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08 julho 2020

Só falta a ambulância não estar lá

Em 8 de julho de 2019, eu poderia me deitar em uma mesa de hospital, como fiz, e
acordar no céu ou no inferno ou em um lugar intermediário para ser purificado ou perdido



- Está com medo?, meu filho me perguntou.

- Não, disse em uma resposta rápida como se aquilo estivesse no meu interno e nem precisasse pensar. Depois completei mais devagar: - Aprendi a enfrentar tudo sem medo. O medo é fruto do desconhecido. Tememos só aquilo que não nos é familiar. Mas eu já estou calejado. 

Na verdade, estava me borrando.

Nem mesmo os heróis vão para o cadafalso sem medo. Li que Tiradentes vomitou na véspera da sua execução. Ele sabia o que enfrentaria e não segurava a barriga de nervoso. Pobre dele. Eu, que não sou herói nem nada, já tinha botado os bofes para fora também.

Só que não podia assumir isso assim. Tinha de parecer forte como sempre. O problema é a cabeça.

Se você pensar: nós podemos perder tudo nesta vida, mas não a vida. Viver é o único tesouro que não substituímos. E é só uma vez que se vive. 

Se não se aprendeu a viver da melhor forma, meu caro, vai ser da forma que aprendeu mesmo. 



Sempre fui perfeccionista. Nunca acho que está bom. Quero refazer, melhorar, mudar detalhes.

Quando fazia reportagens para jornal, não tinha um dia em que, lendo o texto publicado, não tivesse sugestões para mudá-lo de forma tal, que, certamente, fariam um texto novo. E eu sempre achava que esse composto que resultaria das mudanças, agora sem a pressão cruel de sempre do horário, estaria infinitamente melhor.

O que me alentava é quando me tranquilizavam dizendo que tinha ficado bom. A certeza mesmo só vinha quando os atingidos pela reportagem destilavam o seu ódio. 

Não que eu gostasse dessa relação, mas era o meu trabalho fazer denúncias e eu o fazia com dedicação.

Só que agora era diferente.

Eu estava prestes a enfrentar o meu maior teste de sobrevivência: uma cirurgia cardíaca.



Em 8 de julho de 2019, o dia seguinte aquele, eu poderia me deitar em uma mesa de hospital e acordar no céu.

Que lindo isso, não é? Eu dizia sem nem pensar. Acordar no céu é o que diriam os bons. Eu poderia acordar no inferno, ardendo em fogo. Ou então em algum outro lugar intermediário, como um rito de passagem.

Poderia ficar nesse lugar até ser purificado ou perdido.

Afinal, não posso me julgar de todo bom, mas também nem de todo mal com toda certeza. 

Essa dicotomia e o meu perfeccionismo me levaram a fazer uma espécie de despedida e também de um acerto de contas antes de me internar naquele dia.

Secretamente, entrei em contato com quem achava que tivesse sido vítima minha e me desculpei pedindo perdão, acertei toda a documentação da casa e os seguros, disse a minha mãe que ela era uma pessoa maravilhosa (meu pai já havia partido) e fui a uma igreja fazer uma última oração para que Deus também me perdoasse das minhas faltas. 

É incrível como isso tudo é importante. Estava pronto a enfrentar e em paz externamente. Era como se eu fosse realmente para não voltar de tudo aquilo. 

Nessa hora, lembre-me de uma piada de português.

O português foi saltar de paraquedas e, morrendo de medo, perguntou: - Mas e se algo der errado? 

Tranquilizaram-no: haverá uma ambulância lá embaixo que prestará socorro a você se acontecer algo errado.

Antes de saltar, o instrutor lhe disse: você puxa essa cordinha. Se o paraquedas não abrir, você puxa esta outra cordinha aqui, que é uma reserva.

E lá foi o português céu abaixo.

Puxou a primeira cordinha e nada de o paraquedas abrir. Puxou a segunda cordinha e nada também. Ele olhou para baixo e disse desconsolado para ninguém:

- Só falta a ambulância não estar lá também.



A caminho do hospital, minha vida passava como um filme e eu parecia ler as minhas reportagens. 

Na entrada do hospital, fiz a ficha como quem faz o “check in” para uma viagem como a dos Mamonas Assassinas. Era uma sensação estranha.

Lembrei-me também dos Mamonas, porque meu filho os adorava e ficou muito triste quando morreram.

Fiquei imaginando se ficaria triste por mim também.

Imaginei que sim, porque perguntara do meu medo, talvez achando que eu não fosse resistir.

- Mas você nunca fez uma cirurgia cardíaca, me respondeu ao ouvir a minha explicação de valentão de que só se tem medo do desconhecido.

- É verdade, respondi. Depois completei: - Mas já sobrevivi a pelo menos cinco mortes.

Minha referência era a dois acidentes de carro em que os carros tiveram perda total, a dois acidentes de moto e a um afogamento, este acontecido ainda na adolescência.

Meu filho me sorriu e disse:

- Não quero que você morra. Vai dar tudo certo nessa cirurgia. Acredite nisso. Vai sem medo. 

- E quem falou que estou com medo?, retruquei.

- Suas mãos trêmulas e suadas, ele me disse.

Esse menino, que já era um homem agora, sempre fora muito esperto e aprendera a ler a linguagem do corpo como ninguém, para meu azar de tentar esconder o medo. 

Sorri amarelo.

Toda a minha família e amigos me deram força também.

Pessoas que me perdoaram, gente que gostava de mim e arrisco a dizer que até quem não gostava torceu a favor.

Internamente, eu pensava assustado ainda mais: 

- Agora só falta a ambulância não estar lá também.



Na recepção, a tevê mostrava o Brasil em campo. Final da Copa América contra o Peru. Antes de entrar, Everton Cebolinha abriu o placar e me deixou feliz.

Logo depois, colocaram-me em uma cadeira de rodas e eu entrei no hospital direto para a UTI cardíaca. 

À medida que passava pelas divisões daquele lugar (eram 22 cubículos com cama, televisão e diversos aparelhos), fui vendo os outros combatentes feridos pela mesma guerra.

Gente combalida, andando em cadeiras de roda ou amparadas por enfermeiros, outros na cama desacordados ainda do confronto, alguns passando pela intervenção de enfermeiros e socorristas que chegaram às pressas.

Se eu já estava na cadeira antes, temi mais pelo que me esperava: talvez fosse realmente o meu fim.

A cabeça não parava, infelizmente.

Quando adentrei o que seria o meu quarto, uma enfermeira falava para a outra:

- Duas mortes hoje. 

Estiquei o ouvido para saber mais.

A enfermeira que me levava deu-lhes uma bronca:

- Estou com o paciente, não viram?

Tinham visto, mas falaram porque aquilo devia ser rotina ali. Mesmo assim, se desculparam comigo e com ela. Apanharam suas pranchetas e saíram. 

A enfermeira que me levava disse:

- Desculpe essas duas. Aqui ninguém morre sem que tenhamos tentado tudo. Acredite. 

Eu tinha certeza disso, mas não me soava como um conforto saber que tentavam de tudo. Ainda mais vendo todos os combalidos de guerra que havia visto já.

A frase da enfermeira era como água em gordura quente.



Minha cabeça não parou um só minuto. 

O jogo do Brasil prosseguiu e fomos campeões por 3 a 1, apesar do gol de Guerreiro para eles, mas eu já não estava feliz como quanto me senti com o primeiro gol.

O medo de que as coisas não dessem certo era grande.

Passei a noite inteira com a tevê ligada.

Nunca tinha assistido tantos filmes em sequência. 

Comecei vendo o “Faustão” depois do jogo, aí veio o “Fantástico” inteiro. Em seguida, o “Domingo Maior” com o filme “O Acordo”. Seguiram-se “Cinemaço” com o filme “60 Segundos” e por fim “Corujão” com “Sentença de Morte”. Emendei os jornais “Hora 1” e “Bom Dia Cidade”. 

A cirurgia aconteceria às 7h do dia 8.

Quando estavam me preparando, veio o aviso que seria adiada para as 14h por falta de material.

À tarde, quando minha família já tinha ido para a sala de espera para que me preparassem para a cirurgia, estava mais preocupado e o cardiologista da UTI tentou me tranquilizar com uma brincadeira:

- Não se preocupe: quem vai te operar é o dr Eloy, seu xará, que é especializado nesse tipo de cirurgia.

Eu sabia disso: já tinha levantado toda a ficha do dr. Cledicyon Eloy da Costa e ele realmente inspirava confiança, mas não o tinha visto pessoalmente ainda.

- Espero que, ao final da cirurgia, sobrem dois Eloys, disse ao médico que brincava comigo, devolvendo a brincadeira.

- Você quer que eu fale sobre a cirurgia? O que te preocupa? Quais são as suas dúvidas?

- Bom, a dúvida maior é sobre o risco de morte.

- Esse risco existe: toda cirurgia impõe um risco de morte. A cirurgia cardíaca ainda mais. Só que você está em boas mãos, em um hospital equipado e em boas condições.

- Como assim?

- Se estivesse debilitado como muitos que deve ter visto por aqui já, o seu risco era maior, mas está bem. Soube que chegou a essa cirurgia pelos exames que fez, não é? Isto é sinal de que é previdente e preocupado com a saúde.

- Não exatamente. Tive alguns dissabores nos últimos tempos e isto provocou o problema que agora vou corrigir. Os exames só confirmaram as suspeitas do meu cardiologista e ele me indicou a cirurgia. Vou sentir muitas dores quando sair da cirurgia doutor?

- Sim, é provável que se sinta dolorido, porque vamos serrar o seu peito e, para acessar o coração, teremos de afastar as costelas após cortá-las com a serra. 

- Que bom, disse ironicamente.



Quando a enfermeira chegou para me levar para a sala de cirurgia, estava mais nervoso e preocupado ainda.

Perguntei quantos trabalhavam naquela UTI.

Ela me respondeu que cada equipe tinha em média dois cardiologistas, um enfermeiro-chefe, um enfermeiro plantonista, dois técnicos em enfermagem, um nutricionista, um fisioterapeuta e um psicólogo, que contavam ainda com o apoio de dois faxineiros, um repositor de roupas hospitalares e uma cozinheira e também uma auxiliar de cozinha. Um exército.

- Pelo menos não morreria só, pensei tentando encontrar graça em alguma coisa dentro daquele ambiente sisudo.

Sempre fui brincalhão com as agruras da vida. 

Lembrei-me nessa hora também que um dia fui palhaço.

Veio um circo na minha cidade, daqueles bem mambembes, que não tinham bichos. 

Fui lá tentar um ingresso de graça e o dono do circo me achou engraçado. Devia ser, afinal, tentar um ingresso de graça em um circo tão chinfrim como aquele só podia ser uma piada. E ele riu muito na minha frente.

Fiquei sem ação.

Então me disse que faria melhor: trocaria o ingresso por uma atuação minha como palhaço no espetáculo.

Nem nas minhas mais estapafúrdias loucuras, eu havia pensado em algo assim tão surreal, mas topei.

Fui levado ao diretor artístico, que, na verdade, era o palhaço chefe e que fora encarregado de me treinar.

Eu faria o que se chama de “escada” para ele, isto é, prepararia a piada para que ele concluísse.

O espetáculo do palhaço naquele circo era do tipo pastelão, ao estilo que viria a conhecer depois com “Os Trapalhões”, mas que já tinha visto em “O Gordo e o Magro”, “Os Três Patetas” e “Charles Chaplin”.

O palhaço entrava com uma caixa grande de papelão e dizia para a criançada que era um presente para a namorada dele, a dona Filoca, que tinha cara de beijoca.

Ele se apresentava como palhaço Fiapo, pedia para que todas as crianças tomassem conta do presente e saía.

Daí eu entrava como quem não queria nada e dava de cara com a caixa. Eu dizia: 

- Nossa, que presentão que eu ganhei. 

E depois perguntava para a criançada de quem era aquela caixa, afirmando, sem deixar elas responderem, que era minha, porque eu tinha achado.

Mas as crianças respondiam que não. Diziam que era do palhaço Fiapo. Eu as provocava dizendo:

- Não, esse presente é meu. Eu achei. Achado não é roubado. Depois, incentivava a todos a falarem: “Achado não é roubado, quem perdeu foi relaxado”.

Na hora em que toda a criançada gritava a frase, o palhaço Fiapo entrava e assustava a todos com cara feia.

- O quê? Mexeram no meu presente? O que você está fazendo com o presente da Filoca, que tem cara de beijoca?

Eu dizia que tinha achado o presente e que era meu:

- Achado não é roubado, não é criançada? E todos eles gritavam: “Achado não é roubado, quem perdeu foi relaxado” para a raiva do Fiapo, que jorrava água pelas orelhas para dar a impressão que chorava.

Depois, ele partia para cima de mim para tomar a caixa e eu colocava a caixa no chão para brigar.

A briga era uma brincadeira de acerta e erra.

Um dava um soco daqui e outro de lá, mas ninguém acertava, e depois chutes e caíamos no chão.

A gente rolava e se levantava.

Até que os dois partiam para a caixa grande e cada um segurava de um lado, puxando para si. Ao final, a caixa se partia e de dentro dela saía um monte de pipoca.

O palhaço Fiapo chorava pelas orelhas e eu perguntava:

- Como é que chama a sua namorada? 

Ele respondia:

- Filoca, que tem cara de beijoca.

Aí eu dizia:

- Filoca, que tem cara de pipoca.

Ele saía atrás de mim e a gente saía de cena.




Lembro-me que fiz a encenação direitinho. O dono do circo gostou tanto que me convidou para ir com eles. 

Fiquei morrendo de vontade.

Mas meu pai me achou no circo logo depois que acabou o espetáculo e me esperava com a cinta na mão.

- Vou acabar com essa palhaçada, ele disse. 

Ao lembrar disso, eu ri sozinho.

E estava sozinho mesmo.

A enfermeira que me trouxera já havia saído. 

Esperava em uma sala contígua ao centro cirúrgico. 

O dr Eloy apareceu finalmente após alguns minutos de espera e me perguntou se eu era o seu xará.

Conversamos um pouco sobre o que esperava e o que sentia e ele tentou me tranquilizar, mas não fiquei calmo.

Outra enfermeira apareceu, tocou o meu braço e disse que iria me preparar para a anestesia.

- Fique tranquilo que o dr Eloy é ótimo, ela disse.

Entrei na sala de cirurgia e encontrei várias pessoas.

Todos falavam ao mesmo tempo, mas uma médica se sobressaiu a eles dizendo que era a anestesista.

- Vou te aplicar uma injeção e você vai fazer uma viagem. Quando voltar, estará tudo resolvido por aqui. Ok?

- Sim, eu disse.

Recebi uma injeção e fui apagando devagar.




Acordei de repente.

Havia uma luz branca muito forte sobre os meus olhos. 

Um homem baixinho, com uma cabeça enorme, olhos também grandes e profundamente negros e sem qualquer cabelo na cabeça, além de pele muito branca, se aproximou de mim, tomou o meu pulso e mediu a febre.

Em seguida, ele se virou para outro homem semelhante a ele e disse andando em torno da minha cama:

- Não creio que sirva, Zácary.

- Por que não?, o outro perguntou.

- Porque sem coração está fraco, o primeiro homem respondeu sem tirar os olhos enormes de mim.

- Vamos colocar outro e tentar, Zoe.

- Se você acha que vale a pena, podemos tentar. 

Em seguida, esse homem chamado Zoe pegou um rádio comunicador e chamou uma mulher chamada Ziv. 

- Traga um coração Ziv. 

Estava incomodado com aquela conversa, mas parecia que eles falavam longe de mim. As vozes eram abafadas. As imagens também eram desfocadas ou eu não enxergava.

Tive medo de olhar para baixo a fim de ver o que havia acontecido comigo e o que significava o que diziam.

Gastei os minutos seguintes tentando ver melhor a imagem daqueles dois homens e observando o ambiente para saber onde exatamente eu estava.

Não consegui definir com mais exatidão como eram os homens. Só percebi que a pele deles era muito fina. Dava para ver as veias e o sangue circulando. 

Quando Zoe chegou mais perto para olhar o meu peito e fez sinal para Zácary, ele se virou de costas para mim e pude ver a parte detrás da cabeça dele, que era transparente também. Dava para ver os miolos dele se mexendo.

Ziv era uma espécie de robô, uma máquina que andava sozinha e tinha a forma de um triângulo.

Era como se o braço esquerdo emendasse com a perna direita e vice-versa os outros dois. 

No centro do corpo os membros se cruzavam e havia uma espécie de fivela grande e luminosa como se prendesse o cruzamento deles e isto a fazia andar bem devagar.

Curiosamente, ela usava brincos no que seriam orelhas. Na verdade, duas arruelas fixadas nas laterais do rosto. 

Ziv trouxe um coração pulando em uma espécie de tigela.

- O que pretendem fazer? Onde estou? Quem são vocês? Cadê o dr Eloy?, perguntei insistentemente.

- Somos seus amigos. Só queremos que faça uma experiência. Se colaborar, nada sofrerá, disse Zácary.

- Que experiência?

- Temos observado vocês há algum tempo. Vocês resistem a muitas emoções fortes. O coração do nosso povo não tem essa força. Quando sentimos alguma aceleração, invariavelmente morremos. O nosso teste é para ver se o coração que desenvolvemos é mais resistente. 

- Mas, se ele não for, eu vou morrer? Cadê o meu coração? O que vocês fizeram comigo?

Eu estava extremamente nervoso com aquela situação. 

- O seu coração foi retirado, estudado e copiado. Esse que Ziv trouxe é uma cópia do seu. Se funcionar, usaremos o seu de modelo. Você pode salvar o nosso povo, disse Zoe.

- Você não respondeu a minha pergunta. Se o teste falhar, eu vou morrer? Como estou vivendo sem o meu coração?

- Você não vai morrer. O seu coração é tão forte que você vive sem ele aqui. Talvez não vivesse sem na Terra, mas aqui sim. Se o teste falhar, só o coração morrerá. Mas nós o devolveremos ao seu planeta em seguida, disse Zácary.

- Onde estou? Como me trouxeram aqui? Por que eu?

- Existem muitas perguntas a serem respondidas, mas agora não é o momento. Faríamos o teste sem o coração primeiro, apenas para você sentir o que sentimos, mas acho melhor pularmos essa etapa, afirmou Zácary.

Sem que eu concordasse, Zoe me aplicou uma injeção.

Dormi rapidamente.




Quando acordei, estava em pé com o peito todo costurado e ligado a vários fios, mas estes não estavam ligados a nada e diante de uma mulher e uma criança.

- Quem são vocês?, perguntei.

Ela não respondeu.

Tirou uma faca da cintura e cortou a cabeça da criança. Esguichou sangue para todo lado. Eu tentei evitar, mas não houve tempo. Foi um gesto muito inesperado.

- Por que fez isto? Por quê? O que acha que houve?, sacudi os ombros dela sem resposta. 

Com uma cara de louca, ela me olhava em silêncio.

Meu coração estava acelerado. Eu senti muito medo do que poderia acontecer comigo. Não conhecia a criança, mas aquele crime me chocou muito. 

Não sabia o que pensar.

A mulher saiu e levaram a criança.

Ziv entrou e mediu meus sinais a partir dos fios.

Em seguida, em uma tela grande que desceu do teto do cômodo onde eu estava, revi vários rostos que eu conhecia. Eram as pessoas para quem pedi perdão, as pessoas que gostavam de mim e minha família. Todos sorriam para mim e acenavam como se me vissem em um telão também. 

Meu coração se acelerou novamente, mas agora de alegria e eu tive vontade de revê-los. 

Novamente Ziv veio e mediu meus sinais.

A imagem daquelas pessoas sorrindo deu lugar ao rosto do meu pai. As cenas que se seguiram foram do seu sofrimento físico por conta das dificuldades que teve após os AVCs que sofreu. Na última cena, eu o vi sofrendo o infarto fulminante que o matou em meados de 2017.

Meu coração estava de novo acelerado e eu muito triste.

Ziv veio outra vez.

Agora as pessoas que apareceram foram aquelas que haviam sido vítimas minhas nas reportagens de jornal. Todas elas se aproximaram de mim e cuspiram no meu rosto e em mim. Aquela cena me deu muita raiva. Tentei reagir, mas senti os meus braços e pernas amarrados. Não havia percebido que isto tinha acontecido.

Meu coração estava muito acelerado. Senti-o bater bem forte. Na verdade, senti-o se mexendo dentro do peito como se fosse sair. Uma coisa muito desconfortável.

Fechei os olhos tentando me acalmar.

Quando reabri, Ziv media os sinais novamente.

- Eu não quero mais ficar aqui, gritei.

Não estava sujo, mas não queria ficar mais.

Empurrei Ziv, que caiu e não conseguiu se levantar.

Abri a porta para fugir daquele cômodo e recebi no rosto e no corpo todo uma porção de baratas que foram jogadas.

Elas andavam pelo meu corpo, subiam por dentro da roupa, enroscavam no cabelo, entravam pela boca.

Vomitei em cima delas.

À medida que eu andava para tentar escapar, esmagava um monte delas e aquela gosma grudava nos sapatos.

Abri outra porta e cai em um escorregador gigante. 

Meu corpo rodava nele como se eu estivesse dentro de um tobogã prestes a cair em uma piscina profunda.

Desmaiei. 



Aos poucos a luz do ambiente foi voltando e fui abrindo os olhos devagar. Ao ver muitas pessoas em volta, fechei-os novamente com medo de que estivesse nas mãos de uma junta médica daqueles seres estranhos.

- Ele está bem aparentemente, ouvi uma voz.

- Está muito pálido, disse outra voz.

O som ainda era distante como da outra vez.

De repente, as vozes se misturavam como se houvesse água no meio do som. Passei a ouvir apenas um burburinho. Relutava em abrir os olhos.

Não queria ver mais Zácary, Zoe e Ziv, nada daquilo.

- Ele não vai abrir os olhos?, ouvi agora mais alto.

Fui abrindo os olhos devagar e as imagens disformes, como quando fazemos exames de vista, foram se ajustando. A nitidez apareceu devagar e o som melhorou.

Finalmente abri os olhos de uma vez.

Eles pareciam grudados, mas rompi aquela membrana que imaginei existir e que segurava as minhas pálpebras.

A imagem que vi me trouxe uma alegria muito grande.

Todos os rostos que estava vendo eram da minha família.

Uma das pessoas estava do meu lado direito bem perto da cama e eu tive dificuldade para enxergá-la.

- E aí pai, acabou o medo?

Era o meu filho me perguntando sobre a cirurgia.

- Já aconteceu?, perguntei.

- Já, disse.

- Que horas são?, eu quis saber.

- São quase sete da noite. Como você está? Tem dor?

E eu queria dizer um monte de coisas, mas não disse.

- Estou com o corpo todo dolorido como se tivesse descido em um tobogã direto para uma piscina fria.

Ninguém entendeu nada.

- Que viagem, pensei.

Em seguida, apareceram dois enfermeiros. 

Eles vieram me arrumar na cama, pois os que haviam me trazido da cirurgia não haviam feito isto.

- Obrigado, eu disse. 

O mais velho, um careca, respondeu:

- Eu sou Zácary e este é o Zoe. Vamos estar neste plantão a noite toda como enfermeiros. Qualquer coisa, é só o senhor nos chamar. Ah, muito obrigado seu Eloy, o senhor tem um coração muito forte, muito mesmo.

E saíram. 

- Como ele disse que eram os nomes deles?, perguntei.

Mas ninguém havia prestado atenção.

22 maio 2020

Ano passado eu morri


Parte da lateral do carro envolvido em acidente com um caminhão 
e dois carros em 2014 na Rodovia do Açúcar, trecho próximo à cidade de Itu


Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro. Ouvi esta frase em uma música de Belchior. Acho-a muito apropriada ao que vivi durante o ano passado. 

Por conta de uma série de situações estressantes, tive problemas de coração. O meu médico me disse que eu viveria só até outubro de 2019 se não fizesse uma cirurgia. 

Após vários exames para verificar se estava em condições ideais para a intervenção, além da necessidade que tinha, consegui ser operado em Campinas e me salvei. 



Escapar de uma situação de morte já havia me acontecido antes por cinco vezes. 

A última antes do ano passado tinha sido no ano anterior, em acidente de carro. 

Uma noite, dirigia pela Rodovia do Açúcar, vindo de Sorocaba, quando uma caminhonete, com abelhas africanizadas, parou na pista do nada na minha frente. 

O motorista disse depois ter achado que algumas abelhas haviam invadido a cabine dele. Ele abrira o vidro traseiro para ventilar-se devido ao calor intenso. 

O medo de ser picado e morrer paralisou aquele homem simples e a total imprevisibilidade disso acontecer em uma pista de alta velocidade me fez quase bater na sua traseira. 

Ao ver a caminhonete crescer na minha frente, desviei para o acostamento e acabei chocando o carro que dirigia na lateral direita dela em um grande impacto. 

O choque rachou o radiador e arrancou a bateria. O para-brisa quebrou e a porta do lado do motorista foi amassada a ponto de não abrir. Andei 100 metros como passageiro. 

Apesar do impacto e do susto pelo qual passei, não sofri nenhum arranhão. Tudo que havia dentro do carro foi ao chão. Fiquei duas horas esperando o seguro no escuro. 



Estive a ponto de morrer em acidente de carro na mesma rodovia do último e em dois de moto na Santos Dumont e em Campinas e em um afogamento, em Salto. 

No anterior ao das abelhas, em 2014, o choque foi com um caminhão e dois carros. Era noite, voltava de São Paulo e fui atingido pela guarnição de carga de um caminhão. 

Próximo a Itu, a peça de ferro se soltou em parte e enganchou na porta do passageiro. Rasgou a lata e se soltou com o movimento. Mas rodopiou o carro na pista. 

Fiquei atravessado no meio do caminho. Um carro logo atrás bateu na lateral dianteira esquerda. Rodopiei e parei atravessado de novo, agora de frente para o outro lado. 

De novo outro carro que vinha atrás bateu, desta vez na minha lateral dianteira direita. O carro voltou a rodopiar e parar atravessado de frente para o lado anterior. 

Por pouco um terceiro carro não bateu na minha porta. Vinha em alta velocidade, mas freou a um metro de mim. Salvo, respirei fundo, liguei o carro e tirei-o da pista. 

Nenhum dos motoristas que se envolveram no choque parou para prestar socorro. 

Felizmente, não sofri nada. Um motoqueiro quis ajudar. Preferi esperar o seguro. 



Os acidentes de moto aconteceram quando voltava de Campinas, onde trabalhava na Folha de São Paulo. O primeiro foi em 1993 e foi o mais grave e inesperado. 

Motorista de carro não respeita quem anda de moto, então eu ia margeando o acostamento na rodovia. A intenção era evitar ficar na frente e acabar sendo atingido. 

De nada adiantou, pois o motorista que me atingiu estava bêbado. Ele perdeu o controle, bateu no guard-rail central e veio se chocar contra a traseira da moto. 

O choque me arremessou para depois da vala de escoamento de água na lateral do acostamento. Cai de costas, rasguei o ombro e depois rolei de frente. 

O corte no ombro foi de oito pontos e raspei tanto o queixo no chão que acabou essa parte do capacete. Depois fiquei imóvel esperando o socorro e ouvindo: “Esse já era”. 

Esse acidente aconteceu na Rodovia Santos Dumont, na saída de Campinas. O outro em 1994 foi na Via Expressa Waldemar Paschoal, próximo ao Hospital Mário Gatti. 

Voltava para casa por volta de meia-noite e chovia continuadamente. Não havia ninguém na pista. Eu estava na via mais rápida e veio um carro atrás dando sinal de luz. 

O motorista queria que eu saísse da frente próximo a uma curva, onde pegaria a Avenida Prestes Maia. Não saí com medo de cair e ele se irritou, ultrapassou e me fechou. 

Ao frear para não bater, a moto derrapou e eu caí na pista rolando várias vezes até parar batendo a cabeça. A moto escorregou para o outro lado da pista. 

Demorou para que eu conseguisse recobrar as forças e levantar. Apanhei a moto, que estava toda danificada, mas funcionava. Subi e segui viagem. O motorista tinha fugido. 



O afogamento aconteceu na minha adolescência ainda, em 1980. Eu e um grupo de amigos que estavam sempre juntos fomos nadar na represa do ribeirão Piraí. 

Esse manancial é o maior abastecedor de Salto e tinha represa com águas profundas. A aventura era o nosso norte e aquela situação era a ideal para nós. 

Começamos a saltar no ribeirão e a atravessá-lo de início, o que não era difícil, pois as margens são próximas, mas depois passamos a mergulhar e testar o fôlego. 

Eu nadava razoavelmente. No grupo, a maioria tinha a mesma performance que eu. Felizmente, Genivaldo, o Geni, era diferente. Vivia na água e nadava muito bem. 

Quando eu nadava na parte mais funda, alguém gritou: “Cuidado, aí é fundo demais”. O medo e a insegurança de adolescente me fizeram afundar rapidamente. 

Engoli água enquanto afundava e subia novamente e morreria, se não tivesse sido salvo. Geni pulou na água e me jogou para a margem, onde agarrei arbustos. 

Ainda estava assustado e com muita água no organismo, mas fiquei firme. Geni se recuperou do esforço. Depois me puxou para fora do ribeirão. Vomitei a água e me salvei. 



O funileiro que tentou tirar os amassados do meu carro após o acidente de 2018 me intrigou: “A gente conserta carros e objetos, mas quem conserta a gente é Deus”. 

Ele afirmou que eu deveria ter sete vidas como um gato. Mas, se tenho, já gastei seis. Na época eram cinco vidas já perdidas. E aquele funileiro me deu um vaticínio. 

“Se ele te salvou da morte tantas vezes como você me disse, é porque tem uma missão para você. Preste atenção que os sinais virão e você terá de cumprir essa sina”. 

Nossa vida é feita de ciclos. Iniciamos vários ao mesmo tempo. Terminamos uns, outros não, alguns ficam pela metade às vezes. Não é só a morte que quebra ciclos. 

Viver não é fácil, já dizia o poeta e eu aprendi isso muito cedo. Por isto, agora inicio um novo ciclo e este é para cumprir a missão divina como me disse o funileiro. 

Eu não sei qual é essa missão e nem tenho medo do que seja, mas eu quero fazer as pessoas felizes e a primeira sou eu. Agora é você. Sorria, pois eu estou te filmando.  


Esta é a música de Belchior: "Sujeito de Sorte"

08 abril 2020

O velho ator

O ator Umberto Magnani, que saiu de cena em 2016 quando 
interpretava o padre Romão, na novela "Velho Chico", da Globo, vítima de um AVC 


Hoje faz exatamente um ano que eu fui tirado de cena como um velho ator. Guardiões do templo me cercaram e decretaram a minha sentença: não poderá mais ser o bom homem, o homem honesto, o pai de família. Nem o empreendedor, o homem capaz, o trabalhador. Não será, tampouco, o homem em quem se confia, aposta de futuro, bom exemplo.

O ator que fica velho só representa um papel: o de vilão. O Dr. Smith, de “Perdidos no Espaço”. É isto que a experiência dá: a esperteza de saber tudo, a capacidade de viver o perverso sem dor nem compaixão. Não pega bem ao velho ator protagonizar um romance tórrido, uma aventura de conquista como a de desbravador, a jornada do herói.

O velho ator tem de ser retirado de cena. A plateia deve sorrir, quem assiste precisa sonhar, os ingressos têm de valer a pena. Nada de bom se espera de um velho ator: restam só lapsos de memória, incertezas, o texto errado na cena errada. Como nos distanciamos dele, só o vemos como vilão, porque ninguém quer estar ao alcance de vilões.



É melhor que o velho ator se aposente. Se nada há para fazer a quem passou a vida em diferentes papéis pelo bom espetáculo, que o velho ator se retire para um asilo, que fique em quarentena após o seu último papel, que o desgastou tanto. Que fique confinado como homem do século passado ou nem isto, já que vilões nem homens de verdade são.

Esquecido em seu isolamento social, o velho ator não atua mais. Só é lembrado como vilão, a cena na qual foi envolvido e se tornou odiado, desrespeitado, nojento. O velho ator delira. Se é vilão, quer ser o maior. Então se torna “Jack, o Estripador”. Incapaz de ter sentimentos humanos, esquarteja na própria mente a vítima, a pessoa mais próxima. 

As pessoas são pedaços. Os pedaços ganham vida. E se perdem embaralhados. Os vilões não são dotados de cuidados com ninguém. Não têm carinho para dar. Não percebem o amor. Não valorizam os esforços de quem trabalha pelo sustento. Desconfiam de todos. São machistas, hipócritas, perversos. Os vilões impõem medo, nojo, pena.

Todos esses rótulos confundem a cabeça do velho ator. Ele não compõe mais nada. Não consegue representar nem a si mesmo. O mundo gira. Ele quer descer do gira-gira da infância. Não consegue. Uma ânsia sobe à garganta como labaredas. Um incêndio corrói o velho ator por dentro. Destrói tudo. É o Museu da Língua Portuguesa se acabando.



- O senhor está louco, dizem as pessoas ao meu lado. – O senhor está louco, repetem. Eu não sei o que está acontecendo. Tudo ainda está girando em torno de mim. De repente, o velho ator sai do meu corpo como se fosse um encosto maligno. “Carrie, a Estranha” se manifesta nele. Uma baba branca se espalha. As pessoas se afastam. 

No meio da multidão está um homem todo torto, poucos cabelos, andar troncho. Parece um sobrevivente de guerra por trás de um par de óculos com lentes que refletem a luz. Ele tenta escapar sorrateiramente entre as pessoas. Fora ele quem colocara o velho ator naquela cena final. Carrega o roteiro da prova debaixo do braço. Maldito.

As chamas que consomem o velho ator já estão altas. As pessoas olham aquilo como minha mãe olhava as baratas mortas a chineladas que ela incendiava no quintal. Ninguém salva quem não tem chance de uma nova vida. - Primeiro, as crianças, mulheres e idosos. Isto não existe mais. O “Titanic” afunda vigorosamente. A orquestra ainda toca. Ninguém dança. 



- Parou, parou! É assim que Ronaldinho Gaúcho acorda na prisão no Paraguai. O guarda o desperta de um pesadelo desesperador. João da Silva Santos, o João Bobo, ganhara o apelido de Ronaldinho Gaúcho em Bangu 1 por jogar bem o futebol desde quando chegara havia um ano. Fora condenado pela morte de uma família inteira incendiada.

No caminho para o café, João comenta com um dos companheiros de cela que está com queimação na garganta. – Esquenta tudo, parece fogo. – Você está pagando os seus pecados, diz o outro. – Vá para o inferno, diz ele. Os presos caminham como um rebanho. Ninguém se move fora das linhas definidas para o refeitório onde o café será servido.

A vida é uma espécie de engenhoca complicada demais, que nunca vamos conseguir entender como funciona e muito menos como consertar quando engripa do nada. É daquelas coisas que a gente olha, olha, olha e não sai disso. E não há a quem recorrer diante de tudo o que acontece. O negócio é viver, viver até morrer. Ou morrer de tanto viver.