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26 julho 2020

O monstro da cela 2

Depois de fazer as fotos mesmo com toda aquela gritaria e ameaças, o monstro
esbravejou que eu podia me considerar um jornalista morto a partir dali.



- Eu vou quebrar as suas pernas a marteladas, para você ficar sem andar por um ano. Vou espremer a sua garganta até você ficar preto por falta de ar. E, quando você estiver chorando de dor, eu vou furar os seus olhos com o meu fura-bolo, um por um, até seu sangue lavar as minhas mãos. 

Enquanto vociferava cada palavra, deixando cair saliva pelos cantos da boca, ele metia os braços musculosos entre as grades na tentativa de me alcançar de alguma maneira, o que deixava a sua pele, mais do que a raiva, ainda mais vermelha, e ele chutava as barras de ferro debaixo com a lateral interna do pé direito, enfiado em um botinão de fazenda, com tanta força, que parecia que as soldas iriam se desprender a qualquer momento, tudo sem deixar de acompanhar meus passos com olhos grandes e vermelhos. 

Dois policiais me levaram até a jaula do monstro, a Cela 2, uma cela provisória, já que a Cadeia Pública de Indaiatuba era feminina e só abrigava homens até o interrogatório e elaboração de boletim. Esses policiais olhavam atentos como se fossem turistas em um circo vendo a jaula do orangotango. A única diferença é que seguravam os revólveres em vez de câmeras fotográficas. E o carcereiro, tão forte quanto o preso (ele tinha sido lutador no passado), fazia postura de quem estava pronto para uma briga de rua: com os braços cruzados no peito, um pé mais à frente e o queixo inclinado para cima, encarando o preso com extrema dedicação. 

Os três estavam mais à frente para me proteger. 

Mas eu tinha certeza de que, se o monstro escapasse, não sobrava nenhum de nós para contar história. 

Nem imaginava quantos homens foram necessários para prendê-lo e colocá-lo naquela cela pequenininha. 

Confesso que fiquei com mais medo pela forma como ele bramia as palavras do que por se tratar de um homem de quase dois metros, forte como um touro e com mãos gigantes, sem falar no ódio que demonstrava por mim, embora nunca tivéssemos nos encontrado antes. 

A imagem dele, fazendo todas aquelas ameaças, não me permitiu dormir naquela noite e por outras seguidas. Quando conseguia pegar no sono, acordava sobressaltado. 

Foi um grande teste psicológico para mim na profissão de jornalista que eu abraçara não havia dois anos ainda. 

Era o ano de 1987. 

Enfrentei o risco para provar que não tinha medo. 

Havia acabado de ser contratado para fazer reportagens ao jornal Periscópio, de Itu, e para a Rádio Convenção, também daquela cidade, como correspondente em Indaiatuba, e não queria decepcionar o Airton Barbi. 

Radialista conhecido na região e funcionário dos dois veículos, ele me indicou depois de saber das mudanças arrojadas que eu havia feito na minha passagem pelo jornal “O Trabalhador”, de Salto, onde fui diretor geral. 

Barbi acreditava muito no meu trabalho. 

Vários jornalistas que estavam começando passaram por suas mãos, mas ele era seletivo demais para reter. 

Uma vez me disse uma frase que me ficou: 

- A glória do jornalismo é a sua transitoriedade. 

Para ele, tínhamos de fazer o melhor naquele momento, porque depois os momentos seriam outros. 

Ou seja, a dedicação a cada trabalho fosse como fosse. 



O receio de fotografar o preso só me veio quando os policiais me advertiram para não fazer fotos dele. 

Disseram que eu correria risco eternamente. 

Afinal, o preso sairia algum dia e não me esqueceria. 

- Normalmente, eles se vingam das pessoas. Tem policial aqui que nem olha para a cara dele nem se deixa ver. É puro medo. A gente tem família também, né? 

- Meu trabalho é fazer as fotos e eu vou fazer, a menos que vocês não me deixem fazer. Mas, se não me deixarem fazer, vou colocar no jornal e na rádio que não deixaram. 

- Não, você pode fazer e vamos te dar proteção para isso. Eu só fiz um alerta. Era minha obrigação. Você sabe o que faz ou, se não sabe, porque é jovem ainda, vai aprender. 

Depois dessa conversa, fiquei assustado. 

Eu estava lá para enfrentar o que tivesse de ser enfrentado. Jornalismo é isso. Você tem uma missão e ela precisa ser cumprida. Se vai ser fácil ou não, não importa. E, cá para nós, nunca é fácil. Nunca foi fácil para mim. 

Pensava comigo que aquele era o momento de testar a minha coragem. Afinal, era jovem e não tinha feito nada ainda que pudesse dizer que fazia parte do meu currículo. 

Admiro muito os jornalistas que enfrentam dificuldades para exercer a sua profissão, mas não se resignam. 

Eu tinha lido o livro “A Sangue Frio”, de Truman Capote, no qual ele faz um romance-reportagem sobre a morte de toda a família Clutter, em Holcomb, Kansas, e traça, com maestria, o perfil psicológico dos dois assassinos. 

O livro é a principal obra desse jornalista escritor que fazia textos de qualidade em vários gêneros e que se tornou uma lenda para os jornalistas em todos os tempos, além de render alguns milhões de dólares ao autor. 

“A Sangue Frio” se tornou rapidamente um sucesso de vendas e de crítica porque Capote estabeleceu uma relação muito próxima com as suas fontes, os responsáveis por lhe dar as informações necessárias para escrever. 

Ele passou mais de um ano na região de Holcomb investigando o crime e essa investigação o levou a entrevistar os criminosos. Depois de ganhar a confiança deles e dos moradores próximos da família, Truman Capote conseguiu fazer um perfil bastante humano dos dois. 

Eu havia ficado impactado com o texto. Capote tem um estilo que ressalta a emoção a partir da apuração precisa dos fatos e conduz o leitor pela curiosidade para chegar ao desenlace. Eu estava com o jornalismo nas veias. 

Disse ao policial: 

- Vou entrar e fazer as fotos, seja ele quem for. 

- Está bem: vamos à jaula do monstro. 

Em seguida, caminhamos até a Cela 2, onde ficavam os presos mais perigosos. Aquela era uma prisão temporária. Esse tipo de detento não ficava ali por muito tempo. 

Hoje presos como o monstro vão para os Centros de Detenção Provisória (CDPs), onde existe mais segurança e a concentração em um local só permite um controle maior. 

Os CDPs surgiram no ano de 2000, quase 13 anos depois, ainda no governo Mario Covas (morto em 2001). 

Eles foram construídos com o objetivo de receber a população das carceragens de delegacias e cadeias públicas como a de Indaiatuba, além de presos provisórios, ou seja, que ainda aguardavam uma sentença judicial. 

Era um preso perigoso por ser forte e não gostar de policiais. Já havia tentado matar dois.
Chegou a feri-los com gravidade, mas eles sobreviveram


Os policiais chamavam o preso da Cela 2 de monstro porque ele fora preso acusado de estuprar e matar seis mulheres em Indaiatuba e cidades da região. 

Era um preso perigoso por ser forte e não gostar de policiais. Já havia tentado matar dois. Chegou a feri-los com gravidade, mas eles sobreviveram. 

Quando fora preso, fiquei sabendo depois, ele movimentou cerca de 20 policiais da cidade com reforços de outras cidades, tal a dificuldade para detê-lo. 

A investigação para chegar ao esconderijo dele durou pelo menos um mês e envolveu policiais da região toda. 

Aos 45 anos, o monstro tinha uma aparência de homem mau, que assusta só de olhar para ele. 

Por isso usava uma moto para atacar as vítimas. O capacete escondia o rosto. Ele anunciava o assalto às mulheres e as obrigava a subirem na moto. Depois levava-as para algum matagal, onde as violentava e matava. 

Uma das suas marcas era se vingar de quem o prejudicava. Ele atacou os dois policiais que quase morreram com esse objetivo. Os dois foram os responsáveis por sua única prisão em flagrante. 

Ele fugiu da cadeia e atacou e feriu os policiais. 

Na sua ficha, havia ainda outros crimes, como de falsificação de documentos, furto e roubo. Também chegou a integrar a organização criminosa Comando Vermelho, que era muito violenta e sanguinária. Matou uma ex-mulher. Ainda assassinou um porteiro de prédio. 

Enfim, não era uma ficha pequena. 

As fotos que eu tirei tinham uma importância grande. Ele poderia ser identificado mais facilmente com elas. As anteriores estavam desatualizadas. O arquivo da polícia na época não era dos melhores. Hoje mudou muito. 

Lembro que fiquei tremendo quando bati as fotos e várias delas se perderam por ficarem embaçadas ou tremidas. 

Quando sai da frente da Cela 2 parecia que eu carregava o monstro comigo. As palavras dele não saiam da minha cabeça e nem os seus gestos: a boca espumando, o pé direito chutando a grade da cela e aqueles braços enormes saindo do meio dos ferros como se ele fosse um polvo. Ao baixar a câmera fotográfica que pendurara no pescoço, depois de fazer as fotos mesmo com toda aquela gritaria e ameaças, o monstro esbravejou que eu podia me considerar um jornalista morto a partir dali. 

Os policiais ficaram impressionados comigo: 

- Você não teve medo? 

- Não, eu disse, mas por dentro não havia nada em mim que não tivesse medo, pavor mesmo. 



O episódio das fotos do Monstro da Cela 2 já estava superado para mim alguns meses depois daquela cena. 

Mas, como os policiais disseram, ele se vingava de todos aqueles que se interpunham no seu caminho e que o prejudicavam de alguma forma, como eu havia feito. 

Pois bem: o meu dia chegou. 

Estava em um supermercado de Campinas fazendo compras quando eu o vi entrar, mas ele não me viu. 

Ele usava um boné que cobria boa parte dos seus cabelos e a aba da frente não deixava ver o rosto todo. 

Também estava com uma roupa esportiva de um padrão que eu supunha não ser o dele pelo que havia levantado a respeito na sua ficha criminal e dos detalhes da sua prisão. 

Mas aquele homem grande e forte era inconfundível. 

Tinha de sair dali o mais rapidamente possível e precisava de chamar a polícia. Naquela época, eu não tinha celular. Os aparelhos começaram a ser fabricados em 1984 e não tinham se popularizado ainda, além de custarem caro. 

Dependia então de orelhões operados com fichas. 

Eu não tinha fichas comigo. 

O problema maior é que eu não tinha como sair dali às pressas. Tinha um carrinho de compras para passar pelo caixa e gente atrás de mim. Naquela época só havia caixas registradoras para calcular a compra. Era demorado. 

Ficava com um olho no Monstro da Cela 2 e outro na caixa para passar as compras. Eu temia que ele disparasse contra mim ali no meio do supermercado. Não haveria escapatória. Ele também certamente não se importaria com aquele monte de gente em volta. 

Foram momentos de extrema agonia. 

Eu transpirava em bicas, o coração estava acelerado e a fala quase não saía para pedir ajuda. 

Mas o pior aconteceu quando ele veio na minha direção. 

Vinha sem ter me visto, eu tinha certeza, mas me veria ao chegar mais perto e aí eu não teria o que fazer. 

Resolvi abaixar atrás do carrinho. 

Ninguém entendeu nada do que estava acontecendo. 

- O senhor está passando mal?, perguntou uma mulher. 

- É só uma indisposição. 

- Vou chamar o segurança. 

- Não, por favor não. 

- Mas o senhor não está bem. 

- Estou melhor já. Não precisa. Obrigado. 

O Monstro da Cela 2 estava a alguns passos de mim. Eu não poderia levantar aquela hora. Seria descoberto. 

- Se melhorou, por que não se levanta? 

- Já vou. 

- Acho melhor chamar o segurança. 

- Acho melhor a senhora calar a boca um minuto. 

- Nossa, quanta grosseria. Estou só tentando ajudar. A gente tem de fazer isso, porque amanhã podemos ser nós... 

- Cale essa boca senhora. 

Ela fechou a cara e se calou finalmente. 

O homem passou pelo caixa e seguiu. 

- Ufa, disse me levantando. 

- Cada louco que aparece, disse a mulher. 

Depois desse sufoco, não vi mais o Monstro da Cela 2. 

Relaxei e esqueci o problema até ser tocado no ombro por alguém cuja voz me lembrava muito o preso. 

- Você por aqui? Que bom te encontrar. Agora vai me ajudar, ele disse nas minhas costas. 

Não me virei com receio de ser atacado fisicamente. 

Tentei chamar o segurança, mas a voz não saía. 

- E então, não vai me ajudar?, o homem insistiu. 

Olhei a frente e vi que poderia pular um carrinho e escapar dali. Não pensei duas vezes. Mas não fui longe. 

O segurança me apanhou e me trouxe de volta ao caixa. 

Aí olhei de frente para o homem que me abordara. 

Olhei fixamente, forçando os olhos para enxergar melhor. Não acreditava naquilo. Não podia ser. 

Mas era. Era outra pessoa. O homem que eu vira entrar no supermercado e que estava ali na minha frente era outra pessoa. Não se tratava do Monstro da Cela 2. 

Que alívio. 

Em seguida, o segurança me comunicou que eu havia urinado nas calças e molhara todo o chão. 

Foi a vergonha mais desejada do mundo.



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".

19 julho 2020

Sequestrado por uma vaca

Em 1999 fui cercado por um grupo de vacas em uma estrada de terra no meio das
fazendas de cana de Porto Feliz e fiquei lá preso por elas por horas


- Olha Lauda, disse a pequena Emília apontando para uma vaca furiosa e enorme, que vinha na direção das duas. 

Imediatamente, Laudelina, que era três anos mais velha, agarrou a irmã de dez e a arremessou ao tronco da mangueira frondosa ao lado delas naquele momento. 

- Agarre firme e não solte. Tente subir o mais alto que puder. Se cair, ela vai te pegar. Vamos, não largue, disse ela. 

Após atirar a irmã, ela própria saltou para o galho e dele alcançou Emília, já um pouco mais no alto. 

Se não o fizesse, as duas seriam atropeladas pela vaca. 

Do alto da mangueira, as duas meninas olharam para a imensidão do pasto em Pederneiras, onde a vaca furiosa imperava e montava guarda contra elas agora. 

- Como vamos sair daqui Lauda? 

- Ainda não sei Milha. Não tem ninguém por perto. Estou tentando ver o pai ou a Linda, a Nísia. Alguém tem de vir. 

O rebanho da criação do pai das duas meninas era enorme, mas aquela vaca em especial não fazia amigos. 

- Não entendo por que essa vaca não vai com a nossa cara. Toda vez que passamos por aqui, ela avança. Nunca fizemos nada para ela, fizemos Lauda? 

- Não, o pai disse que ela foi separada de outra vaca com a qual foi criada e não aceita isso. Agora acha que todo mundo vai tirar alguma coisa dela Milha. Logo passa. 

Depois de identificar as meninas no pasto, a vaca abaixou a cabeça e foi firme na direção delas, seguindo os passos marcados no capim amassado pelas duas, e ficou embaixo da mangueira andando de um lado para o outro. 

Sempre que alguém aparecia no pasto, ela agia assim. 

Dois empregados da fazenda já haviam sido pisoteados. 

Todos os dias seu João ia trabalhar na lavoura e os filhos iam atrás para ajudar. As duas ficaram para trás ao se distraírem com flores que Emília adorava ver. 

Ninguém deu pela falta delas. 

Eram as menores do grupo e pouco ajudavam. 

Passavam alguns minutos do início da manhã quando a perseguição aconteceu e o tempo foi seguindo de forma angustiosa para as irmãs, que já estavam cansadas de ficar trepadas nos galhos da mangueira sem se mexer. 

Mas a vaca não arredava pé dali. 

Só por volta da hora do almoço, seu João, o pai das meninas, passou pela mangueira para almoçar. 

Ao vê-las lá no alto e a vaca embaixo, tocou o animal e libertou as filhas, enfim, do medo de serem pisoteadas. 



Quando minha mãe me contou essa passagem da infância dela, eu ri bastante, mas não me identifiquei com aquele medo de pronto. 

Afinal, vaca não mete medo em ninguém, vamos e convenhamos. Se fosse um touro bravo desses que aparecem em rodeio ou um animal mais violento, até poderia sentir alguma coisa. Com uma simples vaca não. 

Mas um dia, quando trabalhava na Gazeta Mercantil e era responsável por noticiar todas as mais de 70 cidades da região de Sorocaba, descobri na prática o que minha mãe havia sentido naquele dia com minha tia Laudelina. 

Tudo começou quando fui convidado pelo dono de uma granja de frangos em Porto Feliz para conhecer as instalações e acompanhar todo o processo de produção. 

Corria o ano de 1999 e naquela época eu viajava sozinho pela região com o meu carro para fazer as reportagens que divulguei pelo jornal entre os anos de 1998 a 2002. 

Eu fazia as reportagens e as fotos. Produzia tudo, desde a pauta, que era a indicação do que seria abordado, até o texto final a ser publicado. Por isso, as viagens tinham de ser bem planejadas para não perder tempo no que não deveria exigir muito mais de mim, como o trajeto. 

Peguei as indicações de onde ficava a granja e parti para lá no começo da tarde. A empresa ficava na zona rural de Porto Feliz e eu teria de passar por algumas estradas de terra entre fazendas para chegar pelo que vi. Encontrar o meu destino foi bastante complicado para mim. 

O primeiro problema foi que não havia ainda o Google Maps (criado em 2005) e o Waze (em 2008), que eu uso hoje para me orientar nessas situações. 

Naquela época, a orientação era por meio de mapa impresso ou guia de ruas. Até mesmo o GPS, um antecessor do Google Maps e do Waze, só foi liberado em 2000. 

Bastou sair do asfalto e começar a pegar as vias de terra das indicações para que eu ficasse totalmente perdido. 

Rapidamente, fiquei sem saber para onde ir. 

Como havia sido prevenido de que isto pudesse acontecer, peguei dicas sobre marcas do caminho, como placas, bifurcações, extensões a serem percorridas, pontes e principalmente nomes de fazendas e de propriedades. 

Segui por elas e fui me embrenhando estradas de terra adentro em meio a plantações de cana. 

Tinha indicações e o destino: faltava o caminho certo. 

Uma viagem solitária como todas as que eu fazia, mas esta com um certo ar de preocupação, já que não poderia pedir socorro a ninguém, se precisasse. 

Os únicos companheiros eram o rádio do carro e o celular, caso tivesse de ligar. Nem sempre o sinal era percebido, mas vez por outra sim. Então teria de andar mais alguns metros ou recuar um pouco para tê-lo. 


Vacas podem ser mais perigosas que tubarões, pois matam uma média de 100 pessoas por ano
 pisoteadas ou atacadas e os tubarões matam 10 pessoas no mesmo período

Já passava das três horas da tarde quando entrei nas estradas mais distantes do asfalto. 

Pretendia chegar até as 16 horas, para poder voltar sem muito risco no começo do escurecer. 

Quando fiz uma curva bem acentuada e longa, me deparei com várias vacas que desciam de um lado da estrada e a atravessavam com destino ao outro lado. 

Eu estava na parte mais alta da via. 

Iria começar uma descida quando as vi. 

Parei o carro devagar para não as assustar. 

Achei que duraria apenas alguns minutos e seguiria viagem, mas não foi assim, infelizmente. 

Uma das vacas me descobriu na paisagem, parou e desviou o seu curso para seguir na minha direção. 

Chegou rapidamente perto da porta do carro e me encarou como se perguntasse o que eu fazia ali. 

Fiquei incomodado e, se tivesse contado a alguém antes de hoje, talvez tivesse sido gozado pelo receio que tive. 

Mas hoje, mais de 20 anos depois, absorvi o que aconteceu e percebo que me faltou habilidade para resolver a situação inusitada sem dúvida nenhuma. 

A vaca que me afrontava parecia ser uma espécie de líder das demais, pois bastou que ela se dirigisse até mim para que as outras também o fizessem. De repente, eu estava cercado de vacas por todos os lados. E o pior é que elas não saíam do lugar: ficavam me encarando e ruminando, como se esperassem que eu fizesse ou dissesse alguma coisa. 

Eu não sabia o que fazer. 

Afinal, nunca tinha passado por uma situação tão estranha como aquela. E temia tomar qualquer atitude que pudesse me causar mais problemas ainda. 

A primeira atitude que decidi tomar foi meter a buzina nas vacas. Achava que assustariam e sairiam da frente rapidamente. Era simples, pensei. 

Apertei a buzina várias vezes e elas simplesmente não se mexiam, sequer percebiam que eu estava buzinando. 

Meu Deus, o que eu vou fazer agora? Tenho horário e não posso voltar por essas estradas de noite, pensava. 

As reflexões pareciam fechas que me acertavam. 

Doía a cabeça, o peito, o corpo todo. 

Decidi ligar para o dono da granja a fim de avisar que me atrasaria um pouco, mas não havia sinal no celular. 

O tempo passava como se fosse um sorvete derretendo ao sol quente do meio-dia e me deixava me sentindo melado pelo suor daquela preocupação infinda. 

Quando fui cercado, desliguei o carro e abri um pouco dos vidros dianteiros, mas isto não impediu que o calor tomasse conta do meu corpo, não sei se pelo nervoso da situação ou se pela tarde de sol que fazia. 



Desligara o rádio para me concentrar no problema. 

Tinha de agir. Não poderia ficar paralisado por um grupo de vacas. Eu estava dentro de um veículo. 

Pensei que poderia acelerar, fazendo muito barulho por pisar forte no acelerador, e tocar o carro para cima delas. 

Não era possível que as vacas não se mexessem. 

Daí lembrei de um amigo dos tempos do Correio Popular, de Campinas, que se acidentou com um cavalo quando voltava do trabalho em uma madrugada de sexta-feira. 

Nesses dias, costumávamos ficar até muito tarde para adiantar as edições de domingo e segunda-feira. 

Essa era a vida em todos os jornais impressos na época. 

Esse amigo seguia para casa em Americana após um dia cansativo de trabalho quando avistou cavalos na pista. 

Mas a velocidade que imprimia ao veículo e a proximidade dos animais não permitiu que ele tivesse tempo para frear. O choque não foi tão violento, mas o que lhe causou problemas sérios foi o fato de o carro bater nas pernas de um dos cavalos. O animal caiu sobre o para-brisa e rolou por cima da lataria depois, até cair morto no chão. 

O corpo do cavalo sobre a capota do carro fez com que a lata amassasse sobre a cabeça desse meu amigo. 

Ele teve traumatismo craniano e se salvou por pouco. 

Imediatamente, recuei do impulso de acelerar para cima das vacas. Por mais lento que estivesse, já que elas estavam bem próximas de mim, fatalmente cairiam sobre o carro. 

Isto não poderia acontecer de forma nenhuma. 

Eu tinha uma entrevista e uma visita a uma granja para fazer. Não poderia ter um problema dessa dimensão. O que enfrentava já era suficiente para me transtornar. 

A vaca que, supostamente, comandava aquela operação era a mais provocativa de todas. Ela me encarava como se tivesse cada milímetro dos meus movimentos contabilizados. Era uma antipatia gratuita, pensei. 

Nunca imaginei que uma vaca se comportasse assim. 

Lembrei-me então da aventura vivida por minha mãe e minha tia quando crianças no pasto da fazenda do meu avô. 

Quem disse que vaca não mete medo? 

Eu retirava ali toda a zombaria que fiz com minha mãe quando me contou o que sentiu na fuga de uma vaca. 

Ela e minha tia tiveram mais sorte que eu, uma vez que lá era uma vaca só e aqui havia pelo menos umas dez. 

Era um bando que me sequestrava literalmente. 

Fiquei pensando no que poderiam pedir de resgate. Risos. Talvez uns dez sacos de feno? Ou um pasto do tamanho daquele que minha mãe descreveu em relação ao lugar onde se defrontou com aquela vaca na infância? 

Que bobagem. 

Eu já estava delirando com aquela situação. 

Bati no cinto e escorreguei para o banco detrás. Lá, abaixei o encosto do banco traseiro para ter acesso ao porta-malas. Talvez tivesse algo, uma ferramenta ou alguma coisa assim, com que eu pudesse enfrentá-las. 

O meu movimento dentro do carro fez com que a vaca líder daquela situação mudasse sua posição para me acompanhar. Com isso, as outras vacas a acompanharam. Parecia que elas esperavam que eu descesse pelo porta-malas. Essas vacas eram mais espertas do que pensava. 

De repente, percebi que o movimento, que as levou para a parte detrás do veículo, deixou a parte da frente livre. 

Era a minha chance de sair dali, mas fatalmente elas se movimentariam novamente se eu fosse para a posição do motorista. Tinha de ser estratégico naquela hora. Fiz o seguinte: mantive o corpo no banco detrás com o encosto abaixado e estiquei o braço até o freio de mão, soltando-o devagar e desengatando o carro para que ele descesse. 

O gesto foi positivo. 

O carro desceu uns dez metros. 

Mas as vacas foram todas atrás do carro e me cercaram novamente, de modo que não conseguisse ligar o motor e sair daquela situação difícil que já me constrangia. 

Estava mesmo encrencado. 

O que fazer?, fiquei pensando outra vez. 



Olhei o celular para ver a hora e saber quanto tempo já havia perdido naquela parada forçada. 

Já se tinham ido mais de quarenta minutos. 

Passava das 16 horas. 

Mesmo que eu conseguisse escapar daquelas vacas, teria de voltar por aquelas estradas à noite. Seria outro problema. Mas eu nem tinha ido ainda. Deixei de pensar. 

Tornei a olhar o celular e percebi que havia sinal agora. 

Imediatamente, liguei para o dono da granja de frangos. 

Não mencionei que estava sequestrado por um grupo de vacas, evidentemente, mas disse que tivera problemas com o percurso e que atrasaria um pouco. Ele entendeu e prometeu me esperar não importava a hora que chegasse, pois queria sair na Gazeta Mercantil de todo jeito. 

Desligado o telefone, fiquei pensando no quanto aquilo era surreal para qualquer pessoa normal. 

Eu não poderia ficar ali preso por um grupo de vacas. 

E ninguém aparecia para ajudar. 

Era um silêncio sepulcral. 

Eu olhava pelos vidros entreabertos e as vacas estavam como antes: ruminando e me olhando sem reação. 

Lembrei da fala de um amigo dos tempos do colégio: 

- Sempre que tiver um problema, procure ajuda em uma boa enciclopédia Barsa. Lá, você vai encontrar tudo. 

Hoje seria algo como um tutorial sobre como escapar de vacas ou como apaziguar vacas bravas. 

Falar isto também é uma coisa surreal para muita gente que nasceu depois daquele ano de 1999. 

Atualmente, quando se tem uma dúvida ou se busca um passo a passo para resolver qualquer problema, basta procurar no Youtube, não é mesmo? 

Só que o Youtube foi criado em 2005. 

Não havia nada disso ainda. 

Até mesmo o poderoso Google, o maior buscador do mundo hoje, tinha apenas um ano de vida naquela época e reunia poucas coisas para serem buscadas. 

Era impossível ainda pesquisar pelo Smartphone como hoje. A internet começou a ser usada em celulares em 1993, mas só em 15 de agosto de 1996, a Nokia lançou o Nokia 9000 Communicator, que foi o embrião do que conhecemos hoje como “celular inteligente”. 

Esse celular foi mostrado pela primeira vez durante a CeBIT, na Alemanha*. Na época, ele foi vendido na Europa pelo equivalente a 1.400 euros (o euro tinha um ano quando vivi essa aventura) e nos EUA por 800 dólares. 

Nem que tivesse no Brasil, eu não poderia comprar um modelo desses por absoluta falta de recursos. 

Eu também não tinha uma Barsa na mão evidentemente. 

Mas se tivesse tido como buscar informações naquele momento, teria ficado mais assustado ainda. Pouca gente sabe, mas uma vaca é mais perigosa que um tubarão. 

As estatísticas mostram que as vacas matam cerca de 100 pessoas ao redor do mundo por ano em média, seja atacando-as ou pisoteando-as, enquanto os tubarões matam apenas dez pessoas no mesmo período. 

As vacas ainda produzem flatulências e arrotos que emitem gás metano e amônia, ambos capazes de causar grandes estragos. Em 2014, por exemplo, um grupo de 90 vacas confinadas em um celeiro, na Alemanha, explodiu o teto do lugar só com o efeito dessas emissões. 

Cada vaca libera cerca de 500 litros de gás metano/dia. 

Não é à toa: elas passam 8 horas por dia comendo, 8 horas ruminando e as 8 horas restantes dormindo. 

Quando já escurecia, um cidadão morador do lugar apareceu perto do carro e gritou para mim: 

- Tudo bem com o doutor? 

- Tudo sim. Só estou preso com essas vacas faz um bom tempo já. Pode me ajudar? 

- Sim senhor. 

- Por que elas me cercaram desse jeito? 

- Ah, é que a Esmeralda, essa vaca que ficou mais em cima do senhor, acabou de ter um filhote. Sempre que acontece isso, elas ficam vigilantes contra todo mundo. 

Rapidamente, o rapaz tocou as vacas e elas foram embora. A tal da Esmeralda ofereceu alguma resistência para me liberar, mas ele tinha jeito com os bichos. 

Só tinha contado essa aventura para a minha mãe até hoje. Eu tinha de me redimir por rir da façanha dela. Aí foi a vez de ela rir de mim e do meu medo de vacas. 

Nos divertimos depois, mas no dia foi tenso. 


Vacas que dão cria ficam mais violentas para proteger os bezerrinhos e podem
 assustar as pessoas com suas reações, segundo os criadores

Finalmente cheguei à granja. 

Nunca uma reportagem me custou tanto. 

Felizmente, o dono do empreendimento me recebeu com muita atenção, paciência e interesse. 

Explicou que a distância do seu negócio da cidade e o isolamento no meio de fazendas de plantação de cana davam aos frangos o silêncio de que eles precisavam. 

Eles nasciam, cresciam e eram abatidos ao som de músicas clássicas. Não podiam ter sobressaltos de nenhuma ordem, sobretudo quando era mais novinhos. Senão morriam. Eram bem fracos e vulneráveis mesmo. 

Até a minha entrada nos viveiros teve de ser preparada. Vesti uma roupa especial de plástico, totalmente branca, acrescida de botas e bonés e protetores de rosto todos na mesma cor, e ainda com passos lentos, fala baixa e gestos controlados, tudo como era com os tratadores habituais. 

O calor era controlado com ventiladores e o frio com aquecedores para manter a temperatura ambiente. 

Nada podia abalar os pintinhos no seu desenvolvimento. 

Eles comiam ouvindo música. Depois dormiam em um silêncio absurdo. Tudo isto até crescerem e ficarem em ponto de abate. Em geral, após um período de 45 dias. 

Todo esse cuidado encurtara o tempo de espera em 45 dias, já que antes demorava 90 dias para ficarem prontos. 

A reportagem foi publicada com destaque na Gazeta Mercantil e me rendeu outras sequências. 

A minha aventura no agronegócio nesse dia terminou com uma escolta oferecida pelo dono da granja para que eu voltasse mesmo de noite por aquelas estradas de terra. 

Não fosse isso, não sei como seria minha volta. 



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".



* Feira realizada por mais de três décadas em Hannover, na Alemanha, e que chegou a ser considerada a maior de tecnologia da informação no mundo.

12 julho 2020

A culpa é da Madalena

Uma história incrível, na qual um crime que pode parecer bárbaro pelas circunstâncias,
 mas que guarda todo um rosário de razões nunca reveladas antes


- A culpa foi da Madalena, foi da Madalena, Dalva repetia nervosa a mesma frase sem parar. 

Os olhos arregalados, o coração disparado, as mãos inquietas, estava a ponto de ter um infarto. 

Os policiais se entreolharam desconfiados ao ouvi-la. 

A adolescente estava no meio de um matagal. 

Corria olhando para trás com medo dos policiais e acabou topando com uma cerca de arame farpado. 

Ao ver sua pele rasgada e o sangue escorrendo sem parar, começou a gritar desesperada por socorro. 

Os policiais estavam por toda a parte no pequeno sítio, onde Dalva e Madalena moravam com avó Jandira no sertão da Paraíba e vieram rapidamente até ela. 

Eles procuravam pistas que esclarecessem a morte de seu Pedro, de 82 anos, marido de dona Jandira. 

O corpo fora encontrado dentro do poço da propriedade em adiantado estado de putrefação. 

Ele estava desaparecido havia mais de uma semana. 

Dona Jandira demorou a registrar o sumiço na delegacia devido aos pedidos que Dalva lhe fez várias vezes. 

Ela dizia que o avô apareceria. 

- Vô gosta de tomar umas cachaças. Ele pode ter se perdido nesses matos. É só esperar que ele aparece. 

Como não aparecia, dona Jandira foi à delegacia. 

Feita a queixa, a polícia veio com dois investigadores apenas. Eles vasculharam a propriedade e encontraram o corpo no poço. A partir disso, pediram reforços. 

Não fazia nem uma hora que o batalhão de homens da polícia estava vasculhando pistas no sítio. 

Ao vê-los chegar, Dalva tentou se esconder. Ela já fora interrogada pelos investigadores junto com Madalena e a avó e eles pareceram desconfiar dela. Não disseram nada nesse sentido, mas ela teve a impressão porque fizeram mais perguntas a ela que a Madalena ou a avó. 

Se se escondesse, iriam embora e não a importunariam. Era o que pensava quando correu para o matagal. 



Os policiais fizeram o primeiro atendimento após levarem Dalva para a casa do sítio. Rapidamente conseguiram conter o sangue e acalmaram a adolescente. 

Com pequenos curativos e de roupa trocada, alguns minutos depois, Dalva foi para o quarto que dividia com Madalena, mas o comandante dos policiais pediu que ela voltasse para a sala a fim de ser ouvida. 

- O que eu fiz?, chegou perguntando. 

- É o que queremos saber, disse o comandante. 

- Mas eu não fiz nada. Não fiz. Eu amava o meu avô. 

- Meus homens disseram que você acusou sua irmã ao ser encontrada no matagal. Isto é verdade? 

- Eu?, se surpreendeu Madalena. 

Dalva ficou insegura de repetir a frase que dissera tantas vezes aos policiais alguns momentos antes. 

Temia pela reação da irmã. 

- Como assim Dalva?, perguntou dona Jandira. 

Todos a olhavam atentos para ouvir uma resposta. 

A adolescente titubeou alguns instantes e depois gritou a mesma frase de antes fechando os olhos. 

- Foi a Madalena, a culpa foi da Madalena. 

Madalena e a avó arregalaram os olhos. 

O comandante quis saber mais: 

- O que aconteceu? Conte o que você sabe. Por favor. 

A adolescente olhou para a irmã e a avó com cara de quem havia feito uma grande besteira. 

- Eu não sei o que aconteceu. Só sei que a Madalena discutiu com nosso avô e ele foi para cima dela para dar uma surra. Ela saiu da frente e ele caiu no poço. Ela ficou assustada e correu sem dizer nada a ninguém. 

- E como você soube disso?, perguntou o comandante. 

- Ela me contou. Estava com medo de que descobrissem. Achava que ele tivesse saído de lá e tivesse ido ao hospital. 

- Por que você não contou para sua avó? 

- Eu não sei. Tive medo. Não queria deixá-la triste. No fundo, eu também achava que nosso avô tinha saído de lá e ido ao hospital. Ele sumia às vezes por causa da bebida. 

O comandante virou-se para Madalena: 

- O que você tem a dizer sobre isso Madalena? 

Dois anos mais nova que Dalva, Madalena não aparentava os 15 anos que tinha. Era muito miúda. Ao contrário da irmã, era tímida e parecia se encolher. 

Com os olhos miúdos cheios de lágrimas, ela gaguejou: 

- Não fiz nada disso não senhor, não fiz. 

- Você está inventando isso, não é Dalva?, perguntou a avó. Ela não acreditava que a neta Madalena pudesse ter feito algo tão terrível daquele jeito com o avô. 

Mas não havia como provar nem que a culpa era dela nem que não era pelo tempo decorrido do crime. 

O testemunho da irmã era forte para a condenação. 

Os policiais levaram Madalena. 

A avó ficou aos prantos. As lágrimas eram pelo marido e pela neta. Para ela, uma injustiçada. 

Dalva se manteve firme sobre a acusação o tempo todo. 

Ela contava detalhes de tudo e, quando havia dúvidas, dizia que fora o que ouvira da irmã. Não sabia ao certo, pois não estava no local do crime quando aconteceu. 

Madalena foi levada a um centro socioeducativo de menores na Paraíba, onde ficou até atingir a maioridade. 

Depois que saiu, a avó já havia falecido. 



Madalena nunca fora visitada pela irmã enquanto esteve no centro socioeducativo e não sabia de Dalva quando saiu ao fazer 18 anos, mas já a havia perdoado. 

Ela sabia que não cometera o crime de que fora acusada. 

Só que a atitude de Dalva marcara a sua vida para sempre. Tudo que ela queria, ao sair, era deixar para traz o tormento da reclusão e refazer a sua vida. 

Sua avó havia guardado dinheiro para quando ela saísse. 

Madalena mudou-se da Paraíba para Piracicaba, no interior de São Paulo, atraída por um anúncio de emprego. 

Uma agência trazia pessoas de lá para São Paulo com a promessa de vagas de trabalho e moradia. 

Ao chegar em Piracicaba, ela descobriu que fora enganada. Em vez do emprego como esperava, a agência transformava as mulheres trazidas em escravas sexuais. Todas eram obrigadas a trabalhar em boates da região. 

Como não tinham parentes nem conhecidos próximos e não tinham dinheiro ou documentos, já que tudo o que tinham era apreendido, as mulheres tinham de viver em um abrigo no porão de uma das boates na entrada da cidade. 

Madalena apanhou várias vezes, pois não sabia fazer nada do que os responsáveis pelo agenciamento queriam. Tímida e oriunda do interior da Paraíba, ela não sabia nem dançar, o que exigiu que fosse treinada para tudo. 

Eles eram violentos e impiedosos. 

O que a salvou de um desaparecimento misterioso como do avô é que era bonita, apesar de ser miúda. 

Poderia servir pelo lado sexual, segundo lhe disseram. 

Depois de algum tempo nas mãos de Matilde, uma cafetina que servia à agência, ela conseguiu se articular para começar a trabalhar, apesar de desengonçada. 

Os homens que frequentavam as boates não eram menos agressivos que os donos da agência ou a cafetina. 

As torturas pelas quais passava e a alimentação deficiente, aliada à falta de tempo para dormir, fizeram com que, rapidamente, a adolescente bonita desse lugar a uma mulher envergada pelos seus dramas. 

Aos 22 anos, após quatro anos presa àquela vida, ela já aparentava ter 30 e desenvolveu um câncer de colo de útero, o que a impediu de trabalhar sexualmente. 

Os donos da agência resolveram matá-la. 

Após vê-la no porão, um deles conversou com a cafetina: 

- Vamos ter de nos livrar dela. 

- Será? Não é melhor soltá-la em algum mato? Esquecer e deixar que alguém faça esse serviço por nós?, disse ela. 

- Está louca. Não podemos correr esse risco. Temos de resolver aqui mesmo. Depois desovamos em algum mato. 

- Converse com o Fred. Talvez não seja uma boa matá-la. Um crime sempre traz polícia. Não é o que queremos. 

- Vou falar com ele, mas não creio que ele pense diferente e vamos ter de resolver isso rapidamente. 

Madalena ficou com mais medo depois de ouvir. 

Mas a cafetina estava disposta a insistir na sua tese. 

Como a doença progredia, ela conseguiu autorização para levá-la a um hospital em busca de atendimento. 

Levada pela cafetina, Madalena conseguiu fugir. 

Ela deixou Piracicaba de carona em um caminhão bitrem carregado de açúcar, o primeiro que apareceu. 

O motorista a levou para um matagal próximo a Charqueada, cidade distante 32 quilômetros de Piracicaba, e lá a estuprou com violência, deixando-a desmaiada. 

Quando acordou, Madalena estava toda molhada de sangue e se sentia fraca para caminhar. 

Com muita dificuldade, conseguiu chegar à margem da rodovia novamente e foi socorrida por outro caminhoneiro. 

- De onde você é? É de Charqueada?, ele perguntou. 

- Sim, ela disse. 

O motorista a deixou na praça central. 

Madalena conseguiu ser levada ao hospital depois de pedir socorro em um bar nas imediações. 

O dono do bar, Arlindo Coelho, a acompanhou até ela sair medicada e a levou para casa, onde morava sozinho. 

Deu-lhe comida e roupas novas. 

- Obrigada pela ajuda, mas eu não posso ficar, disse ela. 

- E você vai para onde? 

- Não sei. Só não quero passar por tudo que passei novamente. Estou muito doente. 

- Eu não vou estuprar você, disse o dono do bar, fazendo-lhe carinho no rosto como quem estava realmente oferecendo ajuda desinteressada. 

Madalena não confiava nele, mas não tinha muita alternativa e, para quem já tinha passado por tudo que já passara desde a chegada a Piracicaba, nada poderia ser pior. Ela resolveu ficar e arriscar a sorte. 

De fato, Arlindo Coelho não fez nada contra ela. 



Além de abrigá-la, Arlindo Coelho deu emprego a ela no bar, onde servia refeições. Ela passou a fazer a comida e a servir as mesas. Também ajudava a limpar tudo. 

Madalena era aplicada e isto deixava Arlindo feliz. 

Passaram-se quase três anos e os dois se casaram. 

O bar ia de vento em popa. 

Depois da chegada de Madalena e de ela começar a fazer comida, a fama de boa cozinheira se espalhou. 

Em pouco mais de um ano, o bar se transformou em um restaurante e o negócio crescia a olhos vistos. 

Um dia, Madalena saiu da cozinha para pedir a Arlindo que comprasse mais arroz, pois a reserva estava acabando, e deu de cara com ele todo cordial debruçado sobre a mesa, onde uma moça estava sentada de costas para ela. 

Madalena não era ciumenta, mas a cena a deixou desconcertada e sem saber o que fazer. 

- Arlindo, ela chamou. 

Rapidamente, o marido e a moça olharam para ela. 

Para surpresa de Madalena, a moça era Dalva. 

- Você? 

- Vocês se conhecem?, perguntou Arlindo. 

- Não, não nos conhecemos não, disse Dalva. 

- É claro que nos conhecemos: ela é Dalva, uma pessoa que eu pensei que fosse minha irmã, mas que ficou no passado, no meu passado na Paraíba. 

- Eu não sou passado: estou bem viva hoje. 

- O que quer aqui?, perguntou Madalena. 

- Vim atrás de você porque fugiu com o dinheiro da nossa avó, que é meu também e que eu quero de volta, e porque precisamos resolver a venda do sítio. 

- O quê? Que dinheiro é esse? 

- O dinheiro que você pegou para vir para Piracicaba e depois para cá. Você me roubou, disse Dalva gritando. 

- Como é essa história?, Arlindo quis saber. 

- Você é louca. Eu não roubei nada. O dinheiro que usei para vir para cá foi dado a mim pela nossa avó. 

- Como prova isso? Por que ela faria isso se você matou o nosso avô? O dinheiro estava no banco e você roubou a senha dela e tirou tudo quando saiu da reclusão. 

- Como assim matou o avô?, Arlindo fica mais sem entender, mas a conversa das duas o preocupa. 

- É mentira dela Arlindo. Minha irmã disse à polícia que eu fiz meu avô cair em um poço, onde morreu. Mas não fiz isso. Eu fiquei três anos em um centro socioeducativo por causa da acusação. Minha avó foi a única a me visitar todos esses anos. Ela acreditava em minha inocência. Em uma dessas visitas, me disse que tinha guardado dinheiro para que eu pudesse refazer a minha vida e me deu a senha. 

- Mentira dela, grita Dalva. - Ela deu um jeito de roubar a senha. Quando saiu, nossa avó tinha morrido e ela pegou o dinheiro e fugiu para cá. Esse dinheiro é meu. 

Apesar de tímida e bastante miúda perto da irmã, Madalena não suportou as agressões e partiu para cima dela. As duas começaram a se atacar puxando os cabelos e rolando pelo restaurante. Arlindo só conseguiu separá-las depois de muito esforço e uso da força. 

Dalva foi embora descabelada e revoltada. 

Mas Arlindo não ficou do lado da mulher como ela esperava. Ele ficou sem conversar com ela o resto do dia. 

À noite, disse que iria dar uma volta para pensar. 

Em vez disso, foi atrás de Dalva. 



A visita de Dalva transformou a vida de Madalena novamente. Após tanto sofrimento, ela estava feliz com a convivência com Arlindo e não esperava rever a irmã. 

Dalva fixou residência em Charqueada também. 

Ela acabou seduzindo o marido de Madalena. 

Todas as noites Arlindo saía para pensar como dizia e ia atrás dela. Ficava até tarde da noite. Quando voltava, estava agressivo e maltratava Madalena. 

Frequentemente, Dalva aparecia no restaurante para cobrar Madalena e a ameaçava invariavelmente. 

Apesar disso, Madalena a enfrentava e não cedia. 

Até porque não tinha mais o dinheiro que a avó lhe deixara e nem tinha como obtê-lo novamente. 

Sempre Arlindo se mostrava cortês demais com Dalva e tratava Madalena muito mal na frente de todos. 

Após alguns meses, começaram as agressões. 

Eles discutiam em casa quando o restaurante fechava e um dia Arlindo a empurrou fazendo com que ela caísse e batesse a cabeça em um móvel, ferindo-se com gravidade. 

Levada ao hospital, Madalena pensou em denunciar, mas achava que isso tudo ia passar, pois Arlindo não era violento. O que virara a sua cabeça era a sua irmã. Ela tinha de achar um jeito de se livrar de Dalva definitivamente. 

Mas as agressões foram se repetindo e cada vez com mais gravidade. Ela não tinha mais prazer em viver ali. Apesar disso, não tinha como deixar a casa e ir embora. 

Não acumulara dinheiro algum desde que se casara com ele. Tudo sempre esteve no nome de Arlindo. Ela não tinha sequer uma conta no banco ou algum bem. 

Como já vivia com ele há mais de cinco anos, Madalena apanhou os documentos da casa e do bar e do carro que Arlindo tinha e os levou a um advogado para saber se tinha direito de parte, já que vivia com ele há tanto tempo. 

O advogado lhe deu uma boa notícia: ela tinha direito. 

Na tentativa de verificar a situação dos bens, ele levantou os registros e acabou descobrindo que nada estava no nome de Arlindo mais. Todos os bens haviam sido transferidos para o nome de Dalva, a irmã dela. 

Madalena conversou com Arlindo quando chegou em casa e ele confessou que fora enganado por Dalva. 

Assinara os documentos enquanto estava bêbado. 

- Não tem problema. Vamos retomar tudo. Amanhã vou falar com ela. Dalva vai ter de devolver, disse Madalena. 



Antes que fosse procurar a irmã, Dalva surpreendeu Madalena e Arlindo com a sua visita logo pela manhã. 

- Estou aqui para tomar posse do que é meu. 

- Como é?, irritou-se Arlindo. 

Mas ele não pode agredi-la como esperava. 

Dalva trouxera com ela dois seguranças. 

- Vocês podem trabalhar para mim. Eu pago um bom salário, já descontado o aluguel da casa e o carro eu vou levar comigo agora, anunciou Dalva. 

O carro era o xodó de Arlindo. Era um Corolla do ano, que ele comprara à vista nos bons tempos do bar ainda. A perda do veículo foi como se um filho fosse embora. 

Se Arlindo havia ficado violento e agressivo com Madalena após o relacionamento com Dalva, agora a vida de empregado do negócio que ele montara o deixava depressivo e não menos agressivo e violento. 

As brigas se sucediam praticamente todos os dias. 

Para tentar ter um pouco mais de dinheiro, Arlindo resolveu mudar-se com Madalena para uma casinha pequena feita de madeira bem distante do centro. 

Ela deixou o trabalho no restaurante e passou a trabalhar em casa com costuras sob encomenda. 

Mas nada melhorava a vida que levavam. 

Arlindo passou a beber em demasia e a chegar em casa quase todos os dias bêbado e sempre agressivo. 

Um dia, Dalva o demitiu. 

Agora não tinham mais contato com a irmã de Madalena. 

Arlindo passou a trabalhar como boia-fria. 



Em 1990 ou 1991, não me lembro a data exata, tive contato com o casal Arlindo e Madalena por conta do meu trabalho como jornalista da Folha de São Paulo. 

Em uma ligação para a polícia para fazer uma ronda sobre ocorrências da região, fui informado de um caso que me chamou muito a atenção: uma mulher havia matado o marido e depois dormira com ele e só descobrira que ele morrera no dia seguinte, quando tentou acordá-lo. 

Essa mulher era Madalena. 

Descobri com ela que o marido chegara em casa mais uma vez bêbado, como vinha fazendo nos últimos tempos. 

No dia da ocorrência chovia muito. 

Ainda na porta da casa de madeira, Arlindo, descontrolado e confuso, tentou fazer sexo com a mulher. Ele a puxou para perto de si e tentava tirar-lhe a roupa. 

Madalena estava com um rolo de macarrão nas mãos, pois estava cozinhando antes de ele chegar. 

Para se livrar da investida, ela desferiu um golpe com o rolo de macarrão com muita força na cabeça dele. 

Arlindo desfaleceu na hora e caiu na poça d’água que se formara na entrada da casa. Sua cabeça sangrava. Madalena não sabia o que fazer. Ele era um homem grande. 

Com muito esforço, ela arrastou o marido para dentro de casa, tirou-lhe as roupas, limpou a sujeira da chuva, fez curativo no ferimento e colocou roupas limpas nele. 

Depois o arrastou até a cama. Colocou o marido para dormir do seu lado. Deitou-se e dormiu. 

Ela imaginava que ele estava desmaiado pelo golpe e pela bebida. No outro dia estaria bom outra vez. 

A chuva persistiu a noite toda. 

No outro dia, por volta das 5h, Madalena tentou acordar o marido e ele estava totalmente duro. 

A informação era tão curiosa que me rendeu uma manchete* do extinto Notícias Populares, que era o jornal popular do grupo Folha na época: 

“Matou o marido e dormiu com o morto”. 

Quando conversei com Madalena descobri toda a história acima, mas ela perdeu a importância diante do crime que ela havia cometido sem nem saber que havia cometido. 

Ela mesma havia chamado a polícia e esperara no local até tudo ser esclarecido e ela ser presa. 

Antes de a polícia levá-la, sua irmã Dalva apareceu no local e dizia para todos calma e decidida: 

- A culpa foi da Madalena, foi da Madalena. 


No jargão jornalístico, manchete é o título principal, de maior destaque, no alto da primeira página de jornal.



O que é o projeto?

Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".