um linchamento ao demonstrar dúvidas. Só que elas não paravam de surgir nem as pessoas que tinham a mesma opinião e eram de lá, do mesmo ambiente.

Em janeiro de 1991, foram presos os dois assaltantes do banco Bradesco.


Um dia estava na redação em Campinas, que ficava em uma mansão no bairro Campuí, e recebi uma ligação logo depois de ter saído reportagem falando sobre as dúvidas que pairavam sobre o milagre:

- O que você considera mais valioso na sua vida hoje, me diga?

- Quem está falando?

- Responda à pergunta.

- Sei lá. Talvez seja minha própria vida. Ou a vida da minha filha (minha filha tinha três anos). Por que a pergunta?

- Valorize o que você tem. Nunca tente destruir a vida de ninguém. Este mundo só nos dá uma oportunidade. Uma só.

- Quem está falando?

- Reze o terço que lhe dei. Pense que milagres não acontecem por acaso. Tudo tem um sentido, uma razão.

A voz desligou sem se identificar.

Eu achava que era a mulher do assalto. Ela tinha me dado um terço.

Só não entendia qual a razão daquelas palavras, que eram na boa uma ameaça.

Resolvi não dizer nada ao Fran.

Eu já não tinha contado sobre o assalto.

Era muita coisa para digerir.

A Unicamp estava apreensiva com o curso da investigação. Estava cada vez mais nítido que o padre usava a investigação para dar credibilidade ao milagre. As coisas fugiam ao controle.

Depois da redoma de vidro para proteger a santa e fechar a possiblidade de fraudes, Badan Palhares tentou levar a imagem para a universidade a fim de dissecar o material de que era feita, mas nem o padre nem os fiéis permitiram.

Houve até uma vigília de orações com pessoas de várias partes do Brasil para que a santa não saísse da igreja.

A Unicamp havia pedido informações à fabricante na Alemanha, mas não se convencera com os resultados.

Por 13 dias, a imagem da santa foi fotografada e filmada o tempo todo.

Nelson Massini, professor de medicina legal, outro grande nome que integrava a equipe de Badan Palhares, revelou que sua mãe havia ligado e pedido que tomasse cuidado com aquela investigação.

A universidade usou cinco equipamentos para avaliar se o líquido era lágrima mesmo ou não, a primeira etapa de tudo.

Nessa época aprendi que a lágrima humana é composta por 13 elementos químicos, entre eles água, sais minerais, proteínas e gordura. De acordo com os pesquisadores, 98% da lágrima é constituída de água e só 2% de material sólido, como o cloreto de sódio e enzimas. Entre as enzimas estão: a lisozima, lipídios e complexos imunológicos.

O líquido oferecido pelo padre na primeira vez em que a santa teria chorado e os demais colhidos pelos técnicos e o material de que a imagem foi feita, tudo passou por exames de raio-x, de ultrassonografia e de tomografia computadorizada na Unicamp.

Depois que a santa foi colocada na redoma de vidro, ela só chorou uma vez. Aconteceu no dia 13 de março daquele ano. Mas a Unicamp comprovou que a redoma teria sido violada nesse dia.

A partir disso, um fato deu fim à investigação: o padre decidiu tirar a redoma e a universidade desistiu da apuração sem essa segurança.

Em uma entrevista coletiva, Badan Palhares declarou os resultados do que havia conseguido em um ano de apurações: a santa não chorava. O líquido só tinha semelhança com a lágrima na primeira amostra fornecida pelo padre.

Nas demais, ele se assemelhava à água do poço nos fundos da igreja e à água benta oferecida aos fiéis nas missas.

O fim das investigações da Unicamp e a conclusão apresentada encerraram o caso para a Folha e não fomos mais a Louveira.


Em meados de dezembro de 1996, o então bispo da Diocese de Jundiaí, à qual Louveira está ligada, D Amaury Castanho, colocou um fim na história da santa que fazia milagres com um ato oficial.

Depois de 78 manifestações de suposto choro, mesmo após o veredicto da Unicamp, a santa foi recolhida e nunca mais foi vista pelos fiéis.

Cerca de 200 pessoas se deram as mãos em frente à igreja para protestar.

Os sinos tocaram às 14h, como da primeira vez do suposto milagre.

O padre Toninho foi transferido para Itu.

A mulher do assalto me ligou mais uma vez depois da decisão:

- Está contente agora?

Desligou antes que eu tivesse tempo de falar qualquer coisa. Para ela, as reportagens que fizemos levaram a isso. Mas não foram só elas. O padre agiu para que isto ocorresse muito mais que nós.


Quatro anos depois, em 28 de fevereiro de 2000, o padre Toninho foi denunciado pelo pai de um menor de 17 anos de ter mantido relações sexuais com esse menor e outro da mesma idade em sua casa de praia, em Itanhaém, no litoral paulista.

O que parecia apenas um escândalo em razão da projeção que o padre alcançara com a história da santa de Louveira era mais grave do que se podia imaginar.

O motorista que trabalhava com o padre, um rapaz de 20 anos, responsável por apanhar os menores para levá-los à casa, gravou em vídeo as relações. Depois ele e os menores passaram a ameaçar o padre.

Queriam R$ 150 mil para não entregar a fita para a TV Record. O padre não tinha todo esse dinheiro, mas chegou a pagar R$ 3 mil e um cheque de R$ 1.565,00, que foi sustado. No final, o teor da gravação foi mostrado no programa “Cidade Alerta”.

O pai do menor registrou boletim de ocorrência e também o padre, mas as investigações não evoluíram.

Em março de 2000, a Diocese de Jundiaí afastou o religioso das suas funções como pároco da matriz de Nossa Senhora da Candelária em Itu e de mais nove paróquias que respondiam à matriz.

A mulher que eu e Fran entrevistamos na estação ferroviária e que tinha trabalhado na casa já havia acusado o padre desse tipo de atitudes com menores, mas nada havia sido provado e nem foi nessa investigação. O padre alegou que foi levado a tomar uma bebida desconhecida e que perdeu o controle do que fazia a partir disso.

Afastado das atividades paroquianas e longe dos holofotes da mídia que o projetou para o Brasil inteiro na época da santa que chorava em Louveira, o padre Antônio Benedito Spoladori foi encontrado morto em sua casa de praia em 29 de julho de 2003 aos 51 anos de idade.

Morreu por asfixia. A polícia encontrou o corpo em um dos banheiros da casa, onde ele vivia havia dois anos e meio. Estava despido e imobilizado com tiras de pano enroladas no pescoço e na boca.

Seu rosto mostrava que havia chorado muito antes de morrer.



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".