21 junho 2020

Profissão: perigo

A primeira reportagem em que corri risco de morte foi o registro do assassinato
de um adolescente em favela no Jardim Marília, em Salto 


O primeiro veículo de comunicação da minha vida como jornalista foi “O Trabalhador”, de Salto, que, infelizmente, não existe mais. Fundado em 5 de junho de 1949, o jornal foi uma das publicações que tiveram circulação mais longa na cidade, mas acabou em 28 de janeiro de 1996. 

Cheguei à redação em 1979, antes mesmo de me formar. Foi por meio de um concurso de redação do colégio, do qual saí vencedor. Colegas de classe me incentivaram a levar o texto ao jornal. A então diretora, Virgínia Soares Liberalesso, gostou muito, mas não pode publicá-lo. 

A história era erótica e, para quem não conheceu “O Trabalhador”, ele teve entre seus fundadores um padre e nasceu no Salão Paroquial da Igreja Nossa Senhora do Monte Serrat, a primeira matriz de Salto. Na época tinha uma linha editorial voltada só à comunidade católica. 

Mesmo não publicando minha redação, dona Virgínia (ela sempre detestava que a chamassem assim, mas, por respeito e admiração, eu o faço até hoje sem nem pensar) me ofereceu a oportunidade de publicar os meus contos, crônicas e poesias, depois que contei a ela que os tinha. 

Eu era um adolescente como todos os outros, que gostava de jogar futebol na maior parte do tempo e que gostava de música (até tinha tido uma banda), além de namorar, mas destoava na forma de usar o tempo no intervalo das atividades: nesse tempo eu escrevia e lia. 

A possibilidade de publicar em um jornal com a importância de “O Trabalhador” na época, que era um dos dois únicos da cidade, me abriu uma nova realidade. Levei para a redação tudo que havia produzido até ali e o que passou pelo crivo de dona Virgínia saiu impresso. 



O jornalismo surgiu na minha vida por conta dessa possibilidade. Um dia, precisando de alguém para acompanhar a posse da nova diretoria do Sindicato dos Têxteis, dona Virgínia me pediu para fazer a reportagem. Esse registro foi o meu primeiro trabalho na área. 

Depois fiz a reportagem sobre o casamento de uma figura de destaque na sociedade e passei a fazer todos os dias algum trabalho como jornalista. Descobri a vocação para a profissão com essas reportagens. Em razão disso, fui fazer faculdade de comunicação com habilitação na área. 

A decisão foi uma guinada completa na minha vida. Tinha feito Senai em Itu na área de eletricidade. No colégio fazia eletrônica e eletrotécnica. Minha carreira natural seria engenharia mecatrônica ou algo do tipo. Mas, em 1985, tornei-me jornalista profissional de fato e de direito. 



Enquanto estudava, passei a integrar também o Círculo dos Trabalhadores Cristãos de Salto, que era dono do jornal “O Trabalhador”. Fiz parte da equipe de esportes na gestão de Edna Beggo, que presidiu a entidade até 1984. Jogava futebol e também praticava outros esportes. 

Com o adoecimento de João Batista de Camargo, diretor e um dos fundadores do jornal, ao lado de dona Virginia e do marido Ettore e também do padre Bruno Carra, e ainda com o fim do mandato de Edna no Círculo, eu, já formado, fui eleito presidente da entidade e diretor do jornal. 

Era a primeira vez que alguém tão jovem chegava a esses cargos importantes. Lembro-me bem de que surpreendi a todos na posse com um discurso pronto e articulado. Ninguém imaginava que eu pudesse falar tudo o que pretendia fazer com aquela facilidade aos 23 anos. 


O jornalista Eloy de Oliveira apanha releases durante sessão da Câmara de Vereadores
de Salto, onde representava o jornal "O Trabalhador"

Tenho um carinho especial pelo jornal “O Trabalhador”. Foi em suas páginas que fiz a estreia de muita coisa, além do profissional de jornalismo que sou. Ele foi uma espécie de laboratório para mim, tanto que fiz lá o Trabalho de Conclusão de Curso para terminar a faculdade. 

Testei nele tudo o que havia aprendido na PUC Campinas, onde estudei. Aprendi com a repercussão dessas experiências a me comportar na profissão. Enfim, o jornal me trouxe uma vivência muito rara hoje em dia na área e que a maioria dos meus colegas de curso não teve. 

Ao mesmo tempo em que foi um aprendizado constante e uma descoberta inigualável, fazer esse jornal era um desafio diário, embora a circulação fosse semanal no início. Afinal, o diretor selecionava o material a ser publicado, fazia reportagens, fotografava, editava e revisava tudo. 

Havia só quatro funcionários, o que me obrigava a fazer quase tudo mesmo. Tinha de pensar na edição, criar produtos para atrair publicidade, cuidar da produção e ir a eventos. Além de negociar com fornecedores, bancos e anunciantes e muitas vezes até consertar máquinas. 

Eu vivia a vida do jornal “O Trabalhador” dia e noite e, enquanto estava na redação, também tinha de tocar o Círculo com todas as dificuldades que havia para administrar uma entidade religiosa essencialmente e sem dinheiro, sem falar da inexperiência de só ter 23 anos. 



O meu grupo de faculdade propôs e implementei sozinho depois diversas mudanças no jornal para aumentar consideravelmente o número de leitores, que era o nosso objetivo maior, já que, sendo paroquial apenas, seu público não passava de 697 abnegados assinantes. 

Para começar, tiramos os textos inteiros da capa e introduzimos as chamadas apenas. Adotamos também tamanhos diferentes em corpo e no tipo dos títulos das chamadas para as reportagens internas. Criamos ainda a manchete, que é o título principal e que não existia. 

Na linha editorial, encerramos, apesar da resistência, a coluna “Mas seu padre”, produzida pelo vigário da matriz, Monsenhor Mário Negro, com o objetivo de tirar dúvidas sobre religião, e passamos a fazer reportagens sobre assuntos da cidade, até então ausentes das edições. 

Passamos a divulgar notícias sobre esportes e também sobre fatos policiais, outro tipo de assunto que não existia no jornal até então. Percebemos que essas duas áreas, principalmente, chamavam muito a atenção dos leitores que passamos a ganhar com as mudanças realizadas. 

Os leitores antigos eram pessoas na faixa dos 60 a 80 anos e moradores, todos, das ruas Rui Barbosa e Rio Branco e da Avenida Dom Pedro II, no centro da cidade. Os novos leitores eram adultos jovens entre 20 e 30 anos e que moravam essencialmente nos bairros periféricos. 

Por último, passamos a divulgar histórias políticas e histórias humanas, que mostravam para onde a cidade ia e a vida que tinha. Introduzimos a divisão da edição em cadernos separados por assuntos, implementamos a cor e aumentamos consideravelmente o número de fotos. 

Ao saber que o concorrente, o jornal Taperá, lançaria edição às quartas-feiras (Trabalhador e Taperá circulavam só aos sábados), me adiantei para criar a segunda edição antes e isto só não aconteceu porque anunciei que faria, o que fez o concorrente soltar a sua no mesmo dia. 

Estava por trás da edição de quarta do jornal Taperá àquela época o hoje responsável pela publicidade e propaganda do grupo Lojas Cem, Maurício Gardenal. Havíamos sido colegas na faculdade, embora ele tivesse entrado praticamente quando eu já estava saindo. 

Ao cabo de alguns meses, cheguei à conclusão de que era preciso encontrar outro caminho. Todas aquelas mudanças foram significativas e trouxeram novos leitores, sem que perdêssemos os antigos, mas eles eram poucos. Precisávamos chegar ao concorrente: 2.900 exemplares. 



Na época, instalara-se na cidade uma nova funerária que tinha os mesmos objetivos meus: aumentar a sua clientela rapidamente e vencer a concorrência, que era de uma outra única empresa, e graças a ela vivi o primeiro dos perigos da minha profissão em busca de algo diferente. 

Conheci o proprietário ao tentar fazer com que anunciasse no jornal. Tornamo-nos amigos e parceiros. Eu tinha pesquisas que indicavam que a morte parecia interessar muito aos leitores. Passei a apostar nesse tipo de notícia para aumentar a tiragem do jornal mais depressa. 

Propus ajudar a funerária a ganhar a confiança da população apresentando conhecidos do jornal, caso o dono dela me ligasse quando houvesse um assassinato ou morte violenta antes de qualquer coisa. Chegar antes garantiria fotos e detalhes exclusivos como eu queria. 



Não pensem que foi fácil: a primeira ligação foi às três da manhã. Tratava-se da ocorrência em que um casal de namorados adolescentes se desentendeu e ela o matou com uma facada no pescoço. Eles tinham 15 anos. A discussão e o crime tinham acontecido na favela do Marília. 

Fomos ao local imediatamente no carro da funerária (o jornal não tinha carro). Eu ajudei até a colocar o corpo no caixão de metal para a perícia. Fiz fotos e apurei a história, mas achei que era pouco ainda: pensei em ter depoimento da família, pois o pai era chefe do tráfico por lá. 

O dono da funerária me indicou o barraco da família. Guardei no bolso minha pequena câmera e o bloquinho de anotações (aquela época era tudo de que dispunha) e partimos para o local. A garota havia sido levada para a cadeia e seria enviada à Febem, mas a família estava lá. 

Embora fosse um barraco como os demais, havia homens armados nas imediações, que faziam, provavelmente, a segurança do chefe do tráfico e da sua família. Ninguém passava das proximidades sem autorização e o risco era de ser fuzilado, tal era a quantidade de armas que eles tinham. 

O jornalista Eloy de Oliveira anota informações colhidas no Sindicato da 
Construção e do Mobiliário de Salto para reportagem para o jornal 


Para entrar, o dono da funerária disse que eram necessárias algumas informações a mais da família. O homem estava com uma pistola na cinta e tinha a cara de poucos amigos quando nos atendeu. A situação não era a melhor. Ele olhou para os lados e nos puxou para dentro. 

Em seguida, foi logo dizendo: - Vocês são da funerária mesmo? Porque, se forem do jornal, não vão sair vivos. Vi alguém tirando fotos lá. Eram vocês? Engoli em seco e empalideci. O dono da funerária olhou para mim e eu para ele. Ambos estávamos nervosos. Então ele disse: - Não. 

O pai da menor olhou-nos da cabeça aos pés, como se não acreditasse no não do dono da funerária, mas o meu amigo continuou: - Somos da funerária sim e mostrou o seu cartão de visitas. Santo cartão. O chefe do tráfico virou-se para mim: - E você? Sem dar tempo de nada, me agarrou. 

- E isso no seu bolso?, disse já apanhando o volume e não dando tempo de eu fazer qualquer coisa. Achei que fosse morrer ali. Ele segurou a câmera por fora da camisa. Houve um silêncio de segundos intermináveis. Nem eu nem o dono da funerária conseguimos pensar em nada de pronto. 

O chefe do tráfico passou a mão sobre a pistola para agir provavelmente, como havia anunciado antes. Percebendo a situação, o dono da funerária se colocou entre nós, corajosamente, e explicou, com as mãos trêmulas e a voz gaguejante, antes de uma reação: “Ele trabalha comigo”. 

O homem olhou para ele sem acreditar muito e ele continuou: “É para pôr a foto dos mortos na ficha”. O pai da menor balançou a cabeça afirmativamente e retirou a mão da pistola. Em seguida, soltou a minha camisa e mandou que fôssemos embora. Não queria falar nada. 

Mais tarde, já na funerária, meu parceiro brincou: 

- Acho bom você deixar um caixão escolhido já. 

Em 1988, ao final do meu mandato como presidente do Círculo dos Trabalhadores Cristãos de Salto e diretor de “O Trabalhador”, tínhamos conseguido inserir o jornal na vida da cidade e chegamos aos 2.900 exemplares. Então fui trabalhar em Sorocaba. Minha missão havia terminado.



O que é o projeto?

Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".

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