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09 agosto 2020

Calma jornalista

1ª edição do jornal Bom Dia criado para ser o segundo de Sorocaba 
Sabe aquela sensação de que você está sendo seguido? Parece que tem o peso de um olhar nas suas costas. 

Foi o que senti, ao fechar a porta lateral de vidro da redação do jornal Bom Dia, em Sorocaba, às 3h25 de uma sexta-feira, no começo do ano de 2006. 

Eu saía de mais um pescoção, que é como nós, jornalistas, apelidamos a esticada de horário até a madrugada, sempre às sextas-feiras, na qual fazíamos a finalização antecipada das edições de domingo e segunda. 

No Bom Dia, eu havia sido contratado com a missão de ser editor de política e respondia também por uma coluna de bastidores sobre a vida política de Sorocaba. 

Naquele horário não havia ninguém na rua naquela região da cidade ou não era para haver. 

Olhei para todos os lados quando fechei a porta por fora e não havia mesmo ninguém, mas, assim que comecei a andar em direção a um terreno baldio, que havia nos fundos da redação, usado como garagem pelos funcionários do jornal, senti aquela sensação estranha. 

O primeiro reflexo foi olhar para trás. 

Não havia ninguém a olho nu. 

Talvez estivesse em algum carro parado (havia sempre muitos por ali, tanto que a rua ficava congestionada, sem lugar de parar, e o terreno baldio havia sido uma solução muito boa encontrada pelo comercial do jornal). 

Fiquei intrigado com aquela sensação. 

Nunca tive medo de nada, até por conta da minha atividade como jornalista em que não dá para ter medo, porque senão você não trabalha. Essa profissão é de risco e eles são constantes. Isto se aprende rapidamente quando se começa em redação, sobretudo no Bom Dia. 

O jornal fora montado pelo empresário J. Hawilla com o objetivo de se tornar o segundo da cidade. Como concorria com um centenário como o Cruzeiro do Sul, era necessário ter arrojo para chamar a atenção e fidelizar leitores. 

Jornalistas com medo jamais fariam sucesso nesse meio. 

Eu sabia que não agradava muita gente e que esse desagrado poderia justificar ações contra mim. 

Não era a primeira vez, desde que a edição número um havia chegado às bancas, em novembro de 2005, que eu me sentia daquele jeito ao sair tarde. 

Quem escreve para jornal tem de conviver com três reações consolidadas: ou você agrada alguém ou desagrada ou ainda gera benefícios ou prejuízos a quem é amigo ou inimigo de quem é agradado ou desagradado. 

Mas não tinha confirmado até ali que estivesse sendo seguido de fato ou que alguém tivesse agido nesse sentido. 

Apesar disso, eu tinha cautela sempre. 

Olhei com detalhe em cada carro parado, sem andar em direção a eles, apenas esticando o olhar, e nada. 

Só que um dos veículos me chamou a atenção. 

Ele tinha os vidros escuros, de tal modo que não dava para ver nada no seu interior. Era uma caminhonete Hilux preta, imponente e relativamente nova. 

Resolvi ir até ela para verificar mais detalhes. 

Estava seguro para fazer isto porque o jornal tinha câmeras externas e um vigia, que ficava monitorando-as. 

Se ocorresse algo, poderia chamar por socorro. 

Embora não tivesse certeza de que pudesse ser salvo, arrisquei. Na minha avaliação, eu poderia correr para a esquina, dobrando-a rapidamente. O veículo estava próximo dela. Com a manobra, quem estivesse no seu interior não conseguiria atirar em mim, se quisesse. 

Outro detalhe importante, que contava contra um eventual disparo, era o fato de que a redação era toda feita de vidro, de grandes janelas envidraçadas. 

Essa tinha sido uma imposição do dono do Bom Dia. 

Ele tinha uma série de superstições. Não aceitara, por exemplo, um prédio na Avenida Antônio Carlos Comitre, caminho para o Esplanada/Iguatemi Shopping, mais valorizado e mais bem localizado, apenas porque o prédio tinha número ímpar na configuração da via. 

A prefeitura chegou a propor mudar para satisfazê-lo, colocando o número par no imóvel, mas ele não quis mais o mesmo prédio após ver o número inicial. 

O empresário também determinou que a editoria de economia ficasse perto da porta de entrada. Ele entendia que a economia é o que sustenta a casa. Se ficasse na porta de entrada, fatalmente traria bons fluidos. 

Enfim, eram muitas regras estranhas. 

Aquela do prédio todo envidraçado incomodava por deixar-nos expostos demais. 

Eu sempre dizia: se alguém quiser nos matar, não terá dificuldade de escolher o alvo da rua. 

Na verdade, poderia se posicionar em algum imóvel próximo na Avenida Washington Luís, onde ficava a redação, e atirar com facilidade. 

Não seria percebido ou identificado e nem preso. 

Se não fui ouvido sobre os riscos na implantação, ao menos poderia usar os vidros a meu favor agora. 

Aparentemente não havia ninguém na Hilux. 

Olhei perto dos vidros, mas não dava para ver nada com a escuridão. Dei uma volta em torno do veículo. Estava tudo certo. Aquele era o único a me chamar a atenção. 

Só se fosse alguém em algum dos prédios em redor. Lembrei da possibilidade que havia dito sobre o excesso de vidros da redação e passei a achar que poderia ser real. 

Depois, descartei a ideia. Se alguém me observasse de algum dos prédios em volta, seria difícil eu descobrir. 

Seria impossível ainda ter aquela sensação de que alguém me seguia se esse alguém estivesse em um prédio. 

Virei-me para a direção oposta na rua Antônio Miguel Pereira, perpendicular à Avenida Washington Luís. O terreno baldio garagem ficava nessa rua, mais acima. 

Ao caminhar novamente tive a impressão de estar sendo seguido outra vez, mas não me incomodei mais. 

Meu carro havia ficado no fundo do terreno. Quem chegava primeiro parava mais no final. Nessa área havia menos câmeras de segurança. O fundo da área era mais escuro, porque a iluminação da rua não chegava lá. 

Olhei com cuidado para ver se não havia ninguém escondido e, certo de que não, prossegui. 

Entrei no carro e rapidamente liguei o motor. 

Queria sair dali e daquela sensação o quanto antes. Só que o motor não pegou. Bati a chave algumas vezes e nada. Comecei a suar com a preocupação aumentando. 

Instintivamente, olhei para a entrada do terreno e só tive tempo de ver um vulto desaparecer em direção ao jornal. 

Será que era quem estava me seguindo? 

Foi a primeira vez em que vi algo, ainda que não tivesse qualquer definição. Apenas um vulto e desceu na direção da esquina onde eu estivera havia pouco. 

Confesso que gelei com essa constatação. 

O suor desaparecera. 

Não tinha o que fazer mais. Voltei a dar partida no carro. O motor patinou um pouco e finalmente pegou. 


Vista da porta lateral do prédio onde funcionou a redação do jornal Bom Dia e parcial
 do terreno que era baldio nos fundos, usado para estacionamento


Estive de folga no final de semana. 

Na segunda-feira, resolvi não dizer nada a ninguém sobre a sensação e sobre o vulto. 

Não iriam acreditar e eu não queria ficar tendo de dar explicações ou ficar contando a mesma história. 

Todos que trabalhavam no jornal eram profissionais experientes, acostumados a situações de enfrentamento quando quem não gostava do que saía queria reclamar. 

Eu precisava ter certeza de que havia alguém tentando me seguir ou me seguindo de fato e também sobre a razão para que isto estivesse acontecendo. 

É difícil avaliar quem teria interesse nesse tipo de pressão, porque ninguém havia me falado nada até ali. 

Naquela semana não enfrentei mais problemas. 

Acabei esquecendo o assunto. 

Passaram-se alguns dias da outra semana e a recepção me avisou de que alguém estava me esperando na portaria para falar comigo e não dissera o nome. 

Insisti que verificassem o nome e o que queria. 

Mesmo assim, a pessoa disse à recepcionista que só falaria comigo e que tinha informação importante a dar. 

Não queria descer para o primeiro andar (a redação ficava no segundo) por causa do trabalho. Para fazer a coluna de bastidores, eu ligava para pelo menos 40 pessoas na maioria das vezes todos os dias. Eram fontes que variavam entre políticos, empresários e lideranças. 

Cada minuto perdido impactava na edição. Não podia atrasar, já que a impressão não era feita em Sorocaba. Nós, editores, éramos muito cobrados a respeito disso. 

Ainda assim resolvi descer e ver rapidamente que informações essa pessoa misteriosa teria. 

Ao chegar à portaria, a recepcionista me disse que a pessoa havia deixado um envelope e fora embora. 

Achei que fosse pela minha demora, mas, ao abrir o envelope, havia uma mensagem dizendo que não me esperara porque não poderia falar comigo ali. Eu deveria ligar para um número anotado e receberia outras instruções para chegar às informações. 

Tudo era muito estranho e eu não sabia nem sobre o que eram essas tais informações. 

Subi para a redação e deixei o telefone de lado. Não havia tempo para verificar aquilo aquela hora. Estava muito interessado em saber, mas a pressão do horário para o encerramento da edição não me permitia. 

Como a finalização das edições de política aconteciam muito tarde (política era a última a terminar sempre), deixei para ligar no dia seguinte assim que chegasse. 

Era uma quinta-feira, por volta das 17h30. 

Do outro lado, uma voz grossa, falando quase como se sussurrasse, disse: 

- O que você faria com 20 mil reais? 

- Eu faria muita coisa, mas não tenho esse dinheiro. 

- Não tem por que não quer. 

- Quem é você? O que pretende? Quando me deixaram esse número aqui disseram que me dariam informações. Não falaram de dinheiro? O que mudou? 

- Posso te dar as duas coisas. 

- Escute, eu não estou entendendo o que quer. Se tem informações a dar, ótimo. Dê. Agora, se pensa em fazer algo diferente disso, falou com a pessoa errada. 

- Calma jornalista, calma. Só estamos conversando. Pense que estamos diante de um baú antigo, muito bonito, onde pode haver um tesouro ou então só documentos empoeirados que não servem para nada. O que estou fazendo é te mostrando o que pode encontrar. 

- Seja mais claro. 

- Não posso ser mais claro por aqui. Vamos nos encontrar. Tem um bar algumas ruas para baixo daí. É só atravessar a Avenida Washington Luís e descer. 

- Está bem, eu irei até lá. 

- Esteja lá às 19h. 

- Como vou saber reconhecê-lo? 

- Não vai. Eu te reconheço. Sei tudo sobre você jornalista. 

Desligou em seguida. 

Fiquei em um dilema se deveria ir mesmo ao encontro do dono daquela voz ou se deveria ignorar. 

Poderia ser uma armadilha. 

Mas o que poderiam fazer? Em um bar com tanta gente perto, atirar não atirariam. Agredir até poderiam, mas estaria esperto para enfrentar. 

Talvez quisessem me filmar ou fotografar na companhia de alguém com quem eu não devesse ser visto junto. 

Se fosse isto, como eu poderia ser atacado? Na minha atividade, falava com muita gente. Gente que ia de A a Z, políticos de todos os partidos, empresários ligados a negócios os mais diversos possíveis. Enfim, não havia nada que pudesse me comprometer. Ao menos eu imaginava. 

Resolvi ir ao encontro. 

Deixei tudo encaminhado na redação e não disse nada a ninguém. Se falasse para os repórteres que trabalhavam comigo, poderia espantar a informação que queriam dar. Se quisessem passar essa informação a eles, já o teriam feito. Se contasse à minha chefia, criaria uma expectativa. 

Eu não sabia sobre o que se tratava. 

Aquilo me angustiava. 

Curiosidade circula nas veias de jornalistas como sangue. 

Precisava saber do que se tratava. 



Precisamente às 19h eu cheguei ao bar indicado pelo dono da voz grossa ao telefone. 

Em minha imaginação eu pensava em alguém grande e forte com cara de mafioso por causa da voz. 

Cheguei ao bar com essa impressão e fui olhando um a um para tentar encontrá-lo antes de ser encontrado. 

O bar estava cheio. 

Tinha gente de todo tipo, mas ninguém se enquadrava na descrição que eu criara para mim. 

Pedi uma coca e fiquei próximo ao balcão esperando. 

Passava das 19h20 quando o meu celular tocou. 

- Vamos ter de adiar essa reunião. 

- Como assim? Estou aqui no bar. 

- Eu sei. Estou vendo você jornalista. Mas não vai dar. 

Assim que ouvi a frase na qual ele dizia que estava me vendo, olhei para todo mundo novamente. 

Alguém devia estar olhando para mim. 

Ninguém estava. Ninguém que eu identificasse. 

A voz desligou e eu não tinha como localizar. 

O número que chamara aparecia como desconhecido. 

Voltei para a redação. 


Vista da parte frontal do prédio onde funcionou a redação do jornal Bom Dia quando foi montado em Sorocaba


Nenhum novo contato surgiu nas duas semanas que se seguiram ao dia do encontro frustrado. 

Era uma quarta-feira quando a secretária da redação me passou uma ligação sem dizer quem era. 

- A pessoa não disse. Falou que é só com você. 

- É o Eloy falando. Quem é? 

- Calma jornalista. Ainda está interessado naquelas informações? Lembra do nosso encontro no bar? 

- Estou interessado. Você é que parece não estar em me falar. Desde o cancelamento do encontro não fez contato. 

- Tive problemas. 

- Que problemas? 

- Não vem ao caso. 

- Está bem e o que vai ser agora? 

- Calma jornalista. Não se apresse. Tudo tem seu tempo. 

- Olha, eu não tenho tempo para ficar brincando. Se tem alguma informação, me passe agora. Sobre quem é? 

O dono da voz disse que não poderia passar naquela hora, mas afirmou que se tratava de um político em evidência naquele momento. Não vou mencionar quem era para não criar problemas hoje, tanto tempo depois. De qualquer forma, isto aguçou mais a minha curiosidade. 

- E quando poderá? 

- Sexta-feira agora. 

- Não é um bom dia. Às sextas-feiras, temos aqui o que chamamos de pescoção, que é a esticada do horário, para adiantarmos as edições de domingo e segunda. Então... 

- Eu já sei. Ficam até de madrugada. Não importa. 

- Como assim? 

- Na hora em que estiver saindo daí, eu te ligo e te dou as instruções sobre como me encontrar. 

- Nesse horário de encerramento do dia estou muito cansado. Não quero esticar mais ainda. Nesses dias não vejo a hora de chegar em casa para dormir. E como você saberá que eu estou encerrando a edição para ligar? 

- Eu sei de tudo o que acontece com você jornalista. Mas você é quem sabe. Se não puder nesta sexta-feira, não sei quando poderei. Não está interessado? 

- Estou, claro que estou. Me adiante alguma coisa então. 

- Calma jornalista. Tudo a seu tempo. Eu te ligo. 

Desligou em seguida. 

Decidi que não encontraria ninguém. Não queria ficar conversando depois de um pescoção. Ninguém merece. 

Os pescoções acabam com a gente. Quem trabalhava em jornal impresso naquela época sabe bem o que é isso. 

O dono da voz não ligou mais. 

Na sexta-feira, já era madrugada novamente quando o vigia transferiu a ligação dele para o meu ramal. 

- E aí jornalista? Vai desistir? Tenho uma nova informação hoje. O nosso amigo recebeu um dinheiro alto. Tenho fotos da entrega. Posso te passar. 

- Está bem, eu vou encerrar aqui por volta das 4h. 

- Ok, eu te ligo perto desse horário. 

O encerramento da edição ocorreu às 4h20. 

Um minuto antes ele ligou: 

- Me encontre embaixo da primeira ponte na Castelinho. 

Dirigi até o ponto. 

De longe avistei um carro escuro estacionado debaixo da ponte. Então ele viera e agora eu saberia os detalhes. Abri um sorriso. Estava contente com a possibilidade. 

Quando comecei a me aproximar, o carro foi ligado e saiu em disparada. Tentei alcançá-lo. Ele não podia me deixar sem as informações. Por que saíra de repente? 

Por mais que tentasse, não consegui nem chegar perto. 

O carro do dono da voz, se é que era ele, era muito mais novo e potente que o meu. Corria, evidentemente, muito mais. Ao ver que não alcançaria, reduzi e segui a marcha normal para voltar à cidade de Salto, onde morava. 

Não me conformava com o novo desencontro. 

Um pouco depois de passar pelo pedágio, percebi que um carro me seguia. Olhei pelo retrovisor e se tratava de um veículo preto. Ele se aproximava rapidamente. 

Eu estava na pista mais rápida. 

O motorista começou a dar sinais de luz como se quisesse que eu saísse da frente ou encostasse. 

Não pararia ali nem por decreto e também não saí da frente. Em vez disso, acelerei o máximo que podia. 

Quanto mais eu acelerava, mais ele se aproximava. 

Eu olhava insistentemente pelo retrovisor e para a pista à frente tentando identificar quem dirigia o veículo e também escapar daquela perseguição. 

Só consegui perceber, quando ele já estava bem perto, que se tratava de uma Hilux. 

Próximo do aeroclube de Itu, o carro me alcançou pelo lado direito e o motorista passou a fazer manobras jogando o carro em cima de mim, tentando me fazer parar. 

Eu freava e ele avançava, voltando para a direita. 

Em seguida, retornava e repetia a manobra. 

Até que um pouco mais à frente, as manobras foram mais incisivas. Tive de virar o volante bruscamente para a esquerda a fim de evitar o choque. 

Acabei entrando no canteiro central. 

O terreno era muito irregular, o que me fez frear. 

O carro sacodia muito e em uma dessas sacudidas bati a têmpora esquerda no vidro, sangrando na hora. 

O nervosismo com o que estava acontecendo me fez perder o controle do carro, mas, por sorte, ele acabou morrendo e foi parar alguns metros à frente. 

A Hilux acelerou e fugiu assim que entrei no canteiro. 

Alguns minutos depois consegui estancar o sangue com um pano cheio de óleo que usava para verificar o nível do óleo e que guardava em um dos espaços da porta do carro. 

Segui dirigindo até Salto e fui ao hospital para buscar atendimento. O médico disse que não havia necessidade de dar pontos. Mandou que a enfermeira fizesse o que chamam de pontos falsos com esparadrapos. 

No dia seguinte, o dono da voz voltou a ligar. 

- Desculpe por ontem. 

- Como desculpe? O que aconteceu? Por que fugiu? 

- Calma jornalista. 

- Calma? Você acha que está tudo bem? 

- Eu sei que não. Soube que se machucou. Eu sinto muito. Não estava nos meus planos. 

- Quem me perseguiu? 

- Ele. 

- Ele quem? 

- O nosso amigo. 

- Agora, depois disso tudo, mais do que nunca, você precisa me passar tudo que sabe. 

- Não vai dar, não vai dar. 

- Como assim? 

- Ele está na minha cola. Calma jornalista, eu volto a te procurar. Não se preocupe. 

E nunca mais a tal voz voltou a ligar. 

O número que eu tinha não atendia mais. 

Trabalhei no Bom Dia por mais de dois anos, mas não tive a oportunidade de esclarecer o que a voz me dizia. 



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".

02 agosto 2020

Matar não é uma questão de vontade


Se eu pudesse, matava um. 

Tal era o sentimento de impotência, de medo e de raiva que vivi naquele momento, explodindo dentro de mim. 

Foram apenas cinco minutos, mas intermináveis. 

Felizmente, Deus não me permitiu ter uma arma. 

Nem deixou que eles avançassem além do jugo, do assombro e da ignomínia de apenas cinco minutos. 

Eu fui salvo a tempo. 

- Vocês estão loucos? 



Era 2001, eu morava em Salto e trabalhava em Campinas, cidade a 40 km de distância, como correspondente da Gazeta Mercantil para a região de Sorocaba. 

Acompanhava sozinho os fatos diários que ocorriam em mais de 70 cidades na minha área de atuação. 

Fui para o jornal em 1998 a fim de participar da segunda fase do projeto de regionalização do jornal. 

Em 1987, começou a primeira etapa com a montagem em Campinas da primeira sucursal da Gazeta. 

Dez anos depois, a direção iniciou a implantação dos cadernos regionais. Em 1997, foi lançado o primeiro caderno regional, era o do Rio Grande do Sul. 

Quando fui para a Gazeta, estava sendo implantado o caderno regional de Campinas, o Planalto Paulista. 

Ao lado dos cadernos Vale do Paraíba, para o litoral norte, e Interior Paulista, para mais de 300 municípios, o Planalto Paulista completou a interiorização por cadernos regionais no Estado de São Paulo da Gazeta. 

Até o ano 2000 foram implantados ainda os cadernos do Distrito Federal, Rio de Janeiro, Grande São Paulo, Paraná, Pará, Santa Catarina, Espírito Santo, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Amazonas, Nordeste, Belo Horizonte, Triângulo Mineiro, Bahia e Tocantins. 

Campinas era muito estratégica nesse processo de interiorização. Só para se ter uma ideia, foram montados três cadernos separados para o interior, mas todos integravam um processo conjunto de elaboração de pauta e de fechamento centralizado em Campinas. Apenas a impressão era realizada em São Paulo. 

Cada um desses cadernos era produto de uma Unidade Regional de Negócios, que era autônoma e independente. 

A ideia da regionalização tinha como estratégia permitir que a Gazeta Mercantil fizesse uma aproximação horizontal com o setor empresarial, enquanto os regionais estreitariam a relação na vertical. Tudo com a visão, trato e proximidade do jornal com os problemas locais. 

Dessa forma, o caderno ganhava notoriedade no interior e faturava com os investidores médios e menores do mercado local, enquanto o jornal-mãe ficava com os anunciantes nacionais, o que daria uma reserva financeira bastante arrojada para a sobrevivência da Gazeta. 

O problema é que o projeto dos regionais, a segunda fase da interiorização, era para ser implantado em 12 anos. 

Mas Luiz Fernando Levy, o dono do jornal, tinha pressa. 

Na opinião dele, tudo poderia acontecer em três ou quatro anos. Só que ele não deu suporte financeiro para que os cadernos sobrevivessem até se consolidarem. 

Para construir o conteúdo do caderno, tínhamos reuniões em Campinas a cada semana, nas quais definíamos as pautas para as edições e também as estratégias comerciais. 

Eu era o que ia de mais longe para esses encontros. 

Por isso, me preparava com bastante antecedência para não chegar atrasado devido ao trânsito intenso que havia entre Salto e Campinas naquela época. 



Naquele dia em especial, eu estava muito atrasado para a reunião da semana na sede da Gazeta em Campinas. 

Não gosto de chegar depois que a conversa começa até hoje. Fica difícil compreender o que está sendo discutido. Além disso, uma coisa que aprendi trabalhando em jornal é que os atrasados ficam com as piores tarefas. 

Ou seja, aquelas que ninguém quer. 

Trabalhar sozinho, ainda que em casa, não é uma tarefa fácil e quando pegamos incumbências complicadas, como são as que ninguém quer, fica pior ainda. 

Mas não tive como evitar atrasar. 

O carro estava com um vazamento pequeno no cárter. 

Tive de passar no posto para ver o que era. 

Não dá para viajar com o carro assim. 

O problema é que o vazamento vinha da colocação errada do parafuso utilizado para o esgotamento nas trocas de óleo, o que fez a rosca dele amassar. 

O funcionário do posto disse que teria de trocar. 

Para fazer isto, foi necessário esgotar o cárter. 

Eu não podia perder tanto tempo, mas também não podia deixar de fazer o reparo. 

A possibilidade de fundir o motor por falta de óleo devido ao vazamento era mais assustadora que o atraso. 



A Unidade de Negócios de Campinas era comandada por Dirceu Pio, que conseguiu forte empatia com o público do jornal e com o empresariado já nos primeiros 18 meses. 

O público leitor reconhecia o caderno de forma independente do jornal-mãe, embora ele fosse encartado neste. E nas coletivas* era comum que os entrevistados perguntassem se havia alguém do Planalto Paulista. 

O sucesso no mercado publicitário e junto ao leitor se deveu em grande parte ao conteúdo de qualidade que era produzido pela redação comandada pela jornalista Ana Carolina Silveira, a Carol. Ao lado de Ana Heloísa Ferrero, que foram contratadas para fazer a transição de sucursal para o caderno regional, ela montou um time forte de jornalistas experientes e escolhidos a dedo para cada área. 

Além de mim, a primeira turma tinha Agnaldo Brito, Paulo Reda, Jorge Massarolo, Ângela Gisikuda e Maria Finetto 

A equipe toda da Unidade de Negócios montava 30 pessoas, entre a redação, com repórteres, fotógrafos e diagramadores; a área comercial e a de assinaturas. 

O segredo do jornal era levar a marca respeitada da Gazeta Mercantil para junto da comunidade. 

Durante toda a sua existência, o Planalto Paulista teve alto grau de envolvimento com os problemas das comunidades que atendia e como fruto disso ganhamos o Prêmio Yara de Jornalismo com o Projeto Água, que abordou os problemas para abastecimento de cidades como Campinas, Jundiaí, Piracicaba, Americana e Limeira. 

O Projeto Água conseguiu alterar a estrutura dos comitês de bacia do Estado de São Paulo e influenciou o início de centenas de projetos de racionalização de água pelas indústrias da região, além de obter amplo apoio comercial, com adesão de mais de 50 instituições empresariais. 

Afora o acompanhamento dos fatos econômicos, o Planalto Paulista se envolveu em um assunto do cotidiano que incomodava muito à época, que era a violência. 

Assim, lançou o “Dossiê Segurança”, uma edição especial que fez ampla radiografia dos problemas da criminalidade regional, e o prêmio socioambiental. 



Assim que peguei a pista em direção a Campinas após o conserto do carro, comecei a acelerar forte para tentar tirar o atraso e chegar razoavelmente próximo do horário. 

Mas o meu esforço foi em vão. 

Assim que começava a pegar velocidade, logo depois da saída de Salto, avistei um congestionamento enorme. 

Carros, caminhões, motos, tudo parado. 

Saí para o acostamento na tentativa de driblar o trânsito parado, torcendo para não encontrar nenhum guarda. 

Assim que cheguei mais próximo do que causava o congestionamento, pude entrar na pista novamente. 

Estava na via mais rápida ao lado do canteiro central. 

O que impedia o trânsito era um protesto de trabalhadores da empresa Fupresa, de Indaiatuba. 

Perguntei ao motorista de uma carreta que acabou ficando do meu lado o que estava acontecendo. 

- Parece que eles não receberam salário e estão fazendo um protesto para obrigar o dono da empresa a pagar. 

- Mas o dono da empresa está aqui? 

- Não, né, ele riu. 

Caramba, aqueles caras iriam me atrasar ainda mais. 

 
Quando trabalhei na Gazeta Mercantil com esse grupo de profissionais 
ganhamos o prêmio Yara de Jornalismo com o Projeto Água, ilustrado ao fundo: eu sou o de terno claro


Coloquei a cabeça para fora e comecei a gritar que precisava passar porque estava atrasado para uma reunião. 

Além de gritar, buzinava também. 

De repente, todos os trabalhadores que estavam mais próximos de mim no protesto vieram na minha direção. 

Havia vários participantes. Uma parte estava perto de mim, onde estavam todos os carros, caminhões, motos. Outra parte estava mais à frente no leito da pista, estendendo faixas e fazendo barulho com instrumentos de percussão. Mais à frente ainda havia alguém da CUT com um megafone gritando palavras de ordem e incitando os manifestantes a se revoltarem contra o patrão. 

Quando vi aquela porção de pessoas vindo na minha direção e nenhum deles mostrava cara de bons amigos para mim em função do que falei, coloquei a cabeça para dentro do carro, fechei o vidro e travei as portas. 

Eles cercaram o carro e um deles, mais corpulento, pegou a maçaneta da porta para abri-la. Não conseguiu porque eu tinha travado as portas. Isto o irritou mais. 

Esse que liderava os demais começou a chutar a porta e a incitar os outros a fazer o mesmo. O meu carro começou a ser chutado por todos os lados. 

Olhei em volta e havia gente mal-encarada em cada vidro e todos querendo entrar ou me tirar de lá de dentro. 

Comecei a buzinar desesperado para que se afastassem, mas ninguém arredava o pé. A buzina só piorou as coisas. Alguns deles, entre os quais o que liderava os demais, passaram a esmurrar a tampa do motor na frente do carro. 

Outros chegaram a enfiar os dedos no vão das portas, pressionando as borrachas de vedação, de modo que pudessem ter onde se apoiar para forçar a abertura. 

Eu me senti ameaçado de morte. 

Decidi tomar uma providência extrema. 

Não podia deixar que continuassem aquela investida, pois fatalmente conseguiriam entrar ou no mínimo danificar o carro em todas as partes possíveis. 

Liguei o motor para forçar a saída do cerco. 

Nesse momento, vivi o mais inusitado que poderia acontecer. Em vez de se afastarem com medo de serem atropelados, que era o que eu queria que sentissem, eles pegaram o carro em conjunto e o ergueram, tirando as rodas do chão, o que anulava minha atitude de ligar o motor. A ação deles me assustou tanto que fez com que o motor morresse, porque eu não sabia mais onde pôr os pés. 

Em seguida, o grupo carregou o carro até o canteiro central da pista e me colocou lá com ele, mas não desistiu de tentar me tirar de dentro ou de entrar. 

Se eu pudesse, matava um. 

Tal era o sentimento de impotência, de medo e de raiva que vivi naquele momento, explodindo dentro de mim. 

Foram apenas cinco minutos, mas intermináveis. 

Felizmente, Deus não me permitiu ter uma arma. 

Nem deixou que eles avançassem além do jugo, do assombro e da ignomínia de apenas cinco minutos. 

Eu fui salvo a tempo. 

- Vocês estão loucos? 

O manifestante da CUT que estava com o megafone veio correndo quando viu a confusão e gritava desesperado para tentar parar os trabalhadores revoltados. 

- Parem, parem, parem. 

Eles não se mexiam, mas não chutaram mais o carro nem forçaram os vãos das portas para tentar abrir. 

Só ficaram parados me encarando. 

- Vocês estão loucos, o que pensam fazer? Nós não podemos perder a cabeça. O que aconteceu? 

O líder da CUT tentava entender a situação após chegar finalmente onde eu estava sob a ameaça. 

O trabalhador que liderava os outros antes da chegada do representante da CUT contou em poucas palavras, sem sequer se preocupar em abrir a boca para falar: 

- Ele queria forçar a passagem e tentou atropelar a gente. 

- Meu Deus, mas vocês não podem fazer isso. Perdemos todo o nosso direito se atacarmos quem passa na rodovia. Vão para lá, vão. Vão todos para lá, ele apontava onde estavam os demais com faixas e instrumentos de percussão, a uns 15 metros de onde estávamos. 

Eles só começaram a se mexer quando o que liderava os demais abaixou a cabeça concordando com o líder da CUT e deu os primeiros passos. Aos poucos cada um dos manifestantes, mais calmos agora, foi seguindo aquele. Todos de cabeça baixa e sem o ímpeto de antes. 

O líder da CUT ficou ao lado do carro sozinho. 

Quando percebi que havia segurança, desci do carro e comecei a esbravejar com ele sem querer ouvi-lo: 

- Você viu o que estão fazendo? Você percebeu o que poderia ter acontecido aqui? Vocês são loucos ou o quê? 

- Eu entendo, mas o companheiro não podia tentar passar. Você também poderia ter cometido vários crimes se atropelasse os trabalhadores. 

- Eu não ia atropelar ninguém. Estava apenas me defendendo. Eles queriam me matar. 

- Se acalme. Ninguém vai matar ninguém. É só um protesto porque esses trabalhadores não receberam salário. Você sabe o que é uma pessoa dar um duro danado e, na hora de receber, o patrão simplesmente não pagar? 

- Eu sei que eu posso perder o meu emprego se não chegar a uma reunião que tenho em Campinas e para a qual estou muitíssimo atrasado por causa desse protesto. 

- Está certo. Não vamos piorar as coisas. Faz o seguinte: dirija pelo canteiro central. Quando passar as faixas e instrumentos de percussão, volte à pista e siga. 

Ele estendeu a mão para apertar a minha. 

Entendi finalmente que era uma pessoa do bem. Já estava mais calmo também. O coração ainda acelerado. 

Apertamos as mãos, entrei no carro e segui. 

Mas antes de deixar o protesto para traz encarei a todos os manifestantes que haviam me ameaçado, principalmente o que liderava os demais, com um olhar que, se fosse faca, teria rasgado cada um deles como quem abre porco: pela barriga, de alto abaixo e de uma vez só. 



O incidente já estava superado, mas o meu coração não parava de bater forte. Achava que teria um infarto se não conseguisse me acalmar. Só não tinha tempo para esperar a tensão diminuir até ficar em paz. 

Ao contrário, tinha de acelerar muito mais agora para reduzir o tempo de viagem e consequentemente o atraso. 

A Gazeta Mercantil funcionava em um condomínio empresarial na região central de Campinas. Eu teria ainda de vencer o trânsito do local e encontrar um estacionamento próximo ou parar no do condomínio, onde era muito mais caro. Decidi que optaria por esse mesmo, já que o tempo era o meu grande inimigo naquele momento. 

O jeito era tentar tirar o máximo que conseguisse na pista e lá na reunião me desculpar pelo atraso. 

Naquela época não havia tantos radares como hoje. 

Por isso, acelerei mais e estava ganhando tempo, quando vi um guarda rodoviário me mandando parar. 

- Essa não. Depois de tudo que já passei, agora uma multa e mais atraso era tudo o que não precisava. 

Parei no acostamento. 

- O senhor estava acima da velocidade permitida. 

- Eu sei, seu guarda. É que estou muito atrasado. Houve um protesto na pista perto de Indaiatuba. Eu preciso chegar em Campinas para uma reunião. 

- O senhor vai chegar, mas não nessa velocidade. Logo à frente tem uma área invadida na chegada a Campinas. Existem muitas crianças lá. Se estiver correndo desse jeito, poderá atropelar alguém. Vou fazer uma multa. 

Eu não estava com paciência e nem com tempo para todo aquele sermão do guarda, embora tivesse certeza de que ele estava certo e de que aquilo era para o meu bem. 

Mas o atraso estava me pressionando muito. 

Assim que fui multado, segui em frente ainda imprimindo velocidade para tirar o atraso. Só que agora mais atento para não ser flagrado novamente por outro guarda. 

O que me multara tinha razão. 

A invasão de sem-teto na entrada de Campinas realmente era vítima de vários atropelamentos. Os moradores do Parque Oziel, Monte Cristo e Gleba B viviam fazendo protestos cobrando providências das autoridades. 

Chegaram a paralisar a rodovia nos dois sentidos, abrindo valetas com picaretas uma vez em razão de atropelamentos na Rodovia Santos Dumont, já que não havia passarela. 

Os pensamentos em torno do que o guarda falara e a pressa de chegar estavam embaralhados na minha cabeça. 

Fui abaixar o som do rádio e acabei derrubando no chão o botão do rádio, que já estava meio frouxo. 

Abaixei rapidamente para apanhar. 

O tempo de abaixar e voltar a olhar a pista foi o suficiente para que sentisse um choque violento na frente do carro. 

Quando ergui a cabeça segundos depois de abaixá-la, vi que algo passava por cima do para-brisa e caia atrás do carro e já ganhava distância rapidamente. 

Pensei que tivesse atropelado alguém. Não sabia. Não dava para ver. As pessoas já se aglomeravam. 

Achei que seria suicídio parar e retornar. 

Do jeito que aqueles trabalhadores já haviam agido comigo, certamente esses moradores não me dariam chance de escapar vivo. Segui em frente torcendo para que não tivesse sido nada, que fosse apenas impressão. 

Não tinha certeza de que tivesse atropelado alguém. 

Talvez fosse algum brinquedo ou algum objeto. 

Não ouvi grito nem choro. 

Uma criança ou um adulto teria produzido algum som. 

Eu estava tremendo de nervoso e de medo. 

Ninguém veio atrás de mim. 

Avaliei que esse era um bom sinal. 

Se tivesse atropelado alguém, os moradores teriam denunciado e alguém ou a polícia já estaria atrás de mim. 

Finalmente cheguei ao estacionamento do condomínio empresarial onde funcionava a Gazeta Mercantil. 

Parei o carro em uma das garagens e desci para pegar o comprovante do estacionamento, quando o funcionário me perguntou qual era a placa do carro. 

- Não dá para ver?, eu disse. 

- Não senhor, aliás não há placa para ver. 

Olhei na mesma direção que ele e pude ver que a placa da frente realmente havia sido arrancada com o choque. 

Estava frito. 

Se tivesse atropelado alguém e os moradores encontrassem a minha placa, me achariam facilmente. Como tinha sido multado antes por excesso de velocidade, minha situação se agravaria mais ainda. 

Após informar as letras e números da placa, subi para a reunião, mas essa foi a pior reunião de que participei. 

Cheguei atrasado demais para ajudar a decidir a próxima empreitada do Planalto Paulista e recebi uma série de tarefas que realmente ninguém ia querer, por certo. 


As reuniões semanais na sede da Gazeta Mercantil em Campinas serviam
 para discutir a viabilidade dos projetos e ajustar o conteúdo



Quando sai da reunião, paguei o estacionamento e entrei no carro, coloquei a cabeça sobre o volante e fiquei alguns instantes refletindo sobre aquele dia. 

Meu Deus, o que me acontecera? 

Finalmente parara um pouco. Tudo aconteceu de forma muito rápida. Não deu nem para pensar. 

Felizmente consegui chegar para a reunião e, embora ela não tenha sido a melhor possível, deu para apresentar os meus pontos de vista e ouvir as orientações necessárias. 

O que me perturbava é que agora estava com um novo problema: ter certeza de que não atropelara ninguém. 

Bom, não dava para continuar ali pensando. 

Liguei o motor, coloquei o carro em marcha e segui de volta para Salto. Pretendia passar pelo local do possível atropelamento e parar um pouco distante. Depois voltar a pé (ninguém me reconheceria) para ver o que de fato acontecera. Além de recuperar a minha placa. 

Tentei avistar de longe se havia concentração de pessoas nas proximidades e não havia. Também já haviam se passado três horas. Se tivesse acontecido um atropelamento, a essa altura estaria tudo resolvido. 

Reduzi a marcha quando passava pelo local na pista contrária, mas não vi nada de anormal. 

Como havia planejado, parei um pouco mais à frente. 

Desci, olhei para todos os lados para ver se alguém me acompanhava. Tudo estava tranquilo. 

Tive de percorrer uma longa caminhada até voltar ao local do possível atropelamento. 

Em princípio, fiquei do outro lado da pista observando apenas com os olhos. Dali teria tempo de correr, se necessário. Foi aí que vi a placa perto do guard-rail que dividia as duas pistas. Bom, se a placa estava lá, não houve atropelamento. A primeira coisa que pegariam era ela para tentar identificar o motorista. Era preciso ter calma. 

Olhei novamente em redor. 

Tudo estava calmo. Não havia ninguém perto. Nada. 

Resolvi me arriscar pela placa. 

Pulei o guard-rail e fui caminhando até ela. 

Ao apanhá-la e verificar se era mesmo a minha e era, vi a uns dois metros do local um corpo inerte. 

Era um cachorro. 

Provavelmente, eu atropelara o cachorro. 

Sai do local imediatamente, carregando a placa debaixo do braço, e, depois de entrar no carro, acelerei para sair dali. Não via a hora de estar longe de tudo aquilo. 

Quando já havia ganho uma distância boa, reduzi e fui embora vagarosamente como Airton Senna na última curva com medo de o carro quebrar. 

Minha cabeça estava um turbilhão. 



O que é o projeto?


Este texto faz parte do projeto de elaboração de um livro contando os bastidores de reportagens ao longo de quase 40 anos de profissão, que se chamará "Coração Jornalista".