15 junho 2020

Quando olho para o céu


Cena de"Escritores da Liberdade", na qual  Erin Gruwell divide 
a classe com uma faixa e propõe que os alunos se conheçam melhor 


Uma das formas pelas quais procuro escolher os filmes aos quais vou assistir é pelo título. Eles me chamam a atenção por terem construções diferentes ou incomuns. Às vezes poéticas, em outras enigmáticas ou simplesmente por trazerem um enunciado que é curioso para mim. 

São exemplos disso, um recente que vi: “Seu Mundo Não Cabe nos Meus Olhos”, “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, “O Escafandro e a Borboleta” “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto”, “Queime Depois de Ler”, “A Garota do Trem” e “A Pele que Habito”. 

Outra razão para eu escolher um filme são os temas abordados. Tanto por um quanto pelo outro motivo, vi o filme “Escritores da Liberdade”. O título é bastante poético e inspirador. Já o tema vem muito ao propósito que me atrai hoje, já que faço o curso de letras-português. 

Após exercer o jornalismo por quase 40 anos e ser um profissional de marketing por outros quase 10 anos, decidi iniciar esse novo desafio em 2020: o de me formar em letras e me embrenhar no universo de ser professor, uma possibilidade mais real para mim a esta altura da vida. 

Não que tenha abandonado as outras duas áreas de atividade. Energia e capacidade para exercê-las não me faltam. Mas o tempo passa e a realidade econômica afasta profissionais mais velhos dessas áreas. Parece-me então um prêmio poder transmitir as minhas experiências. 

Minha intenção ao ver o filme era saber como uma jovem professora se virava para dar aulas a uma turma hostil. Este é um cenário bastante possível a qualquer pessoa que se meta a dar aulas. Afinal, a transmissão vertical de conhecimentos professor/aluno e o respeito acabaram. 



Confronto do conflito 
O início de “Escritores da Liberdade” é um tanto quanto devagar. A jovem Erin Gruwell é uma professora que recebe uma classe de integração. Só que fica claro de cara que isto não existe. Os negros só interagem com os negros, os latinos só com os latinos, os brancos só com os brancos. 

Os alunos ignoram a presença da professora. Eles a desrespeitam com agressões verbais e desobediência e se agridem fisicamente uns aos outros. Também não dão a mínima para o material escolar. A diretora é uma obtusa, que só quer cumprir as regras de conformismo explícito. 

Pensei em desistir de continuar assistindo, pois essa é uma realidade repetitiva do nosso dia a dia. Mas o diferencial do filme vem na reação da professora. Ela simplesmente deixa de lado o que pretendia e adota uma nova forma de ensinar. É o confronto do conflito. 

Sem apoio da diretora e sem material didático, Erin Gruwell começa uma jornada para fazer os alunos se autoconhecerem. Ela coloca uma faixa no chão dividindo a classe e pede a cada um que fale de si indo até a faixa. Os amigos mortos, quantos levaram tiro, foram ameaçados. 

Rapidamente, os alunos passam a conhecer uns aos outros. Você só não gosta daquilo que não conhece. A grande jogada é a criação de diários pessoais. A professora compra um caderno para cada aluno e pede que escrevam suas histórias, rotinas, medos, planos de futuro.

Se quisessem que ela lesse os diários, eles deveriam ser colocados em um armário com chave. Só ela teria acesso. Para sua surpresa, todos deixam os diários no armário. Aí é a vez da professora conhecer cada aluno. A partir disso, Erin Gruwell promove uma ampliação de horizontes. 

A professora dribla sua diretora obtusa e consegue do superior dela a autorização para o projeto. Com recursos que obtém de outros dois empregos que assume nos finais de semana, ela leva os alunos a passeios. Eles conhecem o Museu do Holocausto e, em um hotel, sobreviventes dele. 

Com muita dificuldade consegue passar aos alunos o livro “O Diário de Anne Frank”. Até então eles não liam livros, porque os livros não lhes eram dados. Ficavam mofando em uma prateleira. Era a regra. Eles recebiam só um resumo, que não liam. O livro os faz se questionarem. 

Mais do que um ato educativo, a protagonista Erin Gruwell realiza um ato político e ético ao conseguir dar a alunos que não pensam, que são incivilizados e que não são nada humanizados a capacidade real para exercitar o pensamento crítico como seres humanos de fato. 

Os alunos se convencem de que o preconceito transcende todo tipo de barreira. Descobrem que o preconceito pode atingir pessoas pela cor da pele, pela origem étnica, pela religião ou até mesmo pela classe social. Mas todos podem lutar contra isto e vencer. 

O maior triunfo do filme e da missão do professor é chegar a esse estágio, ainda que ela tenha enfrentado todas as dificuldades que se possa imaginar, que vão desde perder o marido até ter de trabalhar em três empregos para poder comprar o material didático para os alunos. 



Descoberta pessoal 
Ao vê-la trabalhando o tempo todo por uma causa, me vi refletido nela. O jornalismo e o marketing sempre me apaixonaram tanto que esquecia do resto no meu trabalho. “Escritores da Liberdade” mostra que eu não estava errado: quando acreditamos no que fazemos, nos entregamos. 

Se no jornalismo e no marketing eu sempre me realizei e me dediquei de corpo e alma, ensinar é tão forte quanto. A educação tem o mesmo condão: apresentar o mundo às gerações do presente e fazê-las se conscientizarem de que esse mundo é comum a múltiplas gerações humanas. 

Uma personagem em particular, Eva, interpretada por April L. Hernandez, adolescente latina que vive em gangues, vai fazendo perguntas sobre o livro à medida que o lê. Depois fica inconformada com a morte de Anne Frank. Ela vocifera para a professora dizendo que se sentiu traída. 

Jason Finn, intérprete de Marcus, um adolescente que mora nas ruas, a consola, dizendo que Anne Frank eram eles e que a morte dela é a mesma morte que eles veem todos os dias ao seu lado, mas que agora: “Quando eu olho para o céu, eu sinto que tudo vai mudar para melhor”. 

Poder realizar uma transformação como essa é mais do que a realização profissional. É uma missão que todos nós deveríamos ter. Implica no nosso papel como cidadãos. Significa que até podemos não resolver todos os problemas do mundo, mas temos condição de mudar o nosso redor. 

Vale a pena ver o filme.